Imaginem a seguinte situação: Em uma população, um indivíduo é infectado por um vírus ou bactéria, desenvolve uma doença letal e transmite o agente patogênico rapidamente para outros indivíduos. A transmissão é tão rápida que a infecção atinge até mesmo outras populações em outros ambientes. Parece que já vivenciamos esse cenário, não é mesmo? Principalmente na pandemia da COVID-19. Mas hoje estamos falando das abelhas e vamos mostrar como algumas espécies que vivem em sociedade (colônias) também sofrem com infecções que podem dizimar suas populações.
Não é só a nossa espécie que precisa de vacinas para combater doenças, e a ciência tem encontrado formas para prevenir e imunizar outros organismos que são muito importantes para os ecossistemas e nos trazem benefícios, como as abelhas.
Neste texto vamos falar sobre a primeira vacina desenvolvida por uma empresa de biotecnologia que foi aprovada para imunizar abelhas e combater uma doença que se espalha rapidamente em abelhas que vivem em sociedade.
A doença “Loque Americana”
Todos nós já ouvimos, em algum momento, a respeito do risco mundial de desaparecimento das populações de abelhas. Elas são organismos chaves para a manutenção dos ecossistemas, já que polinizam a grande maioria dos vegetais que servem de alimento para nós e outras espécies. Além disso, elas nos fornecem inúmeros benefícios através da produção de mel, pólen, própolis e cera. Infelizmente o uso desenfreado de agrotóxicos é uma das principais atividades que ocasiona a morte de inúmeras populações de abelhas. Além deste problema, existem várias doenças ocasionadas por vírus, fungos e bactérias que podem atingir uma colônia inteira e dizimar sua população por completo.
Este é o caso da doença “Loque Americana”, do inglês American Foulbrood Disease, ocasionada por esporos da bactéria “Paenibacillus larvae”. No caso das abelhas, a infecção desencadeia a doença nas larvas que vivem de 24 a 72 horas. Podemos dizer, neste caso, que a doença é letal para os “bebês” da colônia. A bactéria coloniza todo o intestino das larvas e se espalha por outros tecidos, quando ocorre a liberação de proteases (enzimas que quebram proteínas) em um processo que “digere” todo o corpo da larva.
Apesar das abelhas operárias adultas serem imunes à doença, elas são vetores que transmitem os esporos da bactéria de larvas contaminadas para outras larvas da colônia durante o processo de alimentação das larvas . E se uma abelha operária que teve contato com uma larva contaminada entra em contato com abelhas de outra colméia, a infecção pode ser transmitida para a outra população.
Outro grande problema desta bactéria é que seus esporos podem ficar por décadas no meio ambiente, permanecendo patogênicos caso encontrem hospedeiros para se replicarem. Quando os apicultores detectam a doença, é necessário queimar toda a colônia e ainda colocar as outras colônias próximas de quarentena para certificar que não houve transmissão de esporos para estas.
Mas por quê uma doença letal somente para larvas é um grande problema para a colônia? Numa colônia de abelhas sociais, como da espécie Apis mellifera, há cerca de 20 mil abelhas operárias e uma única rainha. As abelhas operárias adultas vivem em torno de 40 a 50 dias apenas, o que exige que a rainha esteja sempre fazendo a postura de ovos para renovar essa população. Se todas as larvas são infectadas e morrem, não teremos a próxima geração de abelhas adultas para suprir as necessidades da colônia, o que trará um colapso e o fim da população daquela colméia.
Várias estratégias para prevenir ou controlar a doença já foram desenvolvidas por cientistas e adotadas por apicultores que dependem de colônias de abelhas para produção de mel e polinização de cultivares. Uma delas é o uso de antibióticos. No entanto, estes matam somente a bactéria que está na forma replicativa e não sua forma de esporo, ou seja, apenas controla os sintomas da doença nas larvas infectadas. Além disso, o uso de antibióticos pode comprometer a qualidade do mel que é retirado para consumo humano, já que eles podem contaminá-lo. Outro problema é o risco de surgirem cepas de bactérias resistentes aos antibióticos. Em 2023 surge uma solução: a vacina!
A vacina e o incrível processo de imunização
No início de 2023, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos aprovou o uso de uma vacina para a doença “Loque Americana”, desenvolvida pela empresa de biotecnologia Dalan Animal Health. Sua elaboração é similar à algumas vacinas que conhecemos para doenças humanas, onde a bactéria é inativada para compor a formulação. No caso das abelhas, ela é administrada de forma oral através da alimentação de um modo bem peculiar.
Na verdade, não são as larvas que recebem a vacina oralmente, mas sim a abelha rainha. Mas então, como as larvas se tornam imunes se é a rainha quem recebe a vacina? Aí é que entra um mecanismo do sistema imune de insetos muito interessante chamado “trangerational immune priming”. Neste mecanismo, é possível que a imunidade à agentes patogênicos seja transmitida à prole através da mãe. No caso das abelhas, quando a rainha entra em contato com fragmentos da bactéria inativada, seu organismo é capaz de carregá-los para os ovários através de uma proteína chamada vitelogenina e garantir que os ovos produzidos contenham o imunizante. Isto garante que o sistema imune da prole, as larvas, esteja preparado para combater a infecção.
No entanto, temos outro fato curioso. A abelha rainha não se alimenta sozinha e depende das operárias para tal. Sendo assim, o processo de imunização começa quando se mistura a vacina com um alimento que é consumido por abelhas operárias jovens que são confinadas em um pequeno ambiente com uma rainha fértil. No organismo das operárias, a bactéria inativada é quebrada em diversos fragmentos no intestino que são transportados para as glândulas que produzem o alimento específico da rainha, a geléia real. Dessa forma, as operárias alimentam a rainha com a geléia real contendo a vacina, e esta é posteriormente inserida em uma colônia para que o mecanismo de transferência de imunidade ocorra para sua próxima prole através da postura de ovos.
O desenvolvimento desta vacina é um marco incrível para combater uma das doenças mais agressivas e preocupantes que atacam colônias de abelhas todos os anos e geram perdas significativas para os apicultores. E mais ainda, temos uma inovação na ciência que mostra que a produção de vacinas pode ser direcionada para além dos organismos que estamos acostumados (humanos, animais de estimação, aves e mamíferos silvestres) e pode funcionar muito bem para proteger até mesmo invertebrados, como os insetos.
Cite este artigo:
ABREU, F. C. P. Abelhas ganham primeira vacina feita pela Biotecnologia. Revista Blog do Profissão Biotec. V. 10, 2023. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/abelhas-ganham-primeira-vacina-feita-pela-biotecnologia/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências
Dalan Animal Health. Resources. Disponível em < https://www.dalan.com/resources#video-most-destructive-bee-disease > Acesso em 01 de abril de 2023.
DICKEL, Franziska et al. The oral vaccination with Paenibacillus larvae bacterin can decrease susceptibility to American Foulbrood infection in honey bees—A safety and efficacy study. Frontiers in Veterinary Science, v. 9, p. 1494, 2022.
GENERSCH, Elke. American Foulbrood in honeybees and its causative agent, Paenibacillus larvae. Journal of invertebrate pathology, v. 103, p. S10-S19, 2010.
SALMELA, Heli; AMDAM, Gro V.; FREITAK, Dalial. Transfer of immunity from mother to offspring is mediated via egg-yolk protein vitellogenin. PLoS pathogens, v. 11, n. 7, p. e1005015, 2015.
MILMAN, Oliver. US government approves use of world’s first vaccine for honeybees. The Guardian. Disponível em: < https://www.theguardian.com/environment/2023/jan/04/honeybee-vaccine-first-approved> Acesso em 30 de março de 2023.
GLOBO RURAL. EUA aprovam a primeira vacina do mundo para abelhas. Disponível em: < https://globorural.globo.com/inovacao/noticia/2023/01/eua-aprovam-a-primeira-vacina-do-mundo-para-abelhas.ghtml> Acesso em 28 de março de 2023.
Fonte da imagem destacada: Wikimedia.