Todos conhecemos alguém que tem ou já teve câncer, essa doença angustiante e relutante em ir embora. Mas o que exatamente essas células têm de diferente em relação às células ‘normais’? O que é terapia gênica e qual é sua vantagem sobre as outras formas de terapia, como a quimioterapia? O que a biotecnologia tem a ver com terapia gênica? Este texto abordará os conceitos, aplicações e implicações deste método promissor de combater doenças.
O que é o câncer?
O câncer é uma condição patológica caracterizada pela presença de células que portam alterações em seus programas de crescimento celular, resultando em seu crescimento populacional descontrolado e assim, em um grupo de células que não respondem aos mecanismos de manutenção tecidual. Entre as características dessas células, se destacam capacidades de proliferação descontrolada, de evasão ao sistema imune, de resistência à morte celular e também a instabilidade genética.
Como surge o câncer?
O aparecimento do câncer não ocorre de um dia pro outro – é um processo lento e progressivo. Ao longo dos anos, as células são submetidas a constantes danos exógenos (que vem de fora, como raios ultra-violetas (UV), poluição, etc.) e endógenos (patógenos, estresse celular, inflamação crônica, toxinas), os quais causam mutações no seu material genético. Dependendo do lugar genômico em que surgem, estas mutações promovem o aparecimento de padrões comportamentais diferentes, tais como as características das células cancerosas.
O DNA que cura: O que é a Terapia Gênica?
Terapia gênica é uma estratégia de tratamento que utiliza um gene como terapia, introduzindo-o para dentro de células alvo a fim de curar doenças. É isso mesmo, genes como um medicamento! De forma geral, esse tipo de terapia se baseia na correção de um gene defeituoso, substituindo-o por um saudável, ou na inserção de genes que estão inativos no paciente. Tudo isso é feito através da tecnologia do DNA recombinante (conjunto de técnicas da engenharia genética que permite a seleção de uma sequência gênica específica para introdução em uma célula alvo específica).
Conforme a imagem a seguir indica, a maioria dos ensaios clínicos com uso de terapia gênica correspondem à área oncológica. Isso demonstra o interesse já existente nessa área.
No contexto do câncer, as terapias gênicas são direcionadas a genes tumorais responsáveis pelo comportamento maligno das células e pela resistência a tratamentos convencionais (como a quimioterapia). Entretanto, também há tratamentos que se dirigem a genes que impedem que tal comportamento apareça nas células – os chamados genes supressores de tumor – quando estes estão danificados.
A terapia gênica tem duas classes de protagonistas: agentes terapêuticos e agentes que entregam.
O funcionamento do sistema se assemelha ao papel de um motoboy – método de entrega – levando a encomenda – o material terapêutico em si – ao local ou sítio alvo,ilustrado no esquema a seguir e explicado em detalhes mais adiante no texto:.
Quem são esses terapêuticos genéticos?
As estratégias terapêuticas se baseiam em diversos tipos de materiais genéticos usados na terapia gênica:
1. Terapia de gene suicida
Engloba genes que, uma vez dentro da célula tumoral, produzem proteínas terapêuticas ou transformam compostos não-letais em letais. Um exemplo é o uso do sistema HSV-tk/GCV (sigla de tirosina quinase de vírus simples de herpes / ganciclovir), no qual o gene produz uma enzima que torna o medicamento inativo GCV em sua forma ativa, que então impede o funcionamento da maquinaria de replicação de DNA na célula, impedindo sua divisão e levando à morte celular.
2. Silenciamento gênico
- Por RNA de interferência (RNAs de pequeno tamanho, como siRNA e shRNA), esta estratégia tem o objetivo de suprimir a produção de proteínas codificadas pelos genes alvos por meio de sua ligação, via um complexo denominado RISC, por complementaridade a RNAs mensageiros de genes importantes no contexto tumoral. Tal estratégia possui alto grau de especificidade.
- Por Oligonucleotideos Antisenso (OAS) – pequenas sequências de nucleotídeos de fita simples que se ligam a mRNAs alvos, através de complementaridade, suprimindo a produção de proteínas codificadas por eles.
- Por Aptâmeros – DNA ou RNA de fita simples, quimicamente sintetizado e empacotado formando uma estrutura secundária ou terciária. Devido a esta estrutura, ele pode se ligar a diversos alvos, incluindo aminoácidos, drogas, proteínas e células. Sua forma de ligação aos alvos se assemelha ao método de chave-fechadura, pois se trata de reconhecimento devido a conformação estrutural do alvo.
3. MicroRNA
RNAs curtos que regulam a expressão e função de RNA mensageiros (que contém a informação para codificação para proteínas). O objetivo de usar microRNAs como terapia é restaurar a função normal de outros microRNAs associados ao aparecimento e progressão do câncer. Isto pois a quantidade de material de diversos microRNAs está alterada em contextos tumorais.
Ficou confuso sobre os tipos de RNA? Leia nosso texto sobre os diferentes tipos de RNA!
Mas como levar a encomenda? O ‘motoboy’ é o Vetor!
O material precisa ingressar na célula para poder agir. Para isso, é necessário o uso de um veículo – denominado vetor. Como estratégias de entrega, são utilizadas duas categorias de vetores: virais e não-virais.
1. “Vírus motoboys”
Utilizar vírus como entregadores é o método mais eficiente e é o mais testado em ensaios clínicos. Diversos tipos de vírus são usados: adenovírus, lentivírus, retrovírus e vírus adeno-associado. Todos eles diferem em suas capacidades de empacotamento, especificidade de hospedeiro, capacidade de integração do seu material ao DNA do hospedeiro e tendência de promover respostas imunes.
Embora os vírus sejam os mais usados, existem várias limitações quanto ao seu uso, os quais devem ser melhor estudados para viabilizar sua aplicação clínica. Dentre elas, destacam-se:
1) a necessidade de diminuir as fortes respostas imunes contra o vetor;
2) os efeitos tóxicos ao fígado decorrentes da repetição de doses; ;
3) a baixa especificidade de entrega, atingindo vários tecidos.
Para saber mais sobre este assunto, clique aqui.
2. Exossomas
Vesículas extracelulares, compostas por uma membrana natural. Liberam suas cargas diretamente ao citoplasma da célula alvo e possuem várias vantagens em relação a outros tipos de entrega:
1) permanecem por mais tempo na corrente sanguínea, o que aumenta sua disponibilidade;
2) possuem especificidade tecidual;
3) possuem baixa toxicidade
4) são biocompatíveis.
Porém, por apresentarem baixa eficiência de isolamento e terem custosa produção em grande escala, ainda estão longe de serem utilizados em testes clínicos
Para saber mais sobre exossomas, veja este vídeo do TEDx Talks.
3. Bactérias
Representam os mais recentes vetores emergentes. Tem capacidade de replicação em sítios tumorais caracterizados por vasculatura atípica e supressão imune local. Comparados aos vetores virais, são mais fáceis de serem produzidos. No entanto, ainda estão sendo aprimorados para evitar possíveis infecções sistêmicas.
Clique aqui para saber mais sobre “bactérias moto-boys”.
4. Células-tronco
Caracterizadas por terem capacidade de se diferenciar em diversos tipos celulares, são utilizadas como vetores pois apresentam uma fácil expansão. Definidas por sua origem, as Células-Tronco Mesenquimais, extraídas da medula óssea ou tecido adiposo, são as mais utilizadas, pois conseguem entregar vários agentes terapêuticos em diversos tipos tumorais. Durante o processo de preparo dessas células, estas são geneticamente modificadas para a produção de proteínas específicas, que serão entregues às células alvo.
5. Nanopartículas
Representam uma classe bastante promissora de entregadores, já que tem algumas vantagens sobre outros tipos: (i) tem uma alta razão de área superficial por volume, permitindo alto carregamento de material; (ii) tem capacidade de responder ao microambiente em que está inserido.
As nanopartículas são classificadas em 3 tipos:
1. Baseados em Lipídeos – constituídos vesículas microscópicas semelhantes à membrana plasmática celular que entram na célula via endocitose. Em seu interior, carregam o material terapêutico, que é dessa forma protegido da degradação por enzimas na circulação sanguínea. A biocompatibilidade é uma vantagem que os destaca como vetores promissores; no entanto, sua produção é de alto custo.
2. Baseados em Polímeros – Entre suas vantagens, estão o tamanho pequeno, a vasta distribuição e a estabilidade, tanto in vitro quanto in vivo. Ainda, moléculas de superfície específicas de células tumorais se ligam a estas estruturas, aumentando a assertividade da entrega. Além disso, estas estruturas podem ser moduladas – já que respondem a estímulos externos como temperatura, pH – e dessa forma, também a liberação do material que contém.
3. Inorgânicas – Incluem nanopartículas de carbono, de fosfato de cálcio, de ouro, entre outros. Possuem propriedades elétricas, magnéticas e ópticas únicas, as quais podem aumentar a eficiência de entrega dos genes terapêuticos, além de abrirem espaço para outras funcionalidades da estrutura.
Para saber mais sobre nanopartículas, veja esta notícia da FAPESP.
Como você pode ver, existem várias estratégias de terapia celular, e todas elas estão sendo aprimoradas por pesquisadores para poderem ser utilizadas na prática clínica. Esse processo envolve a manipulação do material genético (a “entrega”), para deixá-lo mais eficiente e estável, assim como dos vetores (“os motoboys”), de forma que sejam mais específicos ao alvo,melhorando as condições de segurança para os pacientes.
O futuro da terapia gênica é promissor! Uma vez sendo mais assertivo do que a quimioterapia, geraria menos efeitos colaterais no paciente, além de apresentar maiores eficiências na ação. Portanto, o aprimoramento destas técnicas terapêuticas permitirá seu uso, auxiliando as terapias convencionais, como quimioterapias, de forma a aumentar a chance de cura, e diminuir as taxas de recorrências dos tumores. E assim, mais uma vez, a biotecnologia está na frente da batalha para melhorar a qualidade de vida da população.
Alguns links úteis sobre o assunto:
TEDx Talks – Bringing Gene Therapy to the Table | Dr. Jennifer Adair | TEDxNashvilleSalon
U.S Food and Drug Administration – Gene Therapy Inside Out