Você provavelmente já sabe que as proteínas são macromoléculas amplamente encontradas em vários alimentos que consumimos diariamente, como o leite, a carne e os ovos, e que desempenham papéis muito importantes no nosso organismo: fazem parte da constituição de diversas partes do corpo humano, como os músculos e o cabelo, também desempenhando funções catalisadoras (atuam como enzimas) e reguladoras (hormônios), dentre várias outras. Basicamente, #SomosTodosProteínas…
Se você se lembra das aulas de biologia ou se estuda alguma área correlata, também vai se lembrar que essas moléculas são biopolímeros constituídos por uma sequência específica de aminoácidos, que estão conectados por ligações peptídicas. Porém, existe uma classe de moléculas muito parecida com as proteínas (que na verdade são como proteínas, porém com um número menor de aminoácidos na sua cadeia) que vem chamando a atenção dos pesquisadores nas últimas décadas: os peptídeos.
Essas pequenas porções de proteína, que possuem entre seis e vinte aminoácidos e uma massa molecular inferior a 6 kDa, são geradas em nosso organismo durante o processo de digestão. Nesse processo, enzimas específicas, denominadas proteases, hidrolisam (ou “quebram”) as ligações peptídicas das proteínas, fazendo com que o tamanho da cadeia da proteína diminua e, assim, os peptídeos sejam produzidos.
O interessante é que alguns destes peptídeos gerados têm estruturas que permitem sua interação com o organismo de modo similar aos peptídeos endógenos, os quais, desempenham funções importantes no corpo, atuando como neurotransmissores, hormônios e reguladores. Essa interação, portanto, faz com que os peptídeos gerados na hidrólise das proteínas sejam classificados como peptídeos bioativos, pois tem o poder de contribuir para a saúde humana de diversas maneiras: podem ser antioxidantes, anti-hipertensivos, antidiabéticos, entre muitas outras funções que não são encontradas nas proteínas não hidrolisadas.
De acordo com as bases de dados de peptídeos BioPep e BioPD, desde o primeiro estudo sobre peptídeos bioativos, publicado em 1950, mais de 1200 desses componentes já foram catalogados!
De onde vêm? Como são gerados? Hoje, no Profissão Biotec!
Como os peptídeos podem ser gerados pela hidrólise de proteínas, fontes ricas em proteínas são, consequentemente, fontes promissoras de peptídeos bioativos. Por meio de processos que simulam a quebra da proteína que ocorre na digestão, é possível gerar esses peptídeos em escala industrial. Se você é leitor assíduo do PB, já deve imaginar quais são os principais processos para a geração desses compostos de interesse: a fermentação e a hidrólise enzimática!
Na fermentação, é importante que os micro-organismos escolhidos sejam possuidores de um sistema proteolítico eficiente, ou seja, que produzam as proteases necessárias para promover a quebra das ligações peptídicas. As bactérias do gênero Bacillus sp. e fungos filamentosos do gênero Aspergillus, notadamente A. oryzae, A. sojae e A. niger, são bons produtores dessas enzimas, além de serem micro-organismos GRAS (geralmente reconhecidos como seguros pelo Food and Drug Administration dos EUA, ou seja, cuja utilização em cosméticos, alimentos ou fármacos não gera prejuízo para a saúde do consumidor).
A alternativa à fermentação é a quebra direta das proteínas utilizando as proteases, dentre as quais as mais utilizadas são tanto de origem microbiana (como a Pronase™ E, de Streptomyces griseus, e a Flavourzyme™ de A. oryzae) quanto vegetal (a bromelina, do abacaxi, e a papaína, do mamão). Produtos que contém peptídeos obtidos desta forma geralmente apresentam no rótulo ingredientes que são descritos como “hidrolisados proteico de…” ou “proteína hidrolisada de…”, seguido do nome fonte da proteína.
Uma grande vantagem da utilização dessas enzimas comerciais em relação à fermentação é a rapidez e o maior controle do processo, uma vez que as enzimas comerciais já possuem os parâmetros ótimos de pH e temperatura definidos. Também já estão purificadas, tendo uma grande atividade mesmo quando adicionadas em pequenas quantidades e não geram tantos metabólitos secundários como a fermentação.
E por que o grande interesse?
Dentre as grandes vantagens dos peptídeos bioativos em comparação a fármacos tradicionais, além de suas funções moduladoras no organismo humano, estão os fatos que 1) eles possuem alta afinidade em relação aos tecidos-alvo, o que resulta em baixa ou nenhuma toxicidade e alta efetividade em doses muito pequenas e 2) O efeito cumulativo dos peptídeos no organismo também é muito pequeno, e são facilmente degradados uma vez no meio ambiente.
Abaixo listamos três das atividades biológicas mais expressivamente estudadas dos peptídeos bioativos:
Peptídeos com atividade antioxidante
A formação de radicais livres, como OH e O2–, é uma consequência natural do metabolismo dos seres aeróbicos. Em condições homeostáticas, o organismo cria um equilíbrio entre a geração e a eliminação desses componentes. Entretanto, fatores internos como mutações ou vias fisiológicas desequilibradas, ou externos, como radiação ultravioleta, poluição, tabaco e a dieta, podem levar a um excesso de radicais livres no organismo. Essa condição está associada a algumas doenças como aterosclerose, artrite, diabetes e câncer.
Essa oxidação causada pelos radicais livres leva a efeitos indesejados no organismo devido a sua capacidade de interagir com o DNA, danificar proteínas e oxidar os fosfolipídios componentes das membranas celulares, também afetando a qualidade sensorial dos alimentos – sendo muitas vezes a responsável pelo aparecimento do sabor de ranço. Assim, os peptídeos podem ser utilizados como aditivos que auxiliam na manutenção da qualidade dos alimentos ao longo de sua vida de prateleira.
Apesar de ainda não estar completamente elucidado, o mecanismo de ação antioxidante dos peptídeos, assim como para outras das funções biológicas por eles desempenhados, está intimamente associado à sua composição de aminoácidos, estrutura e hidrofobicidade. Peptídeos ricos em aminoácidos aromáticos como fenilalanina, tirosina e tripsina podem atuar como doadores de prótons para radicais deficientes em elétrons. Ademais, a presença dos aminoácidos tirosina, triptofano, metionina, lisina e cisteína na cadeia de peptídeos é fator importante na atividade antioxidante, especialmente devido à sua capacidade de reduzir Fe3+ a Fe2+ e quelar os íons Fe2+ e Cu2+.
Peptídeos com atividade antimicrobiana (AMPs)
O aumento do número de micro-organismos patogênicos que desenvolveram resistência aos antibióticos convencionais é alarmante, e este fato, associado à diminuição na taxa de descoberta de novas moléculas antimicrobianas, tem impulsionado a pesquisa de novas fontes de antimicrobianos que possuam baixa toxicidade e alta especificidade. Peptídeos bioativos apresentam-se como uma opção promissora, pois as células bacterianas possuem uma membrana rica em fosfolipídios carregados negativamente, facilitando suas interações com peptídeos, muitos dos quais são carregados positivamente. Por outro lado, as células animais são principalmente compostas por lipídios não carregados na camada mais externa e negativamente regiões carregadas são apontadas para o interior da célula (citoplasma).
De maneira geral, os AMPs podem matar células microbianas inibindo a síntese de proteínas, DNA e RNA, interagindo com certos alvos intracelulares ou interrompendo a integridade da membrana.
Devido à sua hidrofobicidade, peptídeos bioativos contendo sequências ricas nos aminoácidos glicina e leucina são relatados como potentes moléculas antimicrobianas. A presença do resíduo de arginina, devido à sua característica catiônica, aumenta a interação com as paredes celulares bacterianas, contribuindo também para a sua eficácia. Hidrolisados de caseína, por exemplo, obtidos a partir da hidrólise enzimática conduzida pela quimosina, demonstraram atividades de inibição de bactérias Gram + tão eficientes quanto os antibióticos já conhecidos niacina e lactoferrina.
Peptídeos com atividade anti-hipertensiva
Estatísticas mostram que a hipertensão arterial atingirá 29 % da população em 2025, e esta doença pode desencadear várias outras doenças cardiovasculares que são mais perigosas, como a aterosclerose e o infarto. A enzima conversora da angiotensina é um importante regulador da pressão arterial, pois catalisa a conversão da angiotensina-I a angiotensina-II, uma molécula vasoconstritora, ao passo que desativa a bradicinina (um vasodilatador).
Os medicamentos anti-hipertensivos são inibidores sintéticos da ECA, como o captopril e o enalapril. No entanto, esses medicamentos por vezes podem causar efeitos colaterais, como angioedema, tosse e paladar alterado. Por outro lado, muitos peptídeos têm demonstrado ter um efeito similar aos anti-hipertensivos tradicionais, como o dipeptídeo Alanina-Prolina e o tripeptídeo Fenilalanina-Alanina-Prolina. Assim, hidrolisados de várias fontes, como glúten, soja e leite têm sido estudados como boas fontes de peptídeos com funções bloqueadoras da ECA.
Além dessas propriedades, há várias outras funcionalidades que os peptídeos podem apresentar, como atividades antiadipogênicas, antidiabéticas, anti-inflamatórias…
Vamos te fazer um desafio: ler rótulo é sempre uma boa ideia, e os hidrolisados estão tomando conta dos produtos ricos em aminoácidos e proteínas que estão presentes no mercado. Que tal ler a embalagem dos cosméticos e alimentos que você utiliza, e ver se consegue identificar algum produto resultante da hidrólise de proteínas? Deixa a gente saber nos comentários!
Referências:
de Castro, R. J. S., & Sato, H. H. (2015). Biologically active peptides: Processes for their generation, purification and identification and applications as natural additives in the food and pharmaceutical industries. Food Research International. https://doi.org/10.1016/j.foodres.2015.05.013
Matsui, T., & Matsumoto, K. (2006). Antihypertensive peptides from natural resources. Advances in Phytomedicine. https://doi.org/10.1016/S1572-557X(05)02015-5
Ngo, D. H., Kang, K. H., Ryu, B., Vo, T. S., Jung, W. K., Byun, H. G., & Kim, S. K. (2014). Angiotensin-I converting enzyme inhibitory peptides from antihypertensive skate (Okamejei kenojei) skin gelatin hydrolysate in spontaneously hypertensive rats. Food Chemistry. https://doi.org/10.1016/j.foodchem.2014.11.013