Descubra como a tecnologia de edição gênica por CRISPR-Cas9 revolucionou a ciência nos últimos 10 anos.

Em 2012, Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, pesquisadoras da Universidade da Califórnia (EUA), trouxeram ao mundo a tecnologia de edição gênica pelo sistema CRISPR-Cas9, adaptada a partir do sistema de defesa mediado por RNA encontrado naturalmente em  bactérias.  A possibilidade de editar sequências de ácidos nucléicos de forma dirigida entusiasmou a comunidade científica e, desde então, transformou o cenário da pesquisa, prometendo inovações em áreas como diagnóstico,  tratamento de doenças e agricultura.

Atualmente, a técnica é explorada para diversos fins, de forma acadêmica ou comercial, e rendeu, em 2020, o Prêmio Nobel em Química para as duas cientistas. Ainda que promissora, a técnica não está completamente entendida, e há questões éticas sobre o seu uso em alguns contextos. O que será que já é possível fazer ou o que ainda não pode ser realizado pela tecnologia CRISPR? 

Diagnóstico por CRISPR

O uso da tecnologia CRISPR no diagnóstico está em amplo desenvolvimento, tendo em vista que a técnica consegue detectar sequências específicas de DNA. As variações da técnica trazem uma proposta barata e rápida para identificar patógenos como os vírus Ebola, HPV e Zika. Por exemplo, o time de pesquisadores do laboratório da Jennifer Doudna desenvolveu, recentemente, um método chamado DETECTR para identificar moléculas de DNA em fita simples de vírus do papiloma humano em amostras coletadas de humanos.

Uma ferramenta similar, chamada de SHERLOCK, foi desenvolvida pelo pesquisador Feng Zhang, e é capaz de identificar variações que ocorrem em um único nucleotídeo. Esta tecnologia pode ser útil para identificar pequenas variações genéticas, como mutações pontuais em patógenos e até mesmo no câncer

 Durante a pandemia da COVID-19, a ferramenta miSHERLOCK também foi desenvolvida para identificar de forma rápida o material genético do vírus SARS-CoV-2 a partir de amostras da saliva. Nesse kit, o sistema CRISPR-Cas consegue identificar o material genético de todas as variantes do vírus, que  é clivado pela enzima Cas, emitindo um sinal fluorescente.

sistema miSHERLOCK
Fotografia em que é apresentado o sistema miSHERLOCK para detecção de variantes do vírus SARS-CoV-2. O sistema pode ser montado por impressão 3D e utilizado em casa de forma prática. Fonte: Puig et al. 2021.
#ParaTodosVerem: o sistema consiste de dois compartimentos pretos quadrangulares. Em um dos compartimentos são colocados dois tubos de ensaio com amostras de saliva, que irão reagir com o sistema CRISPR-Cas. O tubo com a coloração fluorescente mostra um resultado positivo para a presença do vírus SARS-CoV-2 na amostra. 

Outra aplicação do CRISPR é na detecção de compostos como antibióticos, toxinas e nutrientes utilizando bactérias como biossensores. Nessa modalidade, é possível utilizar bactérias engenheiradas que só irão produzir o sistema CRISPR em determinadas condições, como na presença de antibióticos. Nesse caso, a maquinaria CRISPR se liga somente a sequências de DNA que estão em determinados plasmídeos da bactéria, que são destruídos pela célula. Dessa forma, pode-se detectar se a bactéria foi exposta à tal condição calculando-se a razão entre plasmídeos intactos e destruídos.

Melhoramento de animais, plantas e fungos

O sistema CRISPR está em alta para promover o melhoramento de alguns organismos, justamente pela possibilidade de realização de edições em genes para aprimorar as características produtivas. Além de tudo, a técnica traz uma alternativa à transgenia, ou seja, pode-se realizar apenas a edição de genes do próprio organismo, sem a necessidade de introduzir um gene estrangeiro para alcançar determinadas características.

Em plantas, a técnica tem sido utilizada para aumentar o rendimento, qualidade, e resistência a estresses bióticos e abióticos. Algumas plantas editadas pela técnica de CRISPR já estão sendo cultivadas em campo. No Brasil, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança aprovou o primeiro milho editado pelo CRISPR em 2018, o qual apresenta maior teor de amilopectina. Essa substância tem um alto valor nas aplicações industriais e serve como fonte de energia na alimentação..

Nos EUA, o cultivo de um cogumelo que não escurece após a colheita já foi aprovado pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos em 2016. A edição foi feita por meio de uma deleção no gene polifenol oxidase, responsável pela oxidação do cogumelo.

Cogumelos na cor branca da espécie Agaricus bisporus. 
Cogumelos de interesse comercial que foram editados por CRISPR para não escurecerem após a colheita. Fonte: Misiokk. #ParaTodosVerem: cogumelos na cor branca da espécie Agaricus bisporus

No melhoramento animal, o CRISPR promete gerar animais mais produtivos ou resistentes a doenças. Porém, a técnica geralmente deve ser realizada apenas em embriões. Um dos genes que já foi editado tanto em ovelhas quanto em peixes é o que codifica a miostatina (Mstn). A mutação ocasionada no gene pela edição permite o desenvolvimento de ovelhas com maior conteúdo de carne. Já em peixes da espécie Pagrus major, a edição faz com que os animais atinjam o peso de abate mais rapidamente.

Já no setor de bem-estar animal, a técnica de CRISPR está sendo utilizada para gerar suínos e aves resistentes a patógenos, como os vírus da síndrome reprodutiva e respiratória suína. Essa seria uma alternativa para controlar doenças animais e minimizar a transmissão de alguns vírus para humanos. Outra aplicação é a detecção do sexo masculino em aves de produção pelo CRISPR na fase embrionária, evitando o descarte de machos e direcionando esses ovos para consumo.

Um ponto a ser ressaltado é que a aprovação do uso comercial de animais geneticamente modificados, principalmente para o consumo de carne ou derivados, ainda enfrenta grandes impasses. Até o momento, não temos a aprovação de nenhum animal com o genoma editado por CRISPR para fins de consumo.

Terapia gênica

Uma das questões mais polêmicas da atualidade é a edição gênica em humanos. Apesar dos dez anos da técnica CRISPR, ainda não temos seu completo entendimento e controle. Já se sabe, por exemplo, que nem todas as células podem ter o gene-alvo editado, o que reduz a eficiência da técnica. Há também a probabilidade de edição de genes que não são o alvo, o que chamamos de efeito offtarget. Outros estudos apontam ainda a probabilidade da técnica gerar deleções e rearranjos indesejados no DNA.

O CRISPR pode ser uma ferramenta potencial para a terapia gênica no intuito de editar genes que estão associados a diversas condições genéticas ou adquiridas. Entretanto, questões éticas entram em pauta a respeito do seu uso em embriões humanos, principalmente após o caso do cientista chinês que editou, de forma ilegal, o gene CCR5 em embriões de bebês gerados por fertilização in vitro para supostamente conferir imunidade ao vírus HIV. Atualmente, há, inclusive, uma moratória internacional que reforça o veto às pesquisas com CRISPR em embriões humanos.

Mas existem outros meios de utilizar o CRISPR na pesquisa médica? Sim! Alguns estudos já relataram o potencial de edição de genes a partir das próprias células de um indivíduo adulto. Atualmente, os cientistas têm conseguido extrair células-tronco da medula óssea ou de outros tecidos e editá-las em laboratório no intuito de curar ou tratar algumas doenças. A ideia é reintroduzir essas células no paciente para avaliar se há o resgate do fenótipo saudável.

Em junho de 2012, pesquisadores das empresas Vertex (EUA) e CRISPR Therapeutics (EUA) relataram os resultados de um teste clínico em 75 voluntários com anemia falciforme ou beta talassemia. No estudo, eles conseguiram retirar células sanguíneas da medula óssea dos pacientes para editar uma região regulatória do gene da hemoglobina fetal, que só está ativo no feto. As células sanguíneas editadas foram reintroduzidas nos pacientes, permitindo a produção dessa forma alternativa da hemoglobina. Como resultado, 95% dos pacientes com beta talassemia não precisaram mais de transfusões de sangue.

Outra aplicação bem-sucedida ocorreu em um estudo na Universidade de Oregon (EUA), entre 2020 e 2021, onde a tecnologia CRISPR foi injetada em um dos olhos de sete pacientes voluntários que apresentam cegueira congênita. Nesse caso, o gene Cep290 foi editado para resgatar sua funcionalidade. Dois dos sete pacientes apresentaram reversão parcial da cegueira. 

É importante relatar que, atualmente, estamos em fase de testes clínicos pontuais no uso da terapia gênica por CRISPR, e se eles forem bem-sucedidos, podem permitir o avanço para testes mais amplos.

Imunoterapia

Na corrida por melhores tratamentos para o câncer, o que temos de mais atual é a terapia que utiliza células imunes do próprio paciente, engenheiradas geneticamente e reprogramadas, que receberam genes que produzem receptores capazes de identificar eficientemente células tumorais. Ela já foi aprovada para uso em alguns tipos de cânceres, mostrando bons resultados. Novas pesquisas e testes estão sendo feitos adicionando a técnica de CRISPR em linfócitos T engenheirados para editar alguns genes, para aumentar ainda mais a eficácia do combate ao câncer.

 A Universidade de Pennsylvania (EUA) iniciou um teste imunoterápico em 2019 em três pacientes com cânceres distintos, utilizando o combo de linfócitos T engenheirados e a edição por CRISPR. Entretanto, após a reintrodução das células editadas nos pacientes, apenas dois apresentaram retardo temporário no crescimento do tumor.

Processo de imunoterapia por CRISPR para tratamento do câncer.
Figura ilustrando o processo de imunoterapia por CRISPR para tratamento do câncer. 1) Obtenção de linfócitos T a partir do sangue coletado do paciente. 2) Edição dos linfócitos por CRISPR: primeiro, os linfócitos são engenheirados geneticamente para receber um gene que produz o receptor NY-ESO-1 capaz de se ligar à célula tumoral. Depois, os linfócitos engenheirados são editados para deletar dois genes que podem prejudicar o funcionamento do receptor NY-ESO-1 e um gene que dificulta as habilidades do linfócito em destruir células tumorais. 3) Os linfócitos editados são cultivados no laboratório. 4) Uma infusão de linfócitos editados é realizada no paciente. 4) Os linfócitos T conseguem reconhecer células tumorais pelo receptor NY-ESO-1 e destruí-las. Fonte: National Cancer Institute

Diversas estratégias utilizando o sistema CRISPR já foram testadas para combater o vírus HIV. Entre elas, destaca-se a edição do gene CCR5 em células da medula óssea ou do sangue, no intuito de induzir uma mutação já conhecida que garante a ausência da produção da proteína que permite a entrada do vírus nas células. A edição das células-tronco em laboratório tem sido eficiente, mas os poucos testes em pacientes voluntários ainda não demonstraram a capacidade de reduzir ou eliminar a infecção.

Outra estratégia é o uso da ferramenta CRISPR para identificar e remover partes do material genético do HIV que estão integrados no genoma de células humanas. Essa abordagem é interessante pois permite eliminar os reservatórios de latência do vírus nas células, impedindo futuras reinfecções. E, ainda, é possível rastrear diferentes mutações encontradas nessas sequências virais integradas no genoma humano, o que pode favorecer novas estratégias de tratamento retroviral. Alguns desses experimentos realizados em camundongos  apresentaram bons resultados.

O futuro é promissor se há ética e cautela

Podemos perceber que a utilização da tecnologia do CRISPR está presente em diversos contextos, prometendo um futuro em que a edição gênica pode ser a “mão direita” para solucionar diversos problemas. No que diz respeito à edição genética humana, fica claro que estamos ainda em passos cautelosos e nos restringindo a pesquisas com modelos animais, cultivo de células humanas e testes com poucos voluntários.

 À medida  que entendermos mais da técnica, será possível propor novas modificações no sistema CRISPR para gerar resultados mais eficazes. E é sempre bom lembrar que os avanços científicos devem acompanhar as discussões bioéticas, de forma legal e segura.

Perfil Fabiano
Texto revisado por Jennifer Medrades e Elaine Latocheski

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Fonte da imagem de destaque: Nobel Prize.

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