Nos últimos 10 anos, a técnica de CRISPR-Cas9 se tornou a estrela da vez e abriu a possibilidade para a edição pontual de genes, como por exemplo a eliminação ou adição de mutações. Seria essa a grande chave para realizarmos “consertos” em genes humanos que estão associados a doenças? Essa intervenção poderia ser eficaz em eliminar determinadas condições genéticas hereditárias em embriões garantindo que um casal tenha um filho saudável? Quais dilemas nos atravessam ao pensar nisso?
Para que editar embriões?
Para responder essa pergunta, precisamos saber que cerca de 80% das doenças raras encontradas no mundo são de origem genética e podem ser herdadas. Muitas dessas doenças têm correlação com uma mutação em um gene que irá produzir uma proteína disfuncional. É durante a fecundação que a combinação do material genético do pai e da mãe pode transmitir cópias de genes com mutações raras que podem levar a manifestação de uma doença nos filhos.
Atualmente é possível que o casal faça um teste de compatibilidade genética antes de ter filhos. Esse teste é feito pelo sequenciamento do DNA do sangue dos pais para que sejam detectados genes com mutações associadas a doenças raras. Dessa forma, o casal é aconselhado se há riscos de que a sua combinação genética possa gerar filhos que manifestem determinada doença.
O problema é que não há cura para essas doenças genéticas. E é aí que a técnica de CRISPR chama a atenção como uma possibilidade de curar essas doenças editando o gene defeituoso diretamente nas primeiras células do embrião. A edição poderia ser feita após a fertilização assistida e seria uma alternativa à seleção de embriões. Essa última é feita em alguns casos para selecionar embriões sem combinações de genes defeituosos relacionados a doenças, mas é mais dispendiosa, tem pouco sucesso e exige várias tentativas.
Mas a técnica de CRISPR funciona? É segura? Já foi realizada em embriões? O que pensar disto?
Reflexões com o caso dos bebês Nana e LuLu
A essa altura, vocês já devem ter ouvido falar das gêmeas que tiveram um gene editado através da fertilização assistida. O procedimento, realizado pelo pesquisador chinês He Jiankui em 2018, foi realizado de forma ilegal, não autorizada, e o objetivo não foi curar uma doença genética rara. A proposta foi editar o gene CCR5, que gera uma proteína importante para que o vírus HIV entre nas células, e conferir imunidade aos bebês cujo pai era portador do vírus.
Como cerca de 5% da população mundial apresenta uma mutação no gene que confere imunidade ao HIV, o que o pesquisador fez foi editar o gene dos embriões adicionando essa mutação. Após o nascimento das gêmeas, o caso veio à tona e tomou proporções mundiais, trazendo diversas discussões bioéticas a respeito da edição de embriões. Além de perder seu cargo profissional, cumprir pena e ser multado, o pesquisador não conseguiu publicar o seu estudo que foi recusado pelas revistas científicas.
A primeira pergunta que nos vêm é: O que de fato aconteceu com as gêmeas? Elas estão saudáveis e imunes ao HIV? Atualmente elas têm sua identidade preservada, se encontram saudáveis e são monitoradas pelo governo chinês. Sobre o sucesso da edição por CRISPR, a revista MIT Technology Review teve acesso a partes do artigo redigido pelo pesquisador, as quais foram analisadas por outros pesquisadores. O que se sabe é que as mutações geradas no gene CCR5 não foram as mesmas encontradas em 5% da população mundial, além dos dados mostrarem que não foram todas as células das gêmeas que foram editadas.
Diante desses fatos, os dilemas bioéticos nos bombardeiam com várias questões. A execução ilegal do experimento é o ponto mais claro. Em seguida, a técnica de CRISPR não foi utilizada na tentativa de remover uma mutação de uma doença genética rara, mas sim adicionar uma mutação em um gene para conferir imunidade a um vírus. O que se discute e deverá ser avaliado é se as mutações geradas irão afetar outros aspectos fisiológicos das gêmeas, já que o gene tem outras funções importantes no organismo.
Outro ponto a ser refletido é: sabemos tudo da técnica de CRISPR para aplicá-la em embriões? Aparentemente, ainda estamos longe de ter certeza de que a técnica tem 100% de eficiência e que é específica somente a região do gene desejada. Há uma preocupação sobre os efeitos off-target, ou seja, a possibilidade de se editar outros lugares do DNA. Também há a discussão sobre o futuro das gêmeas: elas poderão ter filhos, uma vez que o gene editado pode ser transmitido aos filhos?
Depois do ocorrido, foi criada uma moratória internacional que proíbe a edição gênica em embriões humanos, seja para reprodução assistida ou pesquisa. Muitos pesquisadores defendem a realização de pesquisas com embriões congelados que não foram utilizados para reprodução e acabam sendo descartados. Esses poderiam auxiliar no entendimento da técnica de edição sem que haja a implantação para a geração de um bebê.
Como decidir o que editar em embriões?
E se conseguirmos avançar no entendimento da técnica de CRISPR a ponto de poder finalmente curar condições que apresentam traços genéticos? Que tipo de condição poderia ser eliminada com a edição gênica? Qualquer uma?
O caso das gêmeas nos mostra que não houve uma tentativa de curar uma doença genética ou fatal. Outra reflexão importante é que atualmente existem outros modos de um casal, onde o pai é portador do vírus HIV, gerar filhos saudáveis através da reprodução assistida sem que haja a transmissão do vírus ao embrião.
No caso de doenças genéticas, como decidimos quais devem ser curadas por edição gênica? Sabemos que muitas dessas doenças ou deficiências genéticas não são letais para os filhos e não afetam a expectativa de vida e capacidade de se desenvolver em sociedade. Alguns exemplos são o nanismo e a surdez. Caberia a quem decidir qual espectro de doenças genéticas poderiam ser curadas em embriões?
Um relato interessante ocorreu em 2008, quando um casal britânico com surdez hereditária, que já tinha um filho surdo, procurou serviços de fertilização assistida para selecionar embriões com a mesma condição. O casal justificou que para o contexto familiar e cultural de pessoas surdas, ter filhos na mesma condição seria benéfico para a comunicação e vivência entre os membros. Levando esse ponto em consideração, seja para a seleção ou edição de embriões, fica também a questão ética: Podemos decidir selecionar e editar determinadas condições genéticas em nossos filhos? Podemos impor certas idealizações a outro ser?
Edição de embriões além da cura de doenças?
Na ficção científica existem obras literárias e filmes que relatam o uso da engenharia genética para editar e selecionar embriões humanos com características desejáveis. Tanto no filme GATTACA quanto no livro Admirável Mundo Novo, nos deparamos com uma sociedade distópica onde o DNA de embriões é “programado” para gerar indivíduos saudáveis, mais habilidosos, inteligentes, atraentes e que ocupam diferentes posições dentro da sociedade.
Estamos perto dessa realidade? Já se sabe que existem clínicas de fertilização assistida espalhadas mundialmente que permitem ao casal escolher o sexo de seus filhos e até mesmo apostar em determinadas características de acordo com o perfil genético de doadores de esperma. E se a edição gênica se tornar uma realidade? Será que chegaremos ao ponto de editar embriões para gerar humanos mais inteligentes, bonitos ou com melhores habilidades esportivas e cognitivas?
Podemos dizer que editar embriões para terem as características citadas acima é algo muito fantasioso e distante. Isso se deve ao fato de que muitas dessas características são multigênicas, ou seja, dependem da ação de vários genes para se manifestarem. Um exemplo é a cor dos olhos. O mesmo vale para várias patologias que aparecem devido ao mau funcionamento de vários genes. Ainda estamos longe de conseguir entender todos os genes que estão envolvidos em diversas características ou doenças, e a técnica de CRISPR, caso nos traga sucesso, seria útil para curar doenças genéticas com mutações em um único gene.
É preciso também realizar a reflexão ética sobre qual o impacto social da permissão de se editar embriões para características desejáveis não relacionadas a doenças graves. A quem se destinaria esse processo? Quem teria acesso? Quais implicações surgiriam na sociedade?
Concluindo
As técnicas de edição genética, particularmente por CRISPR, nos fazem pensar em novas abordagens para solucionar problemas na pesquisa e criam perspectivas de aplicação na terapia gênica. De fato, a técnica de CRISPR já está sendo utilizada em células de indivíduos adultos como propostas de terapia gênica para tratar ou eliminar condições como a anemia falciforme. Entretanto, quando se diz respeito à edição de embriões humanos, ainda há muito que se explorar da técnica para que de fato possamos utilizá-la para curar doenças genéticas raras e garantir a segurança dessas pessoas. Toda a discussão ética não compete somente à ciência, mas envolve um debate amplo na sociedade que envolve diversos pontos de vista a serem colocados em pauta, a questão da legislação e regulamentação.
Citar este artigo:
ABREU, F. C. P. Bioética e edição de embriões humanos. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/bioetica-edicao-embrioes-humanos/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências
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McKIE, Robin & HINSLIFF, Gaby. The Guardian. This couple wants a deaf child. Should we try to stop them? Disponível em: < https://www.theguardian.com/science/2008/mar/09/genetics.medicalresearch> Acesso em: 2 de agosto de 2022.
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REGALADO, Antonio. MIT Technology Review. China`s CRISPR babies: read exclusive excerpts from the unseen original research. Disponível em: <https://www.technologyreview.com/2019/12/03/131752/chinas-crispr-babies-read-exclusive-excerpts-he-jiankui-paper/ > Acesso em: 1 de agosto de 2022.
ROBERTS, Michelle. BBC News. Por que o cientista chinês que diz ter editado genes de bebê causou revolta entre pesquisadores? Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/geral-46325617> Acesso em: 3 de agosto de 2022.
Fonte da imagem destacada: Wikimedia.