Um dos grandes desafios da medicina são os pacientes que precisam de transplantes de órgãos. Apenas no Brasil existe uma fila de 45 mil pessoas esperando por um transplante de coração, fígado, rins, córneas, entre outros… Essa fila poderia andar mais rápido se houvessem mais doadores e mais famílias que autorizassem a doação.
Mas não são apenas os doadores escassos que dificultam o processo, o transplante de órgãos é uma cirurgia complexa que demanda pessoal especializado e mesmo depois do procedimento bem sucedido o paciente está sujeito a uma possível rejeição do órgão transplantado, pelo seu próprio sistema imunológico. No entanto, dentro da biotecnologia está surgindo uma alternativa para esse problema, a bioimpressão de tecidos e órgãos.
O que é o processo de Bioimpressão 3D?
A bioimpressão é uma técnica inspirada na impressão 3D, que utiliza impressoras que depositam a biotinta (substância composta por células e um hidrogel a base de água, biocompatível) em uma sequência programada computacionalmente para formar um tecido ou órgão desejado. A bioimpressão acontece em 3 etapas distintas:
- Pré-processamento
- Processamento
- Pós-processamento
Na etapa de pré-processamento, é definido qual tecido/órgão será construído, em qual formato, e quais materiais serão utilizados. O projeto da bioimpressão é elaborado em softwares de desenho e exige conhecimentos sobre a anatomia e histologia do tecido, além de técnicas de fatiamento e transferência.
O processamento é a etapa que ocorre a bioimpressão em si, onde a bioimpressora realiza seu papel caso a etapa anterior tenha sido realizada da forma correta.
Na etapa de pós-processamento, também chamada de condicionamento de órgãos ou maturação acelerada de órgãos, as células depositadas durante a bioimpressão são estimuladas a se diferenciar nas linhagens específicas daquele tecido. Ao final dessa etapa se espera que a morfologia e função sejam a do órgão desejado. O produto da bioimpressão, sendo um tecido ou órgão pode ser chamado de construto.
Técnicas mais utilizadas na bioimpressão de tecidos e órgãos
Existe uma variedade de técnicas para transferência das células na bioimpressão, sendo elas:
- Inkjet: Foi a primeira técnica a surgir; trabalha por meio de jato de tinta piezoelétrico, semelhante às impressoras 2D que temos em casa.
- Laser: A bioimpressão a laser é realizada pela deposição de biotinta sobre uma placa com a aplicação de laser.
- Micro extrusão: A técnica de extrusão é a mais semelhante com as impressoras 3D convencionais que trabalham por deposição da biotinta através de uma agulha que pode funcionar por pressão mecânica, pneumática ou por rotação.
- Microfluídica: Essa técnica trabalha com fluxo constante de líquido contendo as células de interesse.
- FRESH: Freeform Reversible Embedding of Suspended Hydrogels ou incorporação reversível de forma livre de hidrogéis suspensos, consiste na deposição de biotinta, normalmente a base de matriz extracelular (MEC) em uma base de gelatina. A gelatina funciona como um scaffold (suporte) para o construto que pode ser retirado de seu interior com aumento da temperatura, já que à 37º C a gelatina derrete e a MEC se solidifica.
- SWIFT: Sacrificial writing into functional tissue ou gravação sacrificial em tecido funcional, consiste no preenchimento de um molde no formato desejado com esferóides e bioimpressão apenas dos vasos que compõem aquele tecido.
- Coaxial: Baseada na utilização de duas agulhas com deposição de materiais diferentes do lado de dentro e do lado de fora do construto, ideal para a bioimpressão de tecidos cilíndricos.
- In situ: Neste caso a bioimpressora se torna um revólver com o qual o profissional irá depositar a biotinta diretamente no tecido do paciente, ideal para tratamentos dermatológicos, por exemplo.
- Kansen: Essa técnica se baseia na deposição de esferóides em microagulhas que serviram de suporte para o construto. Ela é vantajosa do ponto de vista da resolução e da quantidade de células por mililitro, não necessitando de hidrogel.
As técnicas de inkjet, laser e microfluídica são as mais precisas e com melhor resolução de bioimpressão. No entanto elas também possuem alto custo, são limitadas à fabricação de pequenos tecidos e exigem biotintas pouco viscosas, o que diminui a sustentação do construto. Já a micro extrusão é a técnica mais utilizada por ser mais facilmente escalonada, com capacidade para bioimpressão de tecidos maiores e com uso de biotintas com diferentes viscosidades. A deposição da biotinta na micro extrusão mecânica, por exemplo, se dá através de uma seringa (onde está armazenada a biotinta) que é pressionada de maneira precisa por um pistão.
A técnica de SWIFT supera uma limitação da bioimpressão que é a quantidade de células por mililitro de biotinta. Na microextrusão por exemplo, é possível obter 10 milhões de células por mililitro. Pode parecer pouco em comparação com o tecido humano, que possui cerca de 1 bilhão de células por mililitro, no entanto essa técnica ainda está em desenvolvimento, já na técnica de SWIFT são utilizadas apenas os esferóides de células, sem a necessidade de um hidrogel, o que aumenta a quantidade de células por mililitro de construto.
Quais materiais são utilizados?
As biotintas são compostas por diversos tipos celulares, podendo ser células-tronco tais como células da medula óssea, mesenquimais, embrionárias ou iPSs (células-tronco pluripotente induzidas) e também podem ser usadas células diferenciadas. As culturas de células utilizadas na bioimpressão podem ser primárias (células que foram retiradas do tecido original e cultivadas por um determinado período de tempo) ou secundárias (subculturas das células primárias). Também podem ser utilizadas células de linhagem, no entanto, essas seriam para outros tipos de bioimpressão 3D, que não a de tecidos e órgãos.
Além de usar células para confecção das biotintas, é preciso pensar qual a melhor maneira de utilizá-las. Células oriundas de cultivo em monocamada podem não possuir tanta estabilidade, com tempo de vida curto, ou pouca capacidade de diferenciação. Para driblar esse problema, pesquisadores as têm substituído por esferóides.
Os esferóides são agregados de células em formato esférico que já são produzidos com tamanho e número de células padronizado. Essa técnica faz parte do cultivo celular 3D, um tipo de cultivo que favorece a diferenciação celular por mimetizar o ambiente que a célula encontraria dentro do organismo humano, diferentemente de células que são cultivadas em placas no sistema tradicional 2D.
Alguns dos métodos de se obter esferóides são a semeadura de células em moldes de ágar (com poços micrométricos nos quais as células irão sedimentar), a agitação, o hanging-drop e as beads magnéticas. As células dentro de um esferóide irão aderir umas às outras através de proteínas de membrana e fibras da matriz extracelular (MEC) formando um agregado estável 3D.
e membrana e fibras da matriz extracelular (MEC) formando um agregado estável 3D.
Esses esferóides ao serem depositados pela bioimpressora no formato do tecido/órgão desejada possuem muito mais possibilidade de se desenvolver do que células esparsas dentro de uma biotinta, por já possuírem uma configuração 3D e o aporte de estímulo umas das outras para se diferenciarem.
Para além das células, a biotinta também é composta de um material conhecido como hidrogel. O hidrogel, como já mencionado deve ser a base de água e biocompatível, mas também deve possuir viscosidade adequada para que a bioimpressão ocorra da maneira adequada, deve ser capaz de manter a viabilidade das células e estruturar o tecido/órgão bioimpresso ao longo do tempo até que esteja maduro. Alguns hidrogéis também podem ser bioabsorvíveis e nutritivos para as células.
Histórico da bioimpressão no mundo e no Brasil
O professor Vladimir Mironov, da Virginia Commonwealth University (EUA), foi pioneiro nesta técnica realizando a primeira bioimpressão em 2003, quando surgiram os primeiros artigos publicados sobre o tema, destacando os desafios e as potencialidades da bioimpressão. Hoje Vladimir também lidera o laboratório 3D Bioprinting Solutions, uma empresa que comercializa bioimpressoras e biotintas localizada em Moscou (Rússia).
No ano de 2004 foi realizado o Primeiro Workshop de Bioimpressão e Biopadronização na University of Manchester (Reino Unido) e desde então os trabalhos desenvolvidos na área cresceram exponencialmente. Vladimir foi recebido no Brasil em 2015 pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (INMETRO) e o Centro de Tecnologia da Informação (CTI) Renato Archer. O pesquisador veio apresentar um relatório sobre a construção da glândula tiróide de rato, que foi bioimpressa e transplantada com sucesso e permaneceu 5 anos no Brasil realizando treinamentos de bioimpressão.
Dentre os trabalhos de bioimpressão mais conhecidos no mundo estão o de bioimpressão de nariz e coração. A bioimpressão de nariz foi realizada por pesquisadores de Zurique (Suíça) e a do coração realizada em Israel. Esse coração foi impresso dentro de uma cama de gelatina que servia como suporte para o órgão no sistema fresh. Ambos os exemplos foram para demonstração da técnica, e não puderem ser implantados.
Atualmente no Brasil, existem muitos grupos de pesquisa e Startups empenhadas no desenvolvimento e promoção da Bioimpressão, sendo algumas delas BioEdTech e 3DBS. Falamos mais detalhadamente sobre as empresas de bioimpressão brasileiras nesse texto.
Desafios e potencialidades da bioimpressão 3D
É possível imaginar que bioimprimir um tecido ou órgão não é uma tarefa simples, por isso até hoje essa técnica acontece em grande parte apenas dentro dos laboratórios de pesquisa de universidades e empresas que se esforçam para tornar a bioimpressão viável para produção em larga escala e para aplicações clínicas.
Alguns dos desafios a serem superados para que essa tecnologia se popularize são: o alto custo dos materiais e equipamentos utilizados, a dificuldade da padronização e confiabilidade dos métodos, a dificuldade de se trabalhar em um ambiente estéril que impeça a contaminação da cultura e do construto durante a bioimpressão e o transplante, a construção de tecidos que são morfodependentes (como o coração), a vascularização dos tecidos, além dos requisitos exigidos na legislação para que esse tipo de terapia seja aprovada. No Brasil esses produtos são classificados como “produtos de terapia avançada” e regulamentados pela ANVISA.
Pensando no que já foi feito dentro do campo da bioimpressão para transplante de órgãos e tecidos, podemos compreender um pouco do seu potencial. Até o momento já foram bioimpressos uma glândula tireóide e um ovário, e ambos foram implantados e funcionaram com sucesso em camundongos. E para aplicação em humanos, um bom exemplo é o biocurativo produzido pela empresa In situ, que é produto de bioimpressão 3D e contém células-tronco para o tratamento de feridas. Esse produto já está em fase de submissão do dossiê na ANVISA.
Além da bioimpressão focada em órgãos e tecidos, a técnica também pode ser utilizada para:
- Alternativa a testes de cosméticos com a biompressão de epitélio da córnea ou de pele 3D;
- Testes de novos fármacos que poderiam ser realizados em tecidos que mimetizam tecidos humanos;
- Estudo de doenças em órgãos bioimpressos;
- Pesquisa básica que ajudará a compreender o funcionamento dos órgãos e tecidos humanos.
Podemos perceber que a bioimpressão é uma técnica bastante complexa e com muitos desafios a serem superados, mas também com inúmeras potencialidades. Algumas dessas finalidades já estão se tornando reais, como o uso em estudos in vitro. Por enquanto, podemos apenas imaginar rumos dessa tecnologia, mas em breve a biotecnologia pode tornar tudo isso realidade na clínica médica.
Cite este artigo:
MEDRADES, J. Bioimpressão para o transplante de órgãos. Revista Blog do Profissão Biotec, v.8, 2021. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/bioimpressao-para-transplante-orgaos/ > . Acesso em: dd/mm/aaaa