Em 2020, os canais de notícia ficaram repletos do caso da pequena Kyara e a luta da sua família para conseguir o Zolgensma, o medicamento mais caro do mundo, estimado em 12 milhões de reais (2 milhões de doláres). Mas você sabe o que esse remédio faz e por que ele é tão caro?
Neste texto, iremos abordar como é a biologia e a clínica da atrofia muscular espinhal (AME), o modo de ação do medicamento e também o papel da biotecnologia para a obtenção do tratamento dessa doença genética.
O que é a AME?
A Kyara é uma criança brasileira de um ano que foi diagnosticada com atrofia muscular espinhal (AME). Essa é uma doença hereditária neurodegenerativa que afeta 1 em cada 10.000 indivíduos, caracterizada pela morte dos neurônios motores (células do sistema nervoso necessárias para o controle do movimento dos músculos), causando fraqueza muscular progressiva.
Existem diferentes tipos de AME: do tipo I ao tipo IV; classificadas de acordo com a idade de início dos sintomas e da capacidade motora máxima atingida pelo paciente, porém a gravidade da condição varia de pessoa para pessoa.
O diagnóstico de AME requer urgência e é feito inicialmente pela observação dos sintomas; o recém-nascido pode apresentar atraso no desenvolvimento motor, além de outros sintomas característicos entre os subtipos da doença: hipotonia, fraqueza dos músculos e reflexos diminuídos. Mas o diagnóstico definitivo depende do exame molecular cujo objetivo é verificar os genes SMN1 e SMN2.
Em pessoas saudáveis, esses genes codificam a proteína SMN (sigla em inglês para proteína da sobrevivência do neurônio motor) que, como o nome já diz, é essencial para a preservação dessas células. Caso o indivíduo tenha uma cópia mutada/modificada dos genes, ele não conseguirá sintetizar a proteína devidamente, o que confirma o diagnóstico para atrofia muscular espinhal.
Até uns anos atrás não havia cura ou tratamento para AME, sendo apenas providenciado suporte e apoio às pessoas acometidas. Em 2018, porém, a Anvisa aprovou um dos primeiros medicamentos para tratar a doença; e este cenário tem avançado ainda mais com a ajuda da biotecnologia.
A biotecnologia atuante nas terapias gênicas
Como diversas patologias têm base genética, ou seja, se manifestam devido a mutações nos nossos genes (por exemplo, a AME), seria muito desejável uma intervenção médica capaz de tratar o problema em sua fonte. E, felizmente, existe uma área que abrange exatamente isso e que estuda como podemos consertar as partes de nós que causam doença: a terapia gênica.
Utilizando técnicas biotecnológicas como DNA recombinante e vetores virais, a terapia gênica visa trocar genes problemáticos para genes saudáveis/terapêuticos no nosso organismo. Existem diferentes modalidades de terapia gênica, sendo que uma delas funciona da seguinte maneira: um vírus não replicativo (e que não causará doença) carregando uma cópia saudável do gene é administrado no paciente que possui alguma doença genética; a cópia será transportada por esse vírus até células específicas, que vão incorporar o gene correto e poderão expressar o produto funcional desse gene, tratando a doença do paciente.
Agora, caso essa cópia saudável for do gene SMN1, o tratamento pode ser para atrofia muscular espinhal!
O medicamento: conquistas e desafios
Onasemnogene abeparvovec (nome comercial Zolgensma), o medicamento que foi tão noticiado no Brasil nos últimos meses, é o primeiro medicamento aprovado que utiliza terapia gênica para tratar a AME. Ele é administrado em uma dose intravenosa única em crianças de até 2 anos portadoras da AME tipo I, a mais grave dos subtipos da doença, e provoca melhora no movimento dos músculos e na sobrevivência do paciente.
Apesar de se mostrar eficaz, Zolgensma ainda apresenta pontos preocupantes. Um dos principais é o preço; porém, vale notar que essa desvantagem é, até o momento, intrínseca aos medicamentos de terapia gênica. O motivo do custo ser tão elevado está no fato de ser fruto de uma tecnologia relativamente nova, com elevado investimento para seu desenvolvimento e ademais, a Novartis, empresa farmacêutica que produz o medicamento, é a única que o desenvolve e possui exclusividade para sua venda por ser detentora da patente.
Felizmente, em dezembro de 2020, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão do governo federal responsável pela definição dos preços máximos de comercialização de um medicamento no país, conseguiu reduzir em redução de 76,6% no valor o valor do medicamento no país: estipulando em R$ 2,878 milhões o valor máximo para venda do Zolgensma.
Outro ponto negativo são os efeitos adversos, que incluem aumento da concentração de enzimas hepáticas e a diminuição da contagem de plaquetas no sangue após administração do medicamento. Essa toxicidade hepática provavelmente ocorre por causa de uma reação imunológica do organismo contra o vetor viral, mas ela é passível de ser aliviada ou contornada com a administração conjunta de corticosteróides.
Os riscos a longo prazo do uso desse medicamento ainda não foram completamente determinados, o que inspira mais estudos e análises clínicas. Não obstante, os benefícios a curto prazo são significativos; os pacientes têm melhores perspectivas de vida após tomar a dose única do remédio. E conforme a realização de novas pesquisas, há a possibilidade de se baratear o custo de produção e também de desenvolver medicamentos genéricos, disponibilizando a terapia gênica para mais pessoas.
Até lá, ferramentas biotecnológicas com potencial terapêutico já estão sendo utilizadas para melhorar a vida de inúmeros brasileiros, como a Kyara e a sua família.
Cite este artigo:
Franca, Luísa Valério. A biotecnologia e o remédio mais caro do mundo. Blog do Profissão Biotec. V. 8. Março/2021. Disponível em <www.profissaobiotec.com.br/biotecnologia-remedio-mais-caro-do-mundo