Você já ouviu falar no termo Biohacking? Não muito conhecido no Brasil, ele é definido como atividades de criação e desenvolvimento de projetos acessíveis ao público relacionados com biotecnologia, no melhor estilo “Do-It-Yourself” (DIY) biológico. Hoje estamos apresentando um bate-papo que fizemos com Isis Eich, uma das pioneiras em Biohacking no Brasil e ministrante do curso da Exosphere, uma instituição focada em ensinar Ciência e Tecnologia com as mais modernas ferramentas para incentivar a Inovação. Conversamos um pouco sobre sua trajetória, carreira e motivações e descobrimos que tudo começou com a sua formação em Letras. Confira!
Profissão Biotec – Conte-nos um pouquinho da sua trajetória acadêmica e profissional e como você foi parar em biotecnologia.
Isis Eich – Quando eu estava prestes a escolher a 1ª graduação, com 17 anos, já era fluente em inglês e gostava muito de Literatura, então Letras pareceu um caminho natural. Eu me formei primeiro em Letras Português-Inglês, tendo uma formação abrangente tanto em literatura quanto em línguas. Por causa dessa formação, eu acabei trabalhando durante muito tempo como tradutora de inglês. Logo no início, ainda na faculdade, surgiu a oportunidade de trabalhar com traduções de patentes de invenção – como colaboradora de um tradutor juramentado em Curitiba. Eu gostava muito dessa atividade, foi o meu primeiro contato com a área científica. Além de Letras, também fiz um curso superior em Estratégia em Comércio Internacional, no qual o meu interesse era transferência de tecnologia e inovação. Logo depois, comecei Jornalismo na Universidade Federal do Paraná. Nessa época, eu tinha a intenção de trabalhar com jornalismo científico. Neste período, me ficou claro que eu estava tentando adaptar minha formação em Humanas à Ciência. Na verdade, antes de concluir esse terceiro curso, eu percebi que o que me atraía mesmo era fazer ciência, e eu estava meio que apenas tangenciando a área científica com as minhas pretensões em jornalismo científico. Acabei não concluindo, eu fiz dois anos de jornalismo e fui para o Rio Grande do Sul. Lá eu comecei a fazer o curso de Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia na UERGS (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul). Eu adorei o curso, mas como eu já era formada, acabei cursando as matérias que mais me interessavam e, após dois anos de curso, migrei para uma Pós-graduação em biotecnologia na UEM (Universidade Estadual de Maringá) que oferecia exatamente o que eu queria aprender. Depois de concluir a pós, eu decidi que não queria mais sair da área científica e resolvi entrar no Bacharelado de Ciência e Tecnologia aqui em Poços de Caldas (MG). Esse é um curso bem bacana, não sei se você conhece esses novos bacharelados interdisciplinares, como eles funcionam?
PB – Não.
IE – Além da Unifal, tem na Unifesp, na UFABC, na UFJF, na UFSC, entre outras… Nas Engenharias que seguem este modelo, especificamente, os três anos iniciais correspondem às matérias comuns a todas as engenharias, bem como outras disciplinas interdisciplinares – como o nome diz. Essa grade dinâmica é a base do currículo do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia. Assim, no final do curso, o aluno sai Bacharel em C&T e depois estuda mais dois anos complementares para a sua engenharia de escolha. No caso da UNIFAL, aqui em Minas, você pode partir para Engenharia Química, Engenharia Ambiental (que é a minha escolha porque, para mim, Biotec e Ambiental são áreas complementares) ou Engenharia de Minas. Eles têm planos para ampliar, mas por enquanto são só esses três.
PB – Que legal. Então você sai com o título de Bacharel em Ciência e Tecnologia e Engenheiro de “alguma coisa”, que tu vai escolher no final?
IE – Exatamente. Nesse formato de bacharelado, após os 3 anos, você pode escolher qualquer engenharia (pode inclusive concluir os últimos dois anos em outra Universidade que possua o mesmo modelo e ofereça engenharias diferentes daquelas que a sua Universidade oferecia em princípio) e, por esta razão, o aluno acaba cursando mais disciplinas nestes primeiros três anos de formação básica do que em um curso tradicional de Engenharia. Por exemplo, mesmo que você queira ir para (Engenharia de) Minas, você vai estudar matérias de biologia, que não necessariamente o aluno precisaria cursar se estivesse em um curso que seguisse o currículo tradicional de Engenharia de Minas. Do mesmo modo, se você está na Engenharia Ambiental, você vai passar por todas as matérias de programação, que não são naturalmente associadas à Engenharia Ambiental. É um curso realmente interdisciplinar e bem mais completo do que seria tradicionalmente. Bem bacana, eu gostei muito.
PB – Bem interessante a proposta, pois hoje em dia o mundo tende à multidisciplinaridade. Tanto que essa é a grande chave do curso de biotecnologia, que une áreas diferentes que normalmente são bem segmentadas. Então um curso que proporcione um ciclo básico com conhecimento amplo, dá uma visão diferente para o profissional.
IE – Exatamente. É um ciclo básico com conhecimento amplo em todas as áreas dentro das disciplinas oferecidas da área científica (química, biologia, física, programação, humanidades, etc.), e tem a parte experimental dentro de cada área também. Se eu estivesse começando hoje, com 17 anos, eu preferiria ter começado por esse curso e do que ter começado por Letras (risos).
PB – Tu considera que esse início com Letras foi importante pra tu chegar nessa parte científica? Em que ter feito Letras te ajuda hoje em dia?
IE – Na verdade, essa interdisciplinaridade faz parte do meu perfil e não tem como eliminá-la. Sem o curso de Letras eu não teria feito as traduções de patentes de invenção que acabaram aguçando a minha curiosidade científica. Do mesmo modo, por eu falar fluentemente inglês, foi muito mais simples cursar a Pós-graduação – porque praticamente durante aquele período, quase todos os artigos de meu interesse estavam disponíveis apenas em língua inglesa. Era raro ter um material atualizado para ler em português na área biotecnológica, por se tratar de uma área muito dinâmica. Então, com certeza, essa é uma competência essencial para quem pretende estudar o assunto. Do mesmo modo, é fundamental para contatos profissionais. Atualmente, dentro da área, a maioria dos grandes atores em Biotecnologia são empresas multinacionais. Você só se comunica com os profissionais dessas empresas em inglês, não tem outra forma. Creio que o inglês é uma ferramenta útil em qualquer área do conhecimento, mas nas áreas de tecnologia é impossível negligenciá-lo.
Também trabalho na área educacional. Em julho vou ministrar um curso de “Biohacking” em um evento internacional (e interdisciplinar) chamado Exosphere. Receberemos alunos brasileiros, bem como de vários outros países, da América Latina, dos EUA, do Canadá, da África, etc. E o curso será ministrado somente em inglês (por enquanto). Logo, novamente, eu percebo que a minha primeira formação se faz importante até hoje em todas as esferas do meu trabalho.
Do mesmo modo, novamente, a interdisciplinaridade está presente. Eu me interessei muito pela proposta da Exosphere porque ela se alinha perfeitamente a minha trajetória – é um curso de imersão interdisciplinar voltado para as tecnologias mais relevantes no momento histórico que vivemos hoje, os alunos da Exosphere terão oportunidade de aprender o que há de mais recente em Inteligência Artificial, Empreendedorismo, Biotecnologia (mais voltada para Biohacking) e Blockchain.
A ideia é que os alunos aprendam, por exemplo, em relação à biotecnologia, técnicas básicas que você vê (ou deveria ver) em uma graduação de Biotecnologia ou de Engenharia de Biotecnologia: como fazer um PCR; técnicas de Crispr, para fazer edição de genes; técnicas de bioinformática – como utilizar vários tipos diferentes de software. E os alunos são incentivados a desenvolver seus próprios projetos – eles terão alguns horários para trabalhar em cima das técnicas que aprenderam em todas as áreas, usando-as para criar algum produto, ou processo, ou algo diverso que eles queiram desenvolver e, no final do curso, poderão apresentar esse projeto através de um Pitch com investidores reais, com a possibilidade de conseguir transformar sua ideia em um produto.
Voltando ao mote da pergunta, tudo isso que acabei de relatar, será realizado em inglês – logo, na minha trajetória, o curso de Letras contribuiu até mesmo para este evento. Sem o inglês, muito possivelmente, eu estaria estacionada profissionalmente. Então, desde o início, o inglês foi uma ferramenta fundamental mas, posteriormente, foi necessário o aprofundamento na parte científica, é claro.
PB – Eu vi que a tua parte ali no curso é de Biohacking. Esse não é um termo muito comum.
IE – Realmente, ainda não é um termo muito conhecido. Inclusive tem muita gente que confunde, porque existe o Biohacking voltado para Biotecnologia, com técnicas de Engenharia Genética, e o Biohacking voltado para body modification/augmentation, que está mais relacionado a modificações corporais, como implante de biochips, por exemplo. Mas o Biohacking que pretendo trabalhar no curso é o de técnicas de biotec mesmo, voltado para a Biologia Sintética. É um movimento bem interessante que começou nos EUA no início dos anos 2000, com pequenos laboratórios de garagem, os “Biohacker Spaces”.
PB – Conte um pouco mais sobre o que é Biohacking.
IE – Há várias abordagens e interpretações diferentes. Não tenho a pretensão de definir o que é Biohacking. Ao invés de uma definição que abranja todas essas interpretações, o que posso afirmar é que há um consenso quanto a um objetivo geral: o que Biohacking propõe é que qualquer pessoa tenha acesso ao conhecimento científico e possa desenvolver as técnicas da ciência em laboratórios de open science. Não por acaso, um dos primeiros movimentos considerados como Biohacking chamava-se “Science for the Masses”. A proposta fundamental do Biohacking e da Open Bio como um todo é que o conhecimento científico não fique restrito à academia. O objetivo é tornar a biologia sintética acessível para o público em geral. Podemos fazer uma analogia com o movimento open source na informática, no desenvolvimento de softwares… quem realmente sabe o que é necessário e qual é a demanda da inovação é o usuário. Então por que não deixar o usuário desenvolver a biotecnologia também? A proposta é a mesma, mas é voltada para “open bio”, para biotec.
Contudo, embora esse seja o objetivo do Biohacking, as motivações pessoais para que as pessoas busquem a Biologia Sintética “do it yourself” (DIY) podem ser as mais diversas, da ciência à arte.
PB – É um pouco mais complexo que esse conceito usado para informática pois demanda muito mais material, muito mais estrutura…
IE – Ah, sim. Nem todos os Biohackerspaces tem uma estrutura na qual você possa desempenhar todas as técnicas sobre as quais estávamos conversando. Tem muito material (tanto hardware, quanto processos) que é feito no modo DIY, desenvolvido e utilizado pelos próprios biohackers. Desta maneira, o Biohacking é um movimento muito ligado à cultura maker, tanto fora, quanto dentro do Brasil.
Quem trouxe esse movimento para o Brasil foi o Andrés Uchôa, fundador da SyntechBio Network, a primeira rede de Biohacking da América Latina. A DIYBio tem crescido bastante aqui desde então, mas ainda está muito incipiente. Fora do Brasil, o biohacking e a biologia sintética DIY já estão saindo um pouco do underground acadêmico e indo um pouco para o mainstream – se é que se pode chamar assim. Já existem empresas que vendem kits de biotecnologia com os quais você pode fazer modificações genéticas em organismos no conforto da sua casa. Posso citar um caso interessante, de um biohacker chamado Josiah Zayner, que foi membro da NASA e que, quando deixou a agência, fundou uma empresa chamada The Odin . Essa empresa vende vários kits DIY usados por muitos biohackers (e por muitos curiosos) no exterior e no Brasil. É uma forma bem bacana de popularizar e democratizar a ciência.
O caso da Odin é interessante porque também me parece uma característica comum a muitas pessoas que têm algum envolvimento com esse cenário de Biohacking a vontade de empreender. É um meio de intensa inovação do qual saem muitas startups com produtos diferentes e muito interessantes. Por exemplo, recentemente veio a meu conhecimento uma startup de biologia sintética, a Ava Winery, que se aventurou na produção de vinhos e está reproduzindo vinhos de alto padrão, alguns premiados, sem uvas, através de processos biotecnológicos. São vinhos sintéticos que, em tese, fornecem a mesma experiência sensorial não apenas de uvas específicas, mas de rótulos e safras específicas. Tem muita coisa legal acontecendo nessa área. Estamos vivendo um grande boom na Biologia Sintética.
PB – Isso é interessante em questão de sustentabilidade, não precisa plantar para produzir.
IE – Exato. Você já ouviu falar sobre o Lab-grown meat, que é a carne de laboratório? Essa é outra iniciativa que começou assim e agora há uma grande corrida internacional no desenvolvimento deste produto.
Esse crescimento da biologia sintética não têm passado despercebido pelos atores de Biotec. Muitas empresas estão em contato, principalmente fora do Brasil, com esses espaços (Biohackerspaces) com o objetivo de promover inovação open source. A Novozymes é pioneira nessa acolhida dos biohackers na Dinamarca – eles trabalham em parceria com Biohackingspaces e fornecem alguns equipamentos, estrutura e expertise. Estabelece-se algum tipo de cooperação, de forma que o que eles desenvolvem no laboratório de Biohacking em formato de colaboração open innovation é utilizado pela empresa, com a autorização dos biohackers – a despeito de empresas como essa possuírem um setor enorme de P&D.
PB – E a Novozymes é uma gigante da área.
IE – É uma gigante, exatamente.
E há outros exemplos nesse modelo de Open Innovation.
Eu estou colaborando agora, em conjunto com a Exosphere, com uma outra empresa chamada Ascendance Biomedical. É uma empresa de biomedicina que compartilha da mesma visão de inovação aberta e conta com a colaboração de vários Biohacker Spaces pelo mundo: no México, nos EUA, na Europa e agora no Brasil, com o laboratório da Exosphere. Entre outras inovações, eles estão desenvolvendo, em conjunto, uma vacina com contra o HIV, baseada em técnicas biotecnológicas de Knockout de genes. Cada laboratório desenvolve uma parte da pesquisa, a inovação é feita toda de forma colaborativa e descentralizada – o que é uma tendência incontível para a inovação tecnológica a partir desta década.
PB – Que legal! E a última pergunta que eu queria te fazer é em relação a carreira. Que dica você daria para as pessoas que estão estudando biotecnologia hoje?
IE – Em primeiro lugar, não descuidar da interdisciplinaridade em sua formação, acho que ninguém deveria se prender, ou se contentar, apenas com o lhe foi apresentado durante a faculdade porque, inexoravelmente, será incompleto. Não importa onde você faça a sua graduação, se você se prender somente ao currículo da graduação, não será suficiente. Faça cursos de extensão, cursos livres, abuse da internet, posteriormente faça uma pós, cursos de aperfeiçoamento, MBA, ou o que quer que seja, dentro daquilo que você se interessa. Além disso, para a nossa área, especificamente, não descuide do inglês. Eu tenho muitos colegas que são profissionais da área também e todos eles estão bem posicionados na carreira – e a nenhum deles lhes falta o inglês fluente. Estou certa de que essa ferramenta contribuiu bastante para que eles crescessem profissionalmente.
Essa foi nossa conversa com Isis Eich, uma biohacker e educadora em biotecnologia. Gostou? Deixe um comentário!
Materia insana. Muitas peculiaridades que mostram a imensidão da Biotecnologia. Me senti como se não soubesse nada da área de tão grande que ela me parece nesta materia. Parabéns a todos os envolvidos.
Atenciosamente,
Gabriel Bruno Meira 😉
Um jovem estudante.
Técnico em biotecnologia.