Palavras ao leitor…

Como um sistema de defesa de bactérias tornou-se um elemento chave da biotecnologia, a fim de revolucionar ciência, agricultura e medicina? Este texto vai te introduzir à origem, ao funcionamento molecular e às aplicações do sistema CRISPR/Cas9, assim como suas implicações bioéticas!

Como surgiu?

Quando pensamos em inovações no campo da ciência biológica, sempre (ou quase sempre) as associamos a novos métodos desenvolvidos, tais como a invenção do sequenciamento do genoma. No entanto, o sistema que mais ganhou repercussão nos últimos anos não é nada novo – surgiu como uma forma de evitar a infecção por bacteriófagos em determinadas bactérias.

 Como funciona?

Chamado de CRISPR/Cas, o sistema é acionado quando o vírus entra na bactéria: esta reconhece o DNA exógeno e enzimas (Cas) cortam pedaços deste material e os introduzem em uma região genômica específica da bactéria, chamada de lócus CRISPR. Já nas próximas infecções virais, as bactérias que contêm esses pedaços do DNA do vírus inseridos no lócus CRISPR geram um RNA a partir dessa sequência. Este RNA irá se associar à enzima Cas e, então, dirigir-se ao DNA viral, que é então clivado e, assim, inativado, conforme ilustrado na imagem abaixo.

Figura 01. Esquema ilustrativo do sistema CRISPR/Cas. Adaptado de: HORVATH, 2010.

Na engenharia genética, este sistema foi aprimorado para ser aplicado na edição genômica (ou de genes). Esta versão do sistema consiste em um RNA guia de fita única, desenhado para uma sequência alvo de interesse (via pareamento de bases complementares), associado à enzima Cas9 (9 porque apenas esta se associa a RNAs de fita simples), que corta o DNA nas duas fitas numa mesma posição. Porém, apenas o corte não é suficiente para gerar a alteração na sequência alvo.

Figura 02. Esquema ilustrativo da estrutura do sistema CRISPR/Cas9 e seu pareamento com a sequência de DNA alvo. Adaptado de: Ran et al., 2013.

Uma vez clivado o DNA, é acionada uma destas vias:

(i)  Via de reparo de DNA por “junções de pontas não homólogas”: neste caso, há a junção direta a partir das pontas geradas pelo corte, a qual é predisposta a erros, gerando pequenas deleções ou inserções de nucleotídeos nos locais onde ocorreu o corte e, assim, gera uma sequência não funcional;

(ii) Reparo dirigido por homologia: este caso ocorre quando, além do sistema CRISPR/Cas9, está presente um pedaço de DNA “doador”, o qual é inserido na região do corte, usado a fim de corrigir uma alteração na sequência (eis a terapia gênica) ou inserir uma mutação específica, com fins de estudá-la (geração de células mutante-específico).

Figura 03. Esquema ilustrativo das vias ativadas após o corte do DNA dupla-fita pela Cas9. Fonte: Advanced Analytical.

Entretanto, nem tudo são flores. Embora o sistema de edição possua a melhor eficiência e melhor custo-benefício em relação a outras tecnologias de edição gênica (como TALENs, ZFNs, e afins), ele ainda possui efeitos fora-do-alvo (isto é, pode ligar-se a outras partes do genoma e cortá-las), o que o inviabiliza (ao menos até certo ponto) para uso clínico. Porém, antes de desistir desta tecnologia, vale saber que enzimas com mais especificidade já estão sendo construídas – eis a beleza da engenharia genética!   

Além disso, mais recentemente, foram desenvolvidas variantes do sistema CRISPR/Cas9, permitindo diferentes resultados (Ilustrado na Figura 04). Um exemplo é a utilização de uma enzima Cas9 “defeituosa”. Esta não cliva o DNA, porém permanece na sequência alvo do RNA guia e, em sua estrutura, pode ser adicionado um fator ( geralmente uma proteína) ativador ou repressor. Este, respectivamente, estimula e reprime a expressão do gene (isto é, permite, ou não, que o gene gere transcritos – RNA mensageiro – que são transformados em proteínas pelo processo de tradução).

Figura 04. Ilustração das variantes do sistema CRISPR/Cas9. Adaptado de: NewEngland BioLabs.

E suas aplicações?

As aplicações de edição gênica por CRISPR/Cas9 são numerosas, embora ainda não se utilize na clínica. Mutações que causam doenças podem ser corrigidas, principalmente as doenças monogênicas (isto é, causadas por uma mutação em um gene) – como a distrofia muscular de Duchenne. Por meio desta tecnologia, pode ser inserida uma mutação para avaliar o papel de um gene, ou ainda, para construir modelos de uma certa doença e assim estudá-la para sua melhor compreensão.

Mas calma…

Apesar das belas aplicações, tal tecnologia tem reavivado a discussão em torno da edição gênica nos embriões. O debate no âmbito bioético sobre a criação de bebês customizados ou “designer babies” não é algo tão recente (já em 1997 o filme de ficção científica Gattaca retrata a manipulação genética em embriões). Mas vale apontar que, nos últimos meses, esse assunto se tornou manchete de quase todos os jornais e mídias sociais.

A polêmica se deve aos recentes experimentos conduzidos pelo pesquisador chinês He Jiankui, nos quais diz haver alterado os genes de gêmeas para protegê-las do vírus HIV (confira a matéria aqui, em inglês). Embora tal ato tenha sido desaprovado por toda (ou quase toda) a comunidade científica (e a sociedade), nos Estados Unidos algo parecido pode ocorrer: o cientista Werner Neuhausser, da Universidade de Harvard, utilizará o sistema CRISPR para modificar o DNA de espermatozoides na tentativa de gerar bebês fertilizados in vitro com risco reduzido de apresentar a doença de Alzheimer em algum momento da vida (cujo texto foi publicado pelo MIT Technology Review, 29/11/18).

E a pergunta que não quer calar é: A sociedade está pronta para alteração genética em linhagens germinativas (ou seja, em células que passem a outras gerações – óvulos, espermatozoides, embriões)?

Pronta ou não, há uma certeza: a tecnologia CRISPR é a protagonista da terapia gênica. Se otimizada, esta ferramenta de edição gênica pode trazer grandes benefícios para diversas doenças, além de possibilitar a melhor compreensão de patologias com causas desconhecidas. Sendo assim, a biotecnologia é o agente que levará a tecnologia biológica mais próxima da sua aplicação e, assim, permitirá o uso dessa potente ferramenta fora dos laboratórios de pesquisa básica.      

Referências:
  1. Sontheimer, E. J.; Barrangou, R. The Bacterial Origins of the CRISPR Genome-Editing Revolution. Hum. Gene Ther. 26, p. 413–424. 2015.
  2. Ran, F. A.; Hsu, P. D.; Wright, J.; Agarwala, V.; Scott, D. A.; Zhang, F. Genome engineering using the CRISPR-Cas9 system. Nature Protocols. v.8, n.11. p. 2281-2308. 2013.
  3. Zhang, F.; Wen, Y.; Guo, X. CRISPR/Cas9 for genome editing: progress, implications and challenges. V.23, p. 40-46. 2014.
  4. Horvath, P.; Barrangou, R. “CRISPR/Cas, the immune system of bacteria and archaea”. Science. 327 (5962): 167–70. 2010.
Revisado por Carolina Bettker e Thais Semprebom

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