Você sabia que não só os antibióticos podem matar bactérias que causam doenças? Os bacteriófagos são os protagonistas desta história! Vem conferir no texto!

O uso indiscriminado de antibióticos, ao longo dos anos, levou ao aparecimento de espécies e cepas bacterianas multirresistentes, conhecidas como superbactérias. Paralelamente a isso, ocorreu uma diminuição na obtenção de novos antimicrobianos que não possuam resistência por tais micro-organismos, entre outras, pela dificuldade na síntese de moléculas cujas ações não sejam afetadas pelas bactérias.

O que poucos sabem é que, anterior à descoberta dos antibióticos, era sugerido que infecções bacterianas fossem tratadas com bacteriófagos – vírus que atacam bactérias. E, atualmente, neste cenário desolador dos antimicrobianos, a terapia com fagos retorna às telas da comunidade científica.       

A história da fagoterapia

O nome bacteriófago é originado das palavras “bactéria” e “fagein” (devorar, em grego). Há aproximadamente cem anos, os bacteriófagos foram isolados a partir de fezes de pacientes com disenteria, e durante o século XX, foram amplamente usados para tratar pacientes com infecções. Em 1921, crianças com disenteria tóxica foram curadas através da administração oral de fagos em um dia. Em 1921, na Alexandria, 4 pessoas foram tratadas da peste bubônica com injeção de fagos diretamente a linfonodos acometidos. Em 1927, durante a epidemia de cólera na Índia, pacientes foram tratados com fagos, reduzindo a taxa de mortalidade de 63%, em pacientes não-tratados, para 8%, em pacientes tratados. 

Essas e outras histórias demonstram o poder da utilidade dos fagos no combate às infecções bacterianas. Mas nos dias atuais, cocktails de fagos diferentes são apenas utilizados na Rússia, para o tratamento de infecções bacterianas. Isto se deve ao fato de que, com a descoberta de antibióticos em meados de 1928 por Alexander Fleming, as terapias com fagos passaram ao segundo plano, sendo abandonadas em vários países, como Estados Unidos e os da Europa Ocidental. E ainda, com a destruição das coleções de fagos do Instituto Pasteur em Paris e Lyon, na década de 1980, a produção comercial desses ‘micro-organismos’ cessou. 

No entanto, na China, o uso de fagos como terapia é uma prática antiga (século IV) na medicina chinesa, usado inicialmente contra infecção alimentar e diarreia. Nomeada de “sopa amarela”, a solução consistia em fezes diluídas em água e fermentadas. A partir desta, introduziu-se o que hoje se conhece por Transplante de Microbiota Fecal (TMF). 

Mais recentemente, em 2010, foi realizado um TMF a um paciente com diarreia crônica causada por uma bactéria, obtendo a cura. E o interessante: a composição viral do paciente se tornou semelhante àquela do doador, podendo indicar que o transplante fecal é mais uma fagoterapia do que uma bacterioterapia, já que fagos estão em maior quantidade do que bactérias nos bolos fecais, indicando que fagos específicos podem ajudar no estabelecimento de uma microbiota saudável. 

Figura ilustrativa do microambiente intestinal. Células da parede do intestino estão representadas em rosa. As microvilosidades da luz intestinal estão representadas na superfície superior às células. Bactérias estão representados nas cores vermelha, alaranjado e amarelo. Após um tratamento com diferentes fagos, o intestino se apresentaria na forma da segunda imagem. Fonte: LJNovaScotia/35images/Pixabay

Dado a que a fagobiota aparentemente se mostra importante, terapias fágicas podem ser úteis para tratar diversas doenças caracterizadas por uma microbiota alterada, como é o caso de Diabetes Mellitus. E ainda, já que não se verificam efeitos adversos, a comunidade científica está aceitando tal prática, inclusive para outras doenças, como Síndrome do Intestino Irritável, obesidade, etc. Neste contexto, a manipulação de populações específicas de fagos é essencial para a eficiência da abordagem terapêutica

O que são os Bacteriófagos? 

Bacteriófagos (ou fagos) são um grupo de vírus que atacam e infectam bactérias. Existem em grande diversidade (já foram catalogados mais de 5100) e são os mais abundantes no planeta terra. E cada espécie bacteriana pode ser infectada por mais de um tipo de bacteriófago. Esses vírus são formados por ácido nucléico e proteína, sendo que a maioria carrega DNA de fita simples e linear. 

Estruturalmente, esse vírus é composto por uma cabeça em formato de icosaedro (um poliedro convexo de 20 faces) ligado a uma cauda proteica helicoidal. A cabeça é formada por unidades proteicas, que conferem proteção ao ácido nucléico e determinam qual a bactéria alvo desse bacteriófago. A passagem do material genético do vírus da cabeça à cauda só ocorre quando o vírus está anexado à célula hospedeira. A região dos pinos contém estruturas proteicas que interagem com moléculas na superfície das bactérias e assim, tem papel na infecção destas células.   

Figura representativa de um bacteriófago de tipo T4. O ácido nucléico está acomodado no interior da cabeça. Fonte (Adaptada): mogus/3images/Pixabay

O ciclo de vida do vírus, uma vez na célula, pode divergir entre a forma Lítica e a forma Lisogênica (ver na figura abaixo). Isso depende de algumas variáveis como a virulência do vírus (e portanto o tipo de bacteriófago) e o estado fisiológico da bactéria.

 No ciclo lítico, a célula ficará incapaz de usar sua maquinaria celular para benefício próprio e ocorrerá a replicação viral. Na fase final do ciclo, serão produzidas enzimas que quebram ligações, promovendo o rompimento da membrana e parede celular da bactéria, que então morre, e consequentemente a liberando as partículas virais. Já o ciclo lisogênico ocorre quando o material genético do vírus é integrado ao genoma bacteriano, mantendo-se como parte dele ao longo das gerações. 

 Para se obter os efeitos desejados, o vírus deve ser de alta virulência, isto é, com grande capacidade de matar a célula bacteriana (portanto, desencadear a lise celular). Isto é uma vantagem sobre o uso de antibióticos, pois alguns destes não são bactericidas, e sim bacteriostáticos – não inviabilizando a célula – o que permite aparecimento de cepas resistentes. 

Figura ilustrativa dos ciclos lítico (A,B,C,D) e lisogênico (A,E,F), presentes na vida dos bacteriófagos. A: Ocorre a adsorção do material genético do vírus, que entra na célula. B: O material genético viral é replicado. C: Elementos estruturais do fago são produzidos. D: A partícula viral é montada e ocorre a lise da membrana da célula, resultando na morte celular. E: O material genético viral é integrado ao genoma bacteriano. F: Esse material permanece nas células-filha. Fonte adaptado de: Loba (2014).   

Okay, mas qual a relação do ciclo do vírus com a fagoterapia? 

Quando o vírus entra em ciclo lítico, lisa a célula bacteriana. Este evento provoca a morte da célula. Portanto, a peça chave na fagoterapia é o ciclo lítico que o fago realiza dentro da célula. 

 Terapia com fagos… Fagoterapia!

Mas como os cientistas souberam qual fago funcionaria para determinada bactéria? Rastreando fagos em placas de petri contendo bactérias específicas! A placa abriga bactérias em toda sua superfície e as regiões que geram halo ao se adicionar o fago são resultantes da morte de bactérias. Assim, quando se observava um halo na placa, isto é, uma região onde não havia presença bacteriana, observava-se a ação antibacteriana de determinado fago. 

Figura ilustrativa de halos presentes na placa de petri contendo bactérias. Fonte: Clker-Free-Vector-Images/Pixabay

A beleza da fagoterapia reside na especificidade dos fagos, pois estes apenas infectam bactérias que contenham estruturas chamadas de receptores de superfície (que podem ser desde proteínas, a até mesmo os flagelos bacterianos) que se “encaixam” com aquelas do vírus, evitando um desequilíbrio da microbiota. Além disso, a produção exponencial de partículas virais a cada infecção (entrada em célula bacteriana) permite uma ação local muito eficiente. E ainda, ao contrário dos antibióticos (que geralmente desestabilizam a microbiota intestinal e assim, podem promover infecções fúngicas), o uso de fagos não gera efeitos secundários em humanos – vale lembrar que estes vírus não causam doenças em humanos, pois atacam apenas as bactérias!!  

A capacidade dos fagos de realizar mutações constantes, neste caso, não é uma característica maléfica ao organismo humano. Pelo contrário, é até desejada pois diminui as chances que bactérias resistentes sejam selecionadas ao longo do tempo, e assim, pode evitar o atual problema de super resistência das bactérias observado com o uso dos antibióticos (embora, por outro lado, essas mesmas mutações possam deixar o vírus menos infeccioso, cabe aos cientistas manterem o controle realizando estudos constantes). Adicionalmente, coquetéis com diferentes tipos de fagos podem ser utilizados a fim de evitar a sobrevivência de bactérias possivelmente resistentes. 

Figura ilustrativa da fagoterapia como alternativa a antibióticos. Preparados de bacteriófagos podem ser administrados por via oral, tópica ou intravenosa. Uma vez em contato com a célula alvo, iniciam seu ciclo lítico, promovendo a morte da célula por lise, ao mesmo tempo que se replicam. Fonte: Revista FAPESP, n 257.

O futuro da fagoterapia

Embora estudada e utilizada por alguns países há muitos anos, ainda existem algumas lacunas que precisam ser resolvidas para que estes vírus possam ser amplamente utilizados. Entre elas, a dificuldade de se obter vírus que executem em totalidade o ciclo lisogênico, e a pequena, mas existente, chance de resistência bacteriana. 

Para que a fagoterapia se torne um tratamento amplamente utilizado, são necessários mais estudos e ensaios experimentais. As ferramentas biotecnológicas (principalmente de biologia sintética) se fazem muito (para não dizer totalmente) presentes no desenvolvimento de novas tecnologias que permitam a melhor manipulação dos fagos. Outro desafio para a biotecnologia é a geração de fagos bem caracterizados, puros e com especificidade de alvo bem definida. 

Uma vez atingido o sucesso, no contexto da prática clínica, os médicos deverão ter acesso aos bancos de fagos, que deverão ser corretamente armazenados, e quantidades suficientes destes deverão estar disponíveis em curtas janelas de tempo de forma a evitar que pacientes sob infecção bacteriana desenvolvam complicações no quadro de saúde. 

Barato e rápido. Assim é a produção de fagos, ao contrário da produção de antibióticos. Isso serve de estímulo para  o desenvolvimento de pesquisa nesta área. E, embora para acelerar a disponibilidade da fagoterapia sejam necessários investimentos, tanto para o desenvolvimento da tecnologia como para a sua posterior comercialização, as perspectivas futuras são animadoras. Funcionando como complemento aos antibióticos, a fagoterapia pode salvar o mundo das superbactérias.    

Texto revisado por Luana Lobo e Natália Videira
Referências:
CHAVES, Leo Ramos. Aliados Improváveis. Revista Pesquisa FAPESP, n 257, 2017. Disponível em < https://revistapesquisa.fapesp.br/2017/07/17/aliados-improvaveis/ >. Acessado em 14/08/2019.

LOBA, Andreia Filipa Franco Rei. Fagoterapia como alternativa ao uso de antibióticos convencionais. 50 f. Tese (Doutorado) – Curso de Saude, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, 2014.

Prada-Peñaranda C, Holguín-Moreno AV, González-Barrios AF, Vives-Flórez MJ. Fagoterapia, alternativa para el control de las infecciones bacterianas. (2015). Perspectivas en Colombia. Universitas Scientiarum 20(1): 43-60 doi: 10.11144/Javeriana.SC20-1.faci

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