O dilema da imunologia: como proteínas produzem proteínas?

Uma questão que pode fazer uma confusão na cabeça dos estudantes de imunologia é justamente como que é possível um antígeno protéico apresentado à uma célula linfóide promova a produção de anticorpos?!

O dogma central da biologia diz que “o fluxo da informação genética parte do DNA, para RNAs mensageiros, os quais são traduzidos em proteínas”. As vezes chega ser  conflituoso pensar que assim como o DNA, que armazena  informação genética, um antígeno poderia conter a informação para produzir um anticorpo para reconhecê-lo especificamente. Se respondemos de forma direta a pergunta no título do texto a resposta seria não, não faz. O dogma continua correto.


Fluxo da informação genética. Fonte: Paulo E. P. Burke/Researchgate.

Mas então… como tudo isso acontece? Vamos entender. Para isso precisamos imergir um pouco mais a fundo na imunologia geral e compreender como são programadas as estruturas do nosso corpo desde a embriogênese.

Como diria Jack, vamos por partes…

Anatomia desse texto:

1- A origem dos órgãos do sistema imune
Porque? R- Entender de onde vem e como são programadas as células que contracenam na resposta imunológica.

2- Variabilidade e diversidade genética das células imune
Porque? R- Entender como é possível que em um mesmo organismo tenha células com genes diferentes (no DNA).

3- Montagem de anticorpos e receptores
Porque? R- Entender melhor a especificidade das proteínas de reconhecimento imunológico.

4- Apanhado geral
Porque? R- Não tenha medo, imunologia é complexa mas não morde, de qualquer modo a gente dá um empurrãozinho no final.

1. Origem dos órgãos linfóides e células imune

O sistema imunológico é complexo por natureza. Ele não é composto apenas por diferentes células especializadas (a citar: fagócitos, células regulatórias, secretoras de citocinas, produtoras de anticorpos, etc), mas também conta com órgão linfóides (veja a imagem abaixo) que servem de sítio de maturação e de interação entre as células imune. O sistema imunológico, no nosso corpo, é totalmente integrado com os demais sistemas. Possuímos, por exemplo, vasos linfáticos que conectam os tecidos desde a periferia (como dedos das mãos e pés), transportando células até os linfonodos (sítios de apresentação de antígeno e postos avançados na comunicação com regiões do corpo).

Linfócitos T e B, monócitos, macrófagos e outras células têm origem na medula óssea (mais especificamente nas extremidades de ossos alongados, tais como o fêmur). Essas células derivam da linhagem de células-tronco hematopoiéticas, que também dão origem às células vermelhas do sangue.

Na embriogênese formam-se os órgão linfóides, tais como o timo, o baço e os linfonodos. A formação desses órgãos dependem de uma complexa cascata de comunicação e secreção de citocinas entre diferentes tipos celulares, incluindo: células indutoras de tecido linfóide (LTi) e células organizadoras de tecidos linfóide (LTo), células-tronco mesenquimais e células endoteliais vasculares (imagem abaixo). Essa relação íntima entre o tecido linfóide e o tecido vascular durante a embriogênese, permite que os linfócitos produzidos na medula óssea adentrem e povoem os órgãos linfáticos ainda antes do nascimento do indivíduo.


Comunicação inicial das células LTi e LTo por secreção de citocinas…

… e posterior interação com o sistema vascular (vasos sanguíneos – BV, vasos linfáticos – LV) para infiltração de linfócitos e formação de linfonodos, através da modulação por células tronco mesenquimais (MC) e vaso endoteliais. Fonte: Onder L, Ludewig B., 2018.

Após os primeiros meses do nascimento, acontece no timo a etapa crucial na maturação dos linfócitos: o sistema imune é “ensinando” sobre quais antígenos são próprios do corpo e não pode ser gerada resposta contra eles. Esse fenômeno também é conhecido como tolerância imunológica por seleção negativa.


Seleção tímica da especificidade de linfócitos, destacando que tanto o não reconhecimento da molécula de MHC como o reconhecimento de auto-antígenos levam a morte celular dos linfócitos T imaturo. Fonte: ABBAS.

Na seleção negativa os timócitos (células específicas do timo) apresentam auto-antígenos (antígenos do próprio corpo) para os linfócitos, aquele que reconhecem esses auto-antígenos são levados a morte celular.

2. A variedade das células imune e a especificidade de resposta

Diferente do que somos levados a pensar, não é a informação contida em um antígeno que leva a produção de anticorpos, isso porque o DNA já está programado para a produção de anticorpos específicos antes do antígeno chegar. O corpo já dispõe previamente de células geneticamente diferentes para gerar respostas à antígenos diferentes, tudo graças ao processo de recombinação genética das imunoglobulinas (anticorpos), receptores de células T (TCR) e B (BCR).

Para entender mais sobre o rearranjo gênico, devemos pensar que tanto o DNA codificante das imunoglobulinas quanto os TCRs e BCRs possuem diversos sítios de recombinação. Isto significa que esses sítios podem interagir um com o outro, trocar pedaços, deletar outros e gerar genes diferentes (polimorfismos).

O rearranjo gênico possibilita que cada célula linfóide seja única, capaz de expressar resposta específica para um determinado epítopo (ou porção imunogênica do antígeno) diverso. Essa individualidade peculiar é transmitida adiante com a replicação celular, dando origem ao que chamamos de “clones”.

Para você, leitor, ter noção da dimensão deste sistema biológico, o corpo dispõe de aproximadamente 107 clones diferentes de células T e B, sendo possível reconhecer epítopos nunca foi visto pelo corpo antes, justamente por conta dessa variedade de clones pré-existentes.


Rearranjo gênico das partes do receptor de célula T (TCR), destacando a troca de pedaços, junções de partes e deleções que levam a uma redução do tamanho dos genes. Como o rearranjo pode acontecer de diferentes formas, também podem gerar múltiplas combinações de rearranjos. FONTE: Dr.M.Prasad Naidu/SladeShare.

O mecanismo envolvido no rearranjo acontece mediado pela formação de complexos de componentes específicos dos linfócitos Rag-1 e Rag-2 com a enzima recombinase. Esses complexos interagem com os sítios de recombinação dos genes levando as alterações. Após a recombinação do DNA, acontece também a edição dos pré-RNAs mensageiros (mRNAs) expressos, através do processo de splicing, que aí então, vão levar a informação para tradução dos receptores e imunoglobulinas.


Recombinação da porção variável do TCR (região V(D)J)), por ação das proteínas Rag-1 e Rag-2, destacando a ligação de pedaços e remoção de sequências de DNA. FONTE: Stuart Parks/SladePlayer.

3. Mas se os genes das imunoglobulina se recombinam e os dos receptores (TCR e BCR) também, como poderiam ambos reconhecer o mesmo epítopo?

Isso é possível porque tanto o TCR quando o BCR compartilham os genes V(D)J da cadeira variável das imunoglobulinas (que expressam justamente a região de reconhecimento ao epitopo apresentado), o que permite a mesma especificidade. Posteriormente, com a ativação dos receptores de TCR e BCR, nos linfonodos, as células passam por um processo de migração dentro do próprio linfonodo, onde ocorrem mudanças de classes das imunoglobulinas (edições proteicas, posteriores  ao rearranjo) e seleção positiva, para que aí sim, as células possam proliferar em mais velocidade e adentrar a luz da corrente sanguínea para desempenhar suas funções.


Expressão gênica da porção variável V(D)J, participando tanto da montagem de imunoglobulinas como de receptores de células T e B. Fonte: Autoral.

4. O reconhecimento e a resposta “em uma casca de nós”

Fazendo um apanhado de tudo, a apresentação de um antígeno protéico não dá a informação para a produção de um anticorpo (proteína), mas essa informação já existia previamente, e em diversidade clonal de células do sistema imune. Basicamente quando uma célula apresentadora de antígeno (APC) fagocita um patógeno ou um antígeno ela migra nos vasos linfáticos até um linfonodo, onde pode procurar por uma das milhares de opções clonais de linfócitos T e B até encontrar receptores TCR e BCR capazes de reconhecer os epitopos apresentados em seu complexo de imuno histocompatibilidade (MHC) (proteína que apresenta o antígeno no meio extracelular).

Uma vez que acontece a interação da APC com um linfócito (também conhecido como sinapse imunológica), são liberados estímulos de manutenção e proliferação clonal para perpetuação deste linfócitos, o que possibilita uma resposta adequada. Essa informação pode ser relacionada inclusive com o as características de um segundo contato com o antígeno, onde a resposta é mais rápida e decorre exatamente ao fato de que já houve uma primeira expansão clonal anteriormente, deste modo, as APCs encontram linfócitos T e B com mais facilidade.

Ou seja…

É assim que o sistema imunológico dispõe de múltiplas possibilidades de produção de proteínas. E não que a partir de uma proteína (antígeno) que se faz outra proteína (anticorpo).

Carta ao leitor:

“O mundo de informações rápidas em que vivemos nos leva quase sempre a buscar soluções imediatas, o que é conflitante com algumas pesquisas que demandam uma maior dedicação e tempo, e nos leva a negligenciar algumas questões mal resolvidas durante nossos estudos. A imunologia por sua vez tem essa  característica intrínseca (e às vezes lúdica) de nos encher de interrogações, mas não devemos jamais deixar que as dúvidas passem em branco, muitas vezes esse questionamentos são recorrentes e retornam em estudos futuros. Então pergunte, pesquise, leia, investigue, não desista jamais. O funcionamento dos sistemas do corpo humano é magnífico em sua complexidade”.

Revisado por Rodrigo Cano e Mariana Pereira
Referência
Onder L, Ludewig B. A Fresh View on Lymph Node Organogenesis. Trends Immunol. 2018 Oct;39(10):775-787.
ABBAS, AK, LICHTMAN, AH, PILLAI, S. Imunologia celular e molecular (Capítulo 8). 8ª Edição. Elsevier.
Goldsby. B-Cell Generation, Activation and Differentiation (Chapter 11). Immunology Fifth ed. New York: [s.n.] pp. 247–275. ISBN 0-7167-6764-3.

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