A roupa é uma criação humana elaborada com o intuito de proteger. Antes produzidas artesanalmente, agora são promotoras da indústria têxtil e do conceito de moda. Hoje, o que você veste representa quem você é e a roupa assume também o papel de identidade, sendo uma extensão visual daquilo que pensamos e do que queremos mostrar. Apesar da evolução do vestuário ter nos trazido variedade e acesso, seu avanço nos agrega diversos problemas ambientais.
Desde a cadeia produtiva, a matéria-prima é submetida a grandes quantidades de pesticidas, inseticidas e fertilizantes, levando à contaminação da água, solo e fauna. Na indústria, os processos de tingimento necessitam de grandes quantidades de água, que é mais uma vez afetada por carregar consigo diversos resíduos químicos como corantes e metais, muitas vezes em altas temperaturas e diferente pH, descartados incorretamente em rios e mares, afetando diretamente a vida aquática. Outros fatores incluem a emissão de gases tóxicos e os gastos com energia elétrica, surgimento de retalhos que se acumulam em lixões e aterros, a caça de animais para obtenção de couro e outras matérias-primas e, inclusive, o trabalho escravo recorrente em polêmicas envolvendo grandes marcas.
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“Meu único verdadeiro amor, querida”. Cena do filme “101 Dálmatas”, um clássico animado que retrata o consumismo desenfreado da vilã Cruela Cruel por peles de animais.
Hoje, a indústria conta com três fontes para a fabricação de roupas e acessórios: animal (seda e couro), vegetal (algodão e linho) e sintético (tecidos oriundos do petróleo). Pensando nisso, a ciência tem procurado alternativas para não apenas mudar, mas também revolucionar o setor têxtil. Um grande marco é o biotecido.
O biotecido é um material têxtil feito a partir de qualquer composto de natureza orgânica. Focado na sustentabilidade, ele explora novas propriedades que conferem resistência, maleabilidade e versatilidade, além das inúmeras possibilidades de incorporar outras características como reação à umidade e temperatura. Os biotecidos usualmente são divididos em dois grupos: os oriundos da própria natureza, como caules, folhagem e papel vegetal, e os provenientes de material reciclado como garrafas PET e sobras de tecido, onde têm-se destacado as fibras de plástico como componentes de roupas e acessórios.
Seguindo pela linha natureza, o projeto Biocouture (“Biocostura” em tradução livre) visa a produção de roupas ecológicas e inovadoras que utilizem matérias-primas orgânicas. A grande jogada dessa ideia ousada é fabricar tecidos feitos a partir de micro-organismos vivos!
A pioneira na área e idealizadora de um mundo fashion e sustentável que une microbiologia e biotecnologia é a designer de moda Suzanne Lee. Sua fórmula não tem segredos: chá verde, açúcar e uma mistura simbiótica de bactérias e leveduras popularmente conhecida como “Kombucha”. Esses ingredientes juntos levam a um processo fermentativo, de temperatura e umidade controladas, que dura algumas semanas. Ao final forma-se uma camada celulósica e fibrosa na superfície do recipiente utilizado para a produção. A princípio, essa camada é bastante densa devido à alta quantidade de água, sendo seca ao sol até se tornar fina, assemelhando-se a um couro vegetal.
Esquema de produção do biotecido difundido pelo projeto Biocouture de Suzanne Lee.
O material é totalmente moldável e pode assumir diversas formas a partir do tipo de superfície em que é seco, ficando liso ou assumindo formatos 3D. Como originalmente o biotecido produzido possui aspecto de papiro, sendo claro e translúcido, para incrementar as possibilidades de cores são usados processos de oxidação de ferro para tons escurecidos, pigmentos de frutas e vegetais para desenhos e o uso do corante natural azul índigo para um aspecto próximo ao jeans, tudo para dar um “upgrade” no estilo, confeccionando-se peças com características únicas. Aqui no Brasil, itens foram criados a partir da receita de Suzanne em um projeto de inovação lançado pelo Museu do Amanhã, detalhado em nosso guia de museus de fevereiro.
Um grande obstáculo ainda é a reação do material à água, na qual se desintegra, ou seja, nada de se molhar na chuva se estiver com uma roupa de micro-organismos por aí! Todo o passo a passo é descrito por Suzanne em palestra para o TED Talks que pode ser acessada neste link! . O objetivo é difundir conhecimento para que qualquer um possa produzir suas próprias roupas em casa.
Fonte: Jaquetas coloridas a partir de processos de oxidação de ferro, pigmentos de alimentos e o corante azul índigo, respectivamente.
O tecido biofabricado é biodegradável e seu processo produtivo demanda quantidades drasticamente menores de água e energia, além de não necessitar de uma área produtiva grande, o que permite sua fabricação em quase qualquer espaço físico. A confecção evita o uso de agentes químicos, não emite gases poluentes e nem contamina o meio ambiente. Além disso, só é produzido o necessário, evitando desperdícios.
A simplicidade do método e o potencial da ideia prometem mudanças no cenário têxtil do futuro próximo. A partir do pioneirismo de Suzanne, pesquisadores já consideram cada vez mais viável o uso de micro-organismos no desenvolvimento de tecidos inteligentes. Essa é a proposta do BioLogic, um projeto elaborado a partir do segmento de pesquisas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, do inglês Massachusetts Institute of Technology) responsável por design interativo e criação de interfaces. Com a colaboração da empresa de roupas e acessórios esportivos New Balance, foi produzida a Second Skin (Segunda Pele, em tradução livre), um material têxtil que possui impressa em sua superfície camadas da bactéria Bacillus subtilis natto que funcionam como uma nanoestrutura do tecido esportivo.
Vídeo da BioLogic mostrando o comportamento do tecido esportivo a partir da reação à umidade das bactérias Bacillus subtilis natto impressas em suas camadas (do segundo 0:13 ao 0:28).
Essa bactéria possui propriedades de expansão e encolhimento de acordo com os níveis de umidade. Nesse sentido, a roupa é desenhada e confeccionada levando-se em conta as regiões do corpo humano que ficam mais aquecidas e liberam mais suor durante os movimentos executados por atletas. Nestes locais, um biofilme feito a partir do Bacillus subtilis natto é depositado para reagir à umidade produzida pelo corpo, abrindo ou fechando pequenos poros para a passagem de ar e equilíbrio da temperatura corporal. Uma união da nanotecnologia e da ciência dos materiais de forma a remodelar a interface homem-tecido para fornecer bem-estar e melhor perfomance.
Efeito da “Second Skin” após a transpiração. Camadas de bactérias foram implantadas nas costas, zona que se torna especialmente quente e úmida após movimentos intensos, neste caso, de dança, ficando abertas para a passagem de ar. Foto: Rob Chron.
As empresas estão apostando alto na sustentabilidade e sendo movidas pelas possibilidades oferecidas pelos biotecidos não somente nos próximos anos, mas nas próximas décadas. Este desejo está sendo concretizado pela start-up americana Bolt Threads, que está perto de produzir seda de aranha sintética em grande escala por meio do processo fermentativo de levedura geneticamente modificada, água e açúcar. Já conhecida por suas excelentes propriedades de resistência, leveza e elasticidade, a seda de aranha está muito perto de se tornar o primeiro biotecido comercialmente disponível.
Sendo assim, o propósito do biotecido vai muito além de cobrir o corpo, possuindo também a função de beneficiar quem o usa. Os maiores desafios ainda são o preço, devido ao alto custo de produção, e a estabilidade do material, já que se utiliza de seres vivos cheios de peculiaridades. No entanto, sua união à sustentabilidade traz garantias de que em breve teremos uma indústria da moda mais harmonizada com a natureza e com os cidadãos.
E aí, você sabia de todo o potencial dos micro-organismos na área têxtil? Usaria uma destas roupas? Opine e compartilhe essa ideia!
Referências:
http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAgskAF/poluicao-industria-textil
https://projetocolabora.com.br/consumo/bacterias-na-moda/
https://www.vice.com/pt_br/article/8q4b4z/o-futuro-da-moda-pode-estar-nas-bactrias
http://www.modefica.com.br/seda-de-aranha-sintetica-moda-larga-escala/#.Wni2c-g-fjA