Lavar as mãos, o mecanismo de ação que pode destruir a membrana de lipídios de diversos microrganismos, sendo uma prática muito recomendada.

Lavar as mãos sempre foi essencial para se evitar a contaminação por doenças causadas por microrganismos, não só em tempos de pandemia. Composta por Arnaldo Antunes, a música “Lava mãos” fez parte da educação higiênica de muitas gerações. O quadro era exibido no programa Castelo Rá-Tim-Bum, criado por Flávio de Souza e Cao Hamburger, e contava as aventuras e desventuras de Nino e sua turma. 

Sempre que eles iriam comer algo, a música aparecia não só para lembrar os personagens mas também o telespectador da importância de lavar as mãos antes de comer, beber, lamber e pegar na mamadeira

Mas por que será que lavar as mãos é tão importante assim e o que acontece para  nos proteger de contaminação??

Senta que lá vem a história 

Nem sempre o hábito de lavar as mãos foi entendido por todos como necessário, na medicina essa metodologia foi adotada no século XIX. Em meados dos anos 1800 um médico hungaro Ignaz Semmelweis, observou que muitas mulheres morriam de febre puerperal. Ao investigar ele descobriu que elas eram atendidas por acadêmicos que além de realizar partos também realizavam autópsias. 

Dessa forma, sua hipótese era que partículas dos cadáveres poderiam estar infectando as pacientes e as levando a óbito. Portanto, Ignaz Semmelweis sugeriu que todos lavassem as mãos com uma solução de cal clorado (detergente) antes de realizarem qualquer procedimento. Essa prática diminuiu a taxa de mortalidade das pacientes de forma drástica, no entanto, ainda houve muita discordância com a prática de lavar as mãos por grande parte da comunidade médica. 

Apesar disso, muitos outros estudiosos e pesquisadores da medicina investigaram e tentaram entender a importância de se lavar as mãos. Dentre eles uma figura lendária na enfermagem, Florence Nightingale, cunhou a Teoria Ambientalista. Ela promovia o foco nas condições externas e sua capacidade de afetar a vida e o desenvolvimento dos organismos, sendo a higiene indispensável para a prevenção de doenças e morte. No livro “Notas sobre Enfermagem”, de 1860, Nightingale escreve que “toda enfermeira deve ter o cuidado de lavar suas mãos muito frequentemente ao longo do dia. Se lavar o rosto, também, ainda melhor”.

Parece tão óbvio para nós do século XXI a importância de se lavar as mãos, mas aqui estamos falando de um período anterior à descoberta e estudo das bactérias. O que de fato acontece quando lavamos as mãos?

Por que o sabão?

O sabão possui geralmente em sua composição química surfactantes, que são substâncias capazes de reduzir a tensão superficial entre dois líquidos que não se misturam ou entre um líquido e uma superfície sólida. Os surfactantes possuem uma estrutura anfifílica com uma cabeça hidrofílica (atraída pela água) e uma cauda hidrofóbica (atraída por gordura e lipídios).

molécula de sabão
Ilustração de uma molécula de sabão (estearato de sódio) com a cabeça hidrofílica (interage com água) e cauda hidrofóbica (interação com lipídios). #ParaTodosVerem: desenho de uma molécula de sabão onde a  forma circular(laranja) representa a cabeça hidrofílica, enquanto a cauda (amarelo) é   a parte hidrofóbica. Logo abaixo do desenho está presente a fórmula química do estearato de sódio, um composto utilizado na fabricação de sabões e detergentes. Fonte: a autora. 

Por ter essa  conformação, quando o sabão entra em contato com outras moléculas compostas por lipídios sua parte hidrofílica interage com a água, e a hidrofóbica interage com os lipídios formando pequenas micelas. As micelas têm a capacidade de encapsular gorduras no seu interior e assim são solubilizadas pela água, possibilitando a eliminação das gorduras.

mecanismo de ação do sabão ao interagir com sujeira e microrganismos de uma mão suja
Ilustração do mecanismo de ação do sabão ao interagir com sujeira e microrganismos de uma mão suja. Após a lavagem a gordura da sujeira é separada bem como os microrganismos devido a ação emulsificante do sabão. #ParaTodosVerem: ilustração de uma mão suja com enfoque microscópico na pele, que após ser lavada com sabão tem a sujeira removida a partir de formação de micelas que separam os lipídios tanto da sujeira acumulada quanto dos microrganismos presentes. Fonte: a autora.

As membranas de bactérias, fungos, vírus e protozoários são compostas de lipídios, e dessa forma, esse mecanismo também pode destruir esses microrganismos ou removê-los da superfície, pela aglomeração dos surfactantes ao separarem os lipídios. Mas por que o sabão também não deteriora nossas células?

As membranas celulares

A nossa pele resiste pois inicialmente possui várias camadas até chegar no tecido celular. Isso dificulta a ação do sabão contra as células da pele. E outro motivo é a composição das membranas de células eucariotas como as nossas.

O sabão age como surfactante rompendo as membranas ricas em lipídios livres, e essas composições são mais encontradas em bactérias e vírus envelopados. As bactérias podem ser Gram-negativas ou Gram-positivas, o que influencia na composição de sua parede celular. 

As bactérias Gram-negativas possuem uma membrana externa mais reforçada composta por lipopolissacarídeo (LPS). O LPS desempenha um papel de manter a integridade estrutural protegendo a célula contra agentes antimicrobianos. Já para as Gram-positivas existe apenas uma membrana composta de uma camada espessa de peptidoglicano (composto de açúcares e aminoácidos) conferindo assim uma rigidez e proteção à célula bacteriana.

Ilustração das membranas de bactérias Gram-positivas e gram-negativas
Ilustração das membranas de bactérias Gram-positivas e gram-negativas, pontuando as diferenças morfológicas de cada uma. #ParaTodosVerem:ilustração das membranas iniciando à esquerda com a membrana de Gram-positivas, a qual contém uma camada de peptidoglicanos representados por sequências de pequenos círculos na cor roxa seguido de um espaço periplasmático (amarelo) e por fim a membrana citoplasmática. A membrana de uma bactéria Gram-negativa, representada à direita, inicia-se com as moléculas de lipopolissacarídeos (LPS) fixados na membrana externa (em vermelho), seguido de peptidoglicanos (círculos em roxo) e por fim a membrana citoplasmática interna. Fonte:  https://fermentecnews.com.br/2023/10/05/coloracao-de-gram-principios-e-procedimentos/

Para os vírus, o seu capsídeo, membrana que envolve o conteúdo genético que pode ser  DNA ou RNA, pode ser envolvido por um envelope de lipídios conhecido como envoltório lipídico. A presença desse envoltório possibilita a destruição deles através da ação do sabão. Dentre esses vírus, o H1N1, coronavírus e rotavírus são vulneráveis à ação de sabões e detergentes. 

Os sabões são de extrema importância pois auxiliam na remoção mecânica de sujeira e microrganismos pela emulsificação e dispersão das moléculas de lipídios. No entanto, para algumas cepas bacterianas, fúngicas ou virais é necessário, além do sabão, a utilização de produtos específicos como detergentes antibacterianos, fungicidas e antivirais. Uma vez que esses organismos possuem diversos mecanismos de proteção

Klift Kloft Still, a porta se abriu!

Diversas alternativas são desenvolvidas a fim de melhorar o processo de limpeza. Sendo esse um processo imprescindível para a conservação de equipamentos que podem ser utilizados em bioprocessos e para a saúde humana. Nesse contexto, a manutenção de equipamentos que são utilizados em bioprocessos, deve ser periódica para garantir a eficácia e tempo de vida útil desses produtos. 

Outro exemplo é o sabão AWA, que contém microrganismos em sua composição, podendo ser uma solução sustentável utilizada para lavar roupas. Desenvolvido no Peru, esse sabão garante a eliminação de microrganismos e  contém microrganismos não-patogênicos que realizam o consumo de poluentes diminuindo a contaminação das águas. 

Embora tenha levado quase 200 anos para que a prática de lavar as mãos fosse incorporada como um protocolo de higiene na medicina, hoje sabemos que esse simples ato é essencial para garantir a limpeza e a proteção contra microrganismos. Não é magia, é biotecnologia.

O sabão atua quebrando estruturas em nível molecular, eliminando vírus, bactérias e sujeiras. E, mesmo que opere em uma escala microscópica, seus efeitos mantêm a sociedade unida, ao arrastar para o ralo verme, bactéria, debaixo da torneira… .

Perfil de Samilla Rezende
Texto revisado por Natália Lopes e Fabiano Abreu

Cite este artigo:
REZENDE, S. B. Uma mão lava outra. Revista Blog do Profissão Biotec, v. 12, 2025. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/uma-mao-lava-outra/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências

BARBOSA, J., Bactérias Gram positivas e Gram negativas: o que isso quer dizer? FoodSafetyBrazil.org., 2020.  Disponível em: https://foodsafetybrazil.org/bacterias-gram-positivas-e-negativas-o-que-isso-quer-dizer/ Acesso em 19/10/2024.
Fernandes, P.A., Ramos, M.J., O sabão contra a COVID-19, Rev. Ciência Elem., V8(2):019, 2020. Disponível em:  http://doi.org/10.24927/rce2020.019. Acesso em 19/10/2024.
Global Handwashing Partnership. Handwashing has been a central component of personal hygiene and a religious and cultural custom for many years. However, the link between handwashing and health was first made less than two centuries ago. Disponível em: History – The Global Handwashing Partnership.
Acesso em 20/10/2024.
IJAZ, M. Khalid et al. Soap, water, and SARS-CoV-2: an ancient handwashing strategy for preventing dissemination of a new virus, 2021. Disponível em  10.7717/peerj.12041. Acesso em 20/10/2024.
JABR, Ferris. Why soap works. New York Times, Health section, online edition, v. 13, 2020. Disponível em https://www.nytimes.com/2020/03/13/health/soap-coronavirus-handwashing-germs.html. Acesso em 20/10/2024.
NIGHTINGALE F. Notas sobre enfermagem: um guia para os cuidadores na atualidade. Loures: Lusociência, 2011. 
SEDDON, Annela M.; CURNOW, Paul; BOOTH, Paula J. Membrane proteins, lipids and detergents are not just soap operas. Biochimica et Biophysica Acta (BBA)-Biomembranes, v. 1666, n. 1-2, p. 105-117, 2004. Disponível em 10.1016/j.bbamem.2004.04.011. Acesso em 20/10/2024.
Fonte da imagem destacada: Foto de Mélissa Jeanty na Unsplash.

Inscrever-se
Notificar de
guest

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Sobre Nós

O Profissão Biotec é um coletivo de pessoas com um só propósito: apresentar o profissional de biotecnologia ao mundo. Somos formados por profissionais e estudantes voluntários atuantes nos diferentes ramos da biotecnologia em todos os cantos do Brasil e até mesmo espalhados pelo mundo.

Recentes
Assine nossa newsletter