Você já se perguntou a que passo estamos de criar a primeira forma de vida totalmente sintética? Aprenda mais sobre o curioso mundo da biologia sintética.

Bote água no fermento, misture ovos, óleo, sal e açúcar, coloque farinha aos poucos. Siga todos os passos da receita, um tempinho no forno, e pronto, você tem um pão. Parece brincadeira, mas muito do que se faz em laboratórios de pesquisa é isso mesmo, seguir uma receita e esperar a “mágica” acontecer. Pois agora lhe pergunto, quais os ingredientes e qual a receita para produzir uma célula do zero?

Essa não é uma pergunta fácil de ser respondida. Na verdade, fazem 20 anos que pesquisadores tentam criar uma célula totalmente sintética, juntando biomoléculas nos contextos que melhor se aproximem dos diferentes aspectos da vida. 

De uma maneira geral, três componentes são essenciais para a vida: a compartimentalização de diferentes biomoléculas; o metabolismo e a bioquímica que gera energia necessária para sobreviver; e o controle e armazenamento da informação, ou seja, as instruções que guiam as células.

Com o avanço da tecnologia estamos cada vez mais perto deste feito. Diferentes grupos de pesquisa já conseguiram esculpir gotas lipídicas no formato desejado; criaram versões rudimentares do metabolismo celular; e transplantaram genomas inteiros criados sinteticamente para células vivas. Mesmo assim, unir esses 3 feitos continua sendo um grande desafio.

Mesmo assim, o futuro deste campo tem se mostrado promissor, com diversos projetos grandiosos e injeção de muito dinheiro. Um exemplo é o grupo BaSyC (Building a synthetic cell), criado em 2017 por pesquisadores de 17 laboratórios da Holanda, com o objetivo de construir “um sistema célula-like que cresça e se divida” dentro de dez anos. O projeto recebeu o equivalente a US$ 21,3 milhões da concessão Dutch Gravitation.

No entanto, muitos biólogos sintéticos acreditam que levará pouco mais de uma década até que a primeira célula totalmente artificial apareça. Afinal, a que passo estamos?

Cada um no seu compartimento

Um dos aspectos mais fundamentais para a vida é a compartimentalização de biomoléculas. Para que os processos biológicos funcionem, é essencial que alguns componentes sejam mantidos separados, enquanto outros devem ser aproximados.

De uma maneira geral, isso significa organizar biomoléculas dentro de membranas lipídicas. Nesse quesito, o grupo de Petra Schwille, do Max Planck Institute, tem contribuído bastante. 

Por meio de técnicas de microfluídica, o grupo dela e outros foram capazes de inserir diversas proteínas em membranas lipídicas artificiais, ou lipossomos, do tamanho de uma célula sem fazê-los explodirem. 

O início da pesquisa de Schwille foi com proteínas Min, conhecidas por serem responsáveis pelo direcionamento da divisão celular em bactérias. O objetivo final são lipossomos que se dividam sozinhos, como células.

Para produzí-los, no entanto, foi necessário dissolveram as proteínas Min em água e liberar gotículas dessa mistura em um tubo de ensaio que girava rapidamente. A força centrípeta puxa as gotículas através de densas camadas de lipídios que as encapsulam pelo caminho. As cápsulas saem pelo outro lado do equipamento como lipossomos, medindo cerca de 10-20 micrômetros – o tamanho médio de uma célula de planta ou animal. As proteínas Min fizeram os lipossomos pulsarem e contraírem em seu meio1.

Cees Dekker, um biofísico da Delft University of Technology, e colaboradores também conseguiram alocar proteínas em lipossomos pelo uso de um chip de microfluídos. No chip, dois canais contendo moléculas lipídicas convergem em um canal cheio de água, resultando em lipossomos do tamanho de uma célula com a capacidade de conter diversas biomoléculas2.

Funcionamento do chip de microfluídos para a produção de lipossomas. FONTE: Nature

Ainda assim, células não tem o formato esférico igual a estes lipossomos. Para tanto, o grupo de Dekker fez uso de técnicas de pressurização e deformação para criar estruturas com formato não-esférico, mais semelhante a células verdadeiras. Ainda este ano, eles desenvolveram um chip que consegue mecanicamente dividir um lipossomo em dois, pressionando-o contra uma ponta afiada.

“Isso, é claro, não é o que estamos atrás – nós queremos demonstram a divisão vinda de dentro [da célula], ainda assim isso nos conta informações interessantes” – disse Dekker, em entrevista para Nature. Alguns exemplos das informações obtidas são a força necessária para dividir uma célula, e os tipos de manipulação física que os lipossomos conseguem tolerar.

Adicionando energia ao sistema

Assim como qualquer máquina já inventada, todas as formas de vida precisam de energia para sobreviver, obtida normalmente na forma de adenosina trifosfato, ou ATP. Ainda que seja possível adicionar ATP externamente, uma célula sintética deveria possuir sua própria usina de energia para ser considerada viva.

Agora sendo possível adicionar componentes ao lipossomo sem estourá-lo, pesquisadores podem começar a pensar em como adicionar os componentes certos, na quantidade certa, de tal maneira a imitar a produção de energia celular.

Em células eucarióticas, isto normalmente é feito na mitocôndria. Nela, estão contidas cadeias de transporte de elétrons e uma enzima conhecida como ATP sintase, a qual utiliza a energia de passagem de prótons para gerar ATP, quase como uma roda d’água molecular.


FONTE: Curso Enem Gratuito

Pensando nisso, o grupo de Joachim Spatz, do Max Planck Institute for Medical Research, em Heidelberg, Alemanha, construiu uma mitocôndria artificial capaz de gerar ATP dentro de uma vesícula.

Para tanto, o grupo também fez uso de técnicas recentes da área de microfluídica. Primeiro, eles estabilizaram os lipossomos colocando-os em gotas de água em óleo, circundadas por uma camada viscosa de polímeros. Então, conforme essas gotas estabilizadas escorriam por um microcanal, a equipe fazia a injeção de grandes proteínas, dentro ou na superfície da membrana das mesmas.

Linha de montagem para injeção de proteínas em lipossomos. 
FONTE: Nature 

Utilizando este sistema, o grupo conseguiu inserir nessas membranas diversas enzimas ATP sintase. No entanto, só foi possível alcançar a produção de ATP pela adição de ácido no exterior dos lipossomos, de maneira a aumentar a carga de prótons do lado de fora da vesícula e permitir o funcionamento da enzima.

Com esse sistema de pico-injeção também é possível realizar diversas rodadas de injeção de proteínas, permitindo a adição sequencial de componentes. Assim, outra adição interessante seria de algum componente que gere o gradiente de prótons para o sistema automaticamente, como os componentes da cadeia de transporte de elétrons.

De maneira análoga, pesquisadores como do grupo de Erb, também do Max Planck Institute, estão tentando gerar energia por meio de rotas metabólicas. Eles têm dado especial atenção para microrganismos fotossintéticos capazes de absorver CO2 do ambiente, formando açúcares e outros blocos de construção celular.

Erb desenvolveu um sistema capaz de converter CO2 em malato, um metabólito essencial produzido durante a fotossíntese. Pelas predições do grupo, esse sistema seria ainda mais eficiente do que a fotossíntese.

Adicionando enzimas de diferentes organismos, e modificando algumas delas, o grupo foi capaz de construir um sistema que Erb diz ser 20% mais eficiente que a fotossíntese. Este mesmo grupo também já trabalha na construção de um cloroplasto sintético, ainda em etapas iniciais.

Injetando informações

Por fim, para que uma máquina funcione, é necessário que o código que a governe seja programado corretamente. Portanto, é preciso alguma maneira de armazenar informação, e de recuperá-la posteriormente. Em sistemas biológicos, isto é feito por meio dos genes no DNA.

De algumas centenas de genes para microrganismos, até dezenas de milhares para humanos, o número mais adequado para uma célula sintética ainda abre grande debate. Schwille sugere manter o número na faixa de algumas dúzias. Já outros pesquisadores dizem que uma células necessitará de 200-300 genes.

Para o sistema ser eficiente, é necessário que seja o mais simples possível. Para se obter um genoma mínimo, o biólogo sintético John Glass e colaboradores, do Instituto Craig Venter (JCVI) na Califórnia, resolveram começar pelo genoma da bactéria Mycoplasma mycoides, conhecido como o menor de todos os microrganismos. Para tanto, os pesquisadores interromperam os genes, um a um, a fim de identificar quais eram essenciais para a vida. Então, juntaram estes todos.

O genoma sintético ficou com  473 genes, cerca de metade do organismo original. Em 2016, o grupo mostrou que era possível gerar um organismo de vida livre, ainda que de crescimento lento, pelo uso desse genoma3. Glass comenta que será difícil diminuir ainda mais esse número – qualquer gene a menos ou mata a células, ou leva o crescimento muito próximo a zero.

O próximo passo agora será inserir este genoma mínimo sintético em um lipossoma artificial contendo a maquinaria necessária para ir do DNA até as proteínas, e torcer para o sistema sobreviver. Nesse caso, tanto as instruções celulares quanto a célula propriamente dita seriam 100% sintéticos.

Se a célula for capaz de crescer e se dividir, será um marco importante para a construção da primeira vida totalmente sintética. Mesmo assim, muitos ainda argumentam que para ser considerado como tal, a célula deveria ser capaz de evoluir e se adaptar ao ambiente. “Para uma célula ser viva, ela deve desenvolver novas funcionalidades” – comenta Schwille, em entrevista para a Nature.

Desta maneira, o objetivo final não deve ser a construção de uma célula sintética perfeita, mas sim um sistema capaz de se auto-corrigir, tornando-se melhor com o passar do tempo.

Tão importante quanto a criação deste sistema são as questões éticas e filosóficas. Seriam essas células consideradas vidas? Elas seriam autônomas? E ainda, seria possível controlá-las? Muitos pesquisadores concordam que este é um debate que deveria ser feito entre a academia e a sociedade.

Quanto a possibilidade destas células saírem do controle e causarem problemas, a realidade não é tão preocupante assim. Por advento de técnicas de biologia sintética, facilmente se adicionam controles celulares e mecanismos de kill switch – ou seja, gatilhos que causam a morte do organismo.

Independente disto, o debate ético é fundamental para estabelecer limites socialmente aceitos para uma realidade que cada vez mais se aproxima da ficção. Até que ponto devemos ir? Até onde queremos chegar? Estas perguntam devem nortear o avanço na criação de organismos sintéticos nos anos ainda por vir.

Texto revisado por Carolina Vasconcelos e Mariana Pereira
Texto inspirado na matéria “How biologists are creating life-like cells from scratch”– Nature – novembro 2018

Referências:
1 – https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/anie.201808750
2 – https://www.nature.com/articles/ncomms10447
3 – http://science.sciencemag.org/content/351/6280/aad6253.long
4 – How biologists are creating life-like cells from scratch – https://www.nature.com/articles/d41586-018-07289-xf8hqnF3pp7gHxDCYEvpzBrx0bBN-NarLts
5 – Focus on the benefits of building life’s systems from scratch – https://www.nature.com/articles/d41586-018-07285-1?error=cookies_not_supported&code=ece845c8-c51b-4d32-917e-b46c7de3fd38&fbclid=IwAR2gOKrlFkV-diXApkqrsEWExjuUMGy5NcKlkKfcbxTyvJFcatAbx5joYes

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