Embora muito se ouça falar da maconha, principalmente nos últimos meses a partir de passeatas, marchas e  projetos de lei que visam a sua regularização no Brasil, nem todo mundo sabe que os compostos das plantas – como o canabidiol e THC – podem ser utilizados de forma medicinal e auxiliar no controle de diversas doenças.

O uso medicinal de derivados de Cannabis no Brasil tem sido uma temática de intenso debate entre agências regulatórias, profissionais da área da saúde e ativistas desde 2014 – ano que pais e mães de crianças com epilepsia refratária criaram uma campanha para facilitar a importação de fitoterápicos à base de Cannabis. Desde então, diversos marcos legais foram conquistados, conforme ilustrado abaixo, resultando na maconha medicinal como medicamento reconhecido pela Anvisa.

Mulher oferecendo remédio a uma criança
A história da mudança na legislação do uso da maconha medicinal no País. Fonte: Istoé.

Dados da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (2018) estimam que aproximadamente 78 mil medicamentos à base de canabidiol, um dos compostos fitoterápicos da maconha, foram autorizados pela Anvisa e importados para o Brasil nos últimos três anos. De certo modo, este número representa um progresso legal e cultural único, considerando os aspectos históricos da criminalização da planta. No entanto ele ainda é diminuto, dada a demanda nacional de famílias que não conseguem importar o produto e, principalmente, comparado ao cenário mundial, cujo mercado no âmbito médico está estimado em cerca de US$ 18 milhões para 2027.

À parte do seu uso recreativo, que não é o escopo deste artigo, fica notório o grande potencial que os produtos derivados da Cannabis têm na consolidação de um mercado rentável no setor farmacêutico, dada a sua eficácia no tratamento de diversas enfermidades, como dores crônicas, epilepsia, entre outros. Portanto, faz-se necessário refletir acerca de como os órgãos de regulamentação e legislação nacionais estão conduzindo essa importante temática, de modo a estimular a participação do Brasil no progresso científico e tecnológico desse campo.

Diante disso, o Profissão Biotec buscou dar visibilidade a essa questão por meio da exposição do estado da arte da Cannabis e, curiosamente, levantar pontos onde a biotecnologia tem sido aplicada.

Cannabis e seu histórico fitoterápico

Cannabis é um gênero de plantas da família Cannabaceae, nativa da região central da Ásia e do subcontinente indiano – curiosamente, esta família também inclui espécies do gênero Humullus, o famoso lúpulo da cerveja. Existem três espécies catalogadas: Cannabis sativa, Cannabis indica e Cannabis ruderalis (cânhamo). Apesar das diferenças fisiológicas entre as três espécies, todas elas são constituídas das mesmas moléculas de interesse tecnológico, em especial os fitocanabinoides – sendo o △-9 tetrahidrocanabinol (o famoso THC, principal ingrediente psicoativo) e o canabidiol, os mais estudados.

Tamanho relativo das variedades de Cannabis
Tamanho relativo das variedades de Cannabis. Fonte: Wikipedia

A aplicação das variedades de Cannabis na atividade humana é datada desde 4000 a.C., onde elas foram encontradas sob a forma de fibras em sítios arqueológicos na China. Não somente na área de materiais, os benefícios do uso medicinal de Cannabis foram traduzidos de diversos textos antigos da literatura hinduísta (1400-2000 a.C.) e grega (40-201 a.C.).

Illustração de Cannabis em um livro bizantino do século VI
Ilustração da Cannabis sativa de um livro bizantino do século VI. Fonte: Wikipedia

No contexto científico, a medicina da Cannabis foi introduzida no mundo ocidental em 1839 pelo médico Dr. William Broke O’Shaughnessy como anestesia e relaxante muscular. Outros médicos então começaram a estudá-la e prescrevê-la como medicamento para outras enfermidades, até que em 1915 tais práticas começaram a ser barradas por movimentos políticos de ideologia proibicionista, resultando anos depois na sua criminalização.

É fundamental compreender a origem desses movimentos e como eles condicionam o pensamento atual a respeito da maconha, em especial a de uso medicinal. Segundo toda literatura consultada, cientistas de diversas áreas discorrem que a criminalização da planta tem uma base muito mais racial, econômica e política, do  que científica. Nos EUA, por exemplo, historiadores relatam que as políticas de controle de derivados da Cannabis foram condicionadas pela indústria das fibras sintéticas, como a do nylon, que competia fortemente com a indústria do cânhamo – um forte produtor de fibras naturais a base de Cannabis – para maior exploração do mercado.

Já no Brasil, as questões da criminalização da Cannabis têm raízes históricas escravocratas, oriundas de um interesse de ‘embranquecimento’ da população brasileira nos séculos XIX e XX. Também vale ressaltar que esse processo foi fruto da opressão contra grupos escravizados que faziam o uso da Cannabis em suas manifestações culturais e religiosas.

Para maiores detalhes, seguem os artigos Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas por André Barros e Marta Peres, e Comprehensive Review of Medicinal Marijuana, Cannabinoids, and Therapeutic Implications in Medicine and Headache: What a Long Strange Trip It’s Been… por Eric P. Baron.

“Eu acho bastante irônico que a coisa mais perigosa sobre a maconha seja ser pego com ela.” Bill Muray

A pseudociência que fundamentou a criminalização dos derivados da Cannabis não tem meios para rebater o real potencial tecnológico que ela possui. A planta tem sido utilizada para diversos propósitos há muito tempo, seja na fibra de cânhamo presente nas navegações pré-colombianas – em especial as velas e cabos das embarcações portuguesas – ou na fabricação de linhas e papel. Desconsiderando o uso recreacional, a retomada de pesquisas tem demonstrado novas aplicações e melhorias com um considerável sucesso comercial, a citar: alimentação animal, fibras naturais, purificação de água e solo, biocombustíveis e uso medicinal.

O potencial terapêutico dos fitocanabinoides

A química da Cannabis e sua farmacodinâmica podem ser algo um pouco complexo à primeira vista. Elas são uma ciência um tanto quanto recente, cuja compreensão iniciou com o isolamento do THC em meados de 1960 e posteriormente com a descoberta do sistema endocanabinoide.

Este sistema é bastante distribuído por todo o cérebro e medula espinhal dos mamíferos, sendo responsável por controlar diversos processos fisiológicos relacionados ao neurotransmissão sináptica (mecanismo de comunicação entre os neurônios e dos neurônios com os tecidos efetuadores).

Por isso, várias funções fisiológicas são reguladas pelo sistema endocanabinoide, como: processos inflamatórios, regulação do apetite, metabolismo, termogênicos, desenvolvimento neurológico, função imune, digestão, dor, memória, doenças psiquiátricas, movimento, computador psicomotor, ciclo do sono, entre outros. Por outro lado, muitas patologias neurológicas também ocorrem devido à sinalização descontrolada desse sistema. Portanto, seja qual for o referencial, o sistema endocanabinoide emprega um papel importante no organismo, sendo altamente mediado pelos canabinoides.

Ao longo dos últimos 70 anos, foram identificados pelo menos 60 compostos quimicamente distintos em plantas do gênero Cannabis que interagem com os receptores do sistema endocanabinoide, ocasionando respostas neurológicas com potencial terapêutico.

O THC é de longe o mais estudado e responsável pelo efeito psicotrópico da Cannabis.  Já os demais apresentam pouca ou nenhuma propriedade psicotrópica, sendo apresentados como potenciais terapêuticos. Por exemplo, o canabinol que, além de não causar efeito físico-mental no usuário, demonstrou ser um excelente medicamento analgésico, antipirético, antináusea, anti-inflamatório e ansiolítico.

Para ilustrar o amplo espectro de ação dessa planta, abaixo é apresentada uma lista de pesquisas e práticas médicas relacionadas ao uso de Cannabis.

No entanto, há divergências. Um aspecto muito importante que ainda não foi completamente elucidado pela ciência diz respeito aos efeitos colaterais futuros do uso terapêutico da Cannabis. A maioria das informações confiáveis relacionam estudos do uso recreativo da planta e não consideram algumas variáveis associadas a essa rotina terapêutica, como: idade do paciente, dosagem padrão, esterilidade da matéria-prima, qualidade microbiológica, efeitos psicotrópicos, entre outros.

Mesmo que ainda recente, duas coisas são notórias para a ciência da Cannabis: não há nenhuma evidência documentada sobre morte pelo seu uso excessivo; e o problema de dependência química pode ser diminuto se comparado a outras substâncias.

Assim, é inegável o quão benéfico é o uso de medicamentos derivados de Cannabis. Não somente isso, o potencial dos derivados de Cannabis não se limita exclusivamente aos fitocanabinoides, pois ainda há espaço para investigar a ação conjugada de seus componentes bem como os demais constituintes da planta – flavonoides, terpenos, ácidos graxos, etc. Portanto, o que fica aqui é um convite para amadurecer ainda mais essa nova ciência.

E como a biotecnología se relaciona com a Cannabis?

Desde a descoberta do princípio ativo THC em 1946, a biotecnologia vegetal teve um papel fundamental na iniciação e consolidação da ciência da Cannabis.

O sequenciamento do genoma dessas plantas contribuiu na organização taxonômica do gênero Cannabis, o advento das era das ômicas (transcriptômica, proteômica e genômica) favoreceu a compreensão das vias metabólicas da planta, em especial aquelas associadas à produção de fitocanabinoides. Consequentemente, todo esse conhecimento acumulado abriu e continua abrindo portas para novas pesquisas multidisciplinares, como é o caso do emprego de ferramentas de bioinformática na identificação de biomoléculas com potencial tecnológico e outros.

As pesquisas nessa ciência são vastas e listadas em inúmeras publicações na literatura, circundando em áreas da cultura de células vegetais, novos medicamentos, engenharia genética e inclusive biologia sintética. No que diz respeito ao último, destaca-se pesquisa de Carvalho e colaboradores (2017) na exploração do uso da biologia sintética como alternativa para síntese de canabinoides em hospedeiros heterólogos. Já no contexto prático, Zirpel e colaboradores (2015) construíram uma Pichia (Komagataella) pastoris recombinante capaz de secretar uma enzima responsável pela síntese de THC.

Perfil de Rodrigo Cano
Texto revisado por Luana Lobo e Mariana Pereira

Cite este artigo:
CANO, R. F. O uso medicinal de derivados de Cannabis. Revista Blog do Profissão Biotec, v.3, 2018. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/o-uso-medicinal-de-derivados-de-cannabis/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

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