O cacau dá origem a um dos produtos mais adorados e conhecidos no mundo: o chocolate. Não é por acaso que seu nome científico, Theobroma cacao, originado do grego, significa “alimento dos deuses”. Antes de o chocolate chegar às prateleiras, porém, os grãos de cacau passam por um longo processo no qual são desenvolvidos todos os aromas e sabores que tanto amamos.
Você sabe quem é responsável por essa mágica? Aproveite para abrir sua barra favorita e entre no clima dessa leitura!
O cacau
Tudo começa na plantação da matéria-prima. As árvores de cacau são naturais de regiões tropicais e demoram cerca de 3 a 4 anos para tornarem-se frutíferas. Sucedida a fecundação de suas flores, desenvolvem-se os frutos.
Após a colheita, que ocorre duas vezes ao ano, os frutos maduros são cuidadosamente abertos e suas sementes são retiradas manualmente, uma a uma. Conforme ilustrado na figura abaixo, cada semente é envolvida por uma polpa branca, rica em açúcares, principalmente sacarose. Neste momento, o sabor, aroma e aspecto não se assemelham de forma alguma ao chocolate.
Para garantir que a fermentação ocorra de forma homogênea, os grãos e polpa são misturados e transferidos para diferentes caixas durante todo o processo. Fonte: On the cocoa trail
O início da transformação
Os grãos e a polpa coletados são rapidamente acondicionadas em grandes recipientes cobertos, tradicionalmente, por folhas de bananeira (caixotes de madeira são muito populares nesta prática). Este processo permite a manutenção da umidade e da temperatura do ambiente, promovendo uma condição ideal para o desenvolvimento de micro-organismos fermentativos. Assim, a mágica se inicia.
O processo fermentativo
Ao contrário de produtos fermentados tradicionais, como cerveja, kombucha, kefir e diversos queijos, a fermentação do cacau ocorre espontaneamente. Isso significa que os micro-organismos presentes na polpa, no grão e no ambiente (principalmente aqueles naturais da casca do fruto) são os responsáveis pela transformação dos grãos de cacau. Para uma fermentação bem sucedida, são necessárias leveduras, bactérias ácido-láticas e acéticas interagindo em um sistema empírico, porém muito complexo, que demora de 2 a 10 dias.
Acompanhe a representação gráfica abaixo para entender melhor o processo:
Representação gráfica fermentação espontânea do cacau. a) Curva de crescimento dos diferentes micro-organismos envolvidos. b) Degradação (linhas tracejadas) de substratos e produção (linhas contínuas) dos principais metabólitos. Adaptado de: De Vuyst & Weckx, 2016.
Nas primeiras horas deste bioprocesso, a fermentação é considerada anaeróbica (sem presença de oxigênio), devido à alta compressão dos grãos e da polpa. Nesta etapa, as leveduras são os micro-organismos predominantes no meio. Os açúcares presentes na polpa são convertidos em etanol e CO2 pelas leveduras. O ácido cítrico também é consumido, o que eleva o pH do meio de 3,6 para aproximadamente 4. Todas essas reações químicas são exotérmicas (liberam calor), por isso ocorre o aumento da temperatura do sistema para 35 – 40 °C.
As condições de pH ácido e a temperatura elevada evitam a contaminação por micro-organismos indesejados. Neste momento, as bactérias ácido-láticas se desenvolvem cada vez mais. Enquanto isso, por meio da atividade de pectinase (enzimas que degradam a pectina, polissacarídeo encontrado na parede celular de plantas), as leveduras degradam a polpa, promovendo sua drenagem. As polpas ficam menos viscosas, o que permite uma gradual entrada de ar no ambiente fermentativo.
No final do segundo dia de fermentação, o ambiente está cada vez mais aeróbico (presença de oxigênio), todos os açúcares fermentescíveis se encontram praticamente consumidos e as leveduras tornam-se inviáveis (param de crescer).
A partir do terceiro ou quarto dia, conforme o etanol produzido pelas leveduras difunde-se pelo ambiente fermentativo, ele passa a ser cada vez mais utilizado por bactérias ácido-acétic`oléculas orgânicas em ácido acético. Esta conversão promove um aumento ainda maior na temperatura do sistema (acima de 40 °C). A frutose não consumida é reduzida a manitol nos últimos dias do processo. A fermentação chega ao seu fim quando o ácido acético e lático são gradualmente evaporados, a temperatura vai ficando mais baixa e a coloração do grão fica marrom.
Diversos estudos têm sido realizados com a finalidade de compreender melhor o processo fermentativo do cacau. Há mais de 10 anos, pesquisadores da USP desenvolveram uma variedade híbrida da levedura Kluyveromyces marxianus, que melhora a qualidade da matéria prima brasileira. A nova levedura degrada mais rapidamente a polpa e, consequentemente, aumenta a aeração e facilita a fermentação dos grãos, o que diminui a acidez da massa de cacau resultante.
A importância do processo fermentativo
Embora a torra da semente fermentada e outras operações de manufatura sejam importantes para o sabor final, a fermentação do cacau é considerada uma etapa crucial para o desenvolvimento dos aromas irresistíveis e característicos do chocolate. Durante o processo fermentativo, os micro-organismos presentes produzem diversos compostos orgânicos precursores dos aromas que tanto adoramos a partir dos componentes da biomassa (frutose, glicose, sacarose, ácido cítrico, entre outros).
Além disso, a fermentação também promove modificações dentro do grão. O etanol, ácido acético, calor e pH promovem a morte da região embrionária da semente de cacau, desencadeando uma série de reações bioquímicas e modificações fisiológicas. Alcalóides e polifenóis são liberados da semente para o sistema, diminuindo o amargor e adstringência dos grãos fermentados.
Todas essas transformações e compostos gerados são essenciais para o desenvolvimento do sabor, aroma e mudança da coloração do grão. O cacau não plenamente fermentado resulta em chocolates com coloração roxa, sabor mais verde e ácido, sendo pouco apreciado pelo consumidor.
Mudança de coloração do grão durante a fermentação. b) Aparência de grãos bem fermentados e mal fermentados. Adaptado de On the cocoa trail
Veja o resumo do processo:
Adaptado de On the cocoa trail
Mas afinal, quais são as moléculas responsáveis pelo sabor irresistível?
Mais de 600 compostos voláteis são encontrados em grãos de cacau fermentados. Existe um consenso de que o aroma resultante é uma combinação dessas diversas moléculas. No entanto, acredita-se que onze compostos são os principais responsáveis pelo sabor que tanto amamos. Apesar de os aromas, individualmente, parecem estranhos, sua combinação gera um resultado perfeito, concorda?
Principais compostos e aromas do chocolate:
Composto |
Aroma percebido |
2-metilpropanal | malte, chocolate amargo |
3-metilpropanal | malte, chocolate amargo |
fenilacetaldeído | floral |
2-etil-3,5-dimetilpirazina | pipoca, batata |
tetrametilpirazina | café com leite, noz |
trimetilpirazina | terroso, amendoado |
2-acetil-1-pirrolina | pipoca |
Ácido 3-metilbutanóico | queijo, suor |
3,5 (ou 2) -dietil-2 (ou 5) -metilpirazina | cacau, chocolate, rum |
2-metilbutanal | chocolate |
furaneol | caramelo |
Adaptado de Aprotosoaie e American Society for Microbiology
Quem está envolvido?
O processo de fermentação do cacau envolve diversas bactérias e leveduras, que variam de acordo com ambiente e práticas locais. Estudos indicam que as leveduras predominantes no processo são Hanseniaspora opuntiae/uvarum e Saccharomyces cerevisiae. Diversas outras espécies de Hanseniaspora spp. e Pichia spp. também são muito recorrentes e importantes. As principais bactérias envolvidas são Lactobacillus fermentum e Acetobacter pasteurianus. Outras bactérias, principalmente desses gêneros, também podem estar envolvidas.
De toda forma, a fermentação do cacau é bastante heterogênea. Assim, originam-se produtos com características muito particulares, que variam de acordo com as culturas de micro-organismos presentes no processo, práticas locais, quantidade de polpa, semente e seus metabólitos. Por esse motivo, os produtores de chocolate normalmente misturam diferentes pós de cacau fermentado para manter a padronização do produto final.
Imagine por um momento o mundo sem chocolate. Sem micro-organismos, não teríamos a fermentação do cacau e, sem este processo, não teríamos sabor de chocolate. Então, na próxima vez que você desejar uma deliciosa barra de chocolate, lembre-se de que ele é resultado não apenas de um grão, mas de diversas reações bioquímicas realizadas por micro-organismos.
Este é o exemplo mais delicioso de biotecnologia clássica, concorda?
Referências
Aprotosoaie et al., Flavor Chemistry of Cocoa and Cocoa Products—An Overview. Comprehensive Reviews in Food Science and Food Safety, 2016.
De Vuyst & Weckx. The cocoa bean fermentation process: from ecosystem analysis to starter culture development. Journal of Applied Microbiology, 2016.
LEAL JR., G. A., et al. Fermentation of cacao (Theobroma cacao L.) seeds with a hybrid Kluyveromyces marxianus strain improved product quality attributes. Fems Yeast Research. v. 8, p. 788-798. ago. 2008.
Buczek, Monika. CHOCOLATE: THE FERMENTATION AND FLAVORS OF THE CHOCOMICROBIOME. American Society for Microbiology, 2017. Disponível em: <https://www.asm.org/index.php/general-science-blog/item/6289-chocolate-the-fermentation-and-flavors-of-the-chocomicrobiome>
Bray, Juliet. From cacao tree to bean: the beginning of fermentation. On the cocoa trail, 2012. Disponível em: <https://onthecocoatrail.com/2012/06/20/from-tree-to-bean-the-beginning-of-fermentation/>
Revisado por Rodrigo Cano e Thais Semprebom