A Engenharia Metabólica é uma tecnologia de ponta que pode apoiar o desenvolvimento sustentável e trazemos dicas de como torná-la realidade. Confira!

No primeiro texto desta série “Engenharia Metabólica”, falamos sobre o que é Engenharia Metabólica e qual é o potencial dessa tecnologia para apoiar o desenvolvimento sustentável. A teoria é muito linda, mas como torná-la realidade? 

Na literatura científica existem muitos exemplos de pesquisas que conseguiram desenvolver microrganismos geneticamente modificados para obtenção de bioprodutos. No entanto, para que esse microrganismo seja de fato utilizado na indústria, é fundamental que ele atinja valores excelentes de concentração final, rendimento e produtividade, tornando o (bio)processo economicamente viável. Para que isso seja possível, não basta apenas inserir a nova via metabólica no microrganismo hospedeiro, é necessário realizar várias rodadas de otimização

Portanto, uma etapa muito crítica é o planejamento do projeto de Engenharia Metabólica para garantir que seja desenvolvido com o menor tempo, esforço e investimento financeiro possível. Os projetos tradicionais estimam uma aplicação de tempo e pessoal entre 50 e 300 pessoas/ano de trabalho e um investimento financeiro de até algumas centenas de milhões de dólares. Hoje em dia, com técnicas de engenharia metabólica mais eficientes, automatização de processos e outras tecnologias, já é possível reduzir bastante os custos e o tempo de desenvolvimento.

Trazemos aqui uma estratégia para criar e desenvolver projetos em Engenharia Metabólica de forma mais efetiva, baseada no artigo publicado por Lee e Kim (2015). Os próximos textos desta série aprofundam um pouco mais nessas etapas e o anterior traz uma introdução aos conceitos apresentados aqui. 

Resumo das etapas do desenvolvimento de um projeto de engenharia metabólica. Fonte: próprio autor, inspirada em Lee et al (2015)

1- Seleção de um bioproduto

Embora pareça simples, esta é a etapa mais crítica do projeto. Para decidir qual molécula “vale a pena “ ser produzida, é fundamental entender o mercado para o qual ela será vendida. Por exemplo, trata-se de uma commodity ou um ativo farmacêutico? No primeiro caso, o mercado provavelmente será muito grande e com baixa lucratividade, o que significa que precisaremos ter um alto rendimento de produção da linhagem. No segundo caso, por sua vez, há bastante valor agregado no bioproduto e o rendimento de produção não é tão crítico; porém, há diversos aspectos técnicos e regulatórios que devem ser observados.

Além disso, devemos nos perguntar: quem já produz essa molécula? Existem muitos concorrentes no mercado? Existe tecnologia patenteada? Haveria espaço para eu participar desse mercado?

Uma vez escolhido um bioproduto interessante, a etapa seguinte é realizar uma análise preliminar técnico-econômica para entender qual o melhor tipo de processo fermentativo (aeróbico x anaeróbico, por exemplo), a fonte de carbono, o microrganismo escolhido e outros fatores que influenciam no custo de produção final daquela molécula. Quanto mais variáveis forem analisadas, melhor entenderemos os riscos do projeto.

A indústria costuma realizar estas etapas com bastante cuidado, mas na academia muitas vezes isso não é priorizado, gerando um empecilho para realizar a transferência de tecnologia.

2- Escolha de uma linhagem de microrganismo

A maior parte dos projetos de Engenharia Metabólica é desenvolvida em Escherichia coli, uma tradicional bactéria utilizada em laboratório, ou Saccharomyces cerevisiae, a famosa levedura de pão e cerveja. Ambos são microrganismos fáceis de trabalhar em laboratório, com rápido crescimento e com uma ampla gama de ferramentas genéticas conhecidas.

Células de levedura Saccharomyces cerevisiae vistas em microscópio. Fonte: Wein.plus

No entanto, para alguns bioprodutos, existem outros microrganismos que são mais interessantes. Um exemplo é o uso da bactéria Corynebacterium glutamicum para obtenção do aminoácido L-lisina pois ela já produz naturalmente altas concentrações de L-glutamato e outros aminoácidos. Essa estratégia está sendo usada industrialmente pela Evonik na sua planta localizada na cidade de Castro (Paraná).

3 – Reconstrução da via metabólica

Essa é a parte que os biotecnologistas mais gostam: a hora de realizar modificações genéticas! Claro, esta etapa somente é necessária se o microrganismo escolhido não for um produtor natural do bioproduto. Caso contrário, podemos pular diretamente para a etapa 4.

Para a reconstrução da via metabólica, devemos pesquisar opções de enzimas no genoma e metagenoma de outros organismos e escolher aquelas mais eficientes. Na prática, normalmente são selecionadas várias enzimas diferentes e todas elas são testadas em laboratório – é melhor ter muitas opções para aumentar a chance de encontrar uma boa.

Exemplo de reconstrução de via metabólica. No esquema da esquerda, há uma levedura natural com uma sequência de reações enzimáticas (flechas verdes) que converte o açúcar em diversas moléculas (em laranja). No entanto, a levedura não é capaz de produzir o triângulo azul, que é de interesse comercial. Para atingir esse objetivo, cientistas transferem genes/enzimas de outros organismos (água-viva e camundongo) para a levedura e removem os genes para produzir subprodutos (moléculas laranjas). Após a modificação genética, a levedura é capaz de transformar o mesmo açúcar em outro produto, através de uma nova sequência de reações enzimáticas (via metabólica). Fonte: Braskem/Ana Karina Brambilla Costa.

4 – Aumento da tolerância ao produto final

Embora essa atividade esteja listada em quarto lugar na lista, ela pode ser executada em qualquer estágio do desenvolvimento de uma nova linhagem.

A maior parte dos bioprodutos começa a inibir o crescimento do microrganismo quando atinge uma certa concentração no meio de cultivo. Quando isso ocorre, o microrganismo acaba morrendo ou ficando inativo. A ideia é torná-lo mais tolerante ao produto final, já que desejamos produzi-lo em concentrações muito altas. 

Um exemplo é o aumento de cerca de 2 vezes na taxa de crescimento da bactéria E. coli (aquela que citamos no item 2) em um meio de cultivo com etanol. Isso foi atingido  através de cultivos sequenciais por um longo período que a tornaram mais “tolerante”. 

Experimento de evolução em laboratório para aumento de tolerância à etanol durante o período de 2500 horas (104 dias) em meio de cultivo com 5% de etanol (5 mL a cada 100 mL de meio). O teste foi realizado com 6 diferentes cepas de Escherichia coli em paralelo. O gráfico mostra que a taxa de crescimento da bactérias foi aumentando ao longo do tempo, demonstrando que o experimento foi efetivo para tornar essas linhagens mais “tolerantes” à presença de etanol no meio de cultivo. A Cepa A (vermelho) destacou-se das outras como a mais tolerante. Adaptado de Horinouchi et al (2010).

5 – Remoção de circuitos regulatórios

Quando a gente fala que a Biologia e a Bioquímica são lindas não é à toa: os organismos vivos evoluíram estratégias para garantir que sejam produzidas apenas as quantidades necessárias de cada molécula. Afinal de contas, seria um desperdício de “energia” para uma célula ficar produzindo quantidades enormes de aminoácidos sem necessidade, por exemplo.

Essas regulações de quanto e quando produzir um produto metabólico são muito importantes para o funcionamento de um organismo vivo; no entanto, são um problema para  Engenharia Metabólica. É necessário identificar quais são as regulações que estão ocorrendo na via metabólica e removê-las para que sejam atingidos níveis altos de produção.

6 – Otimização da disponibilidade de precursor e cofatores

Imagine como funciona uma padaria: para conseguir produzir muitos pães, deve haver sempre muita farinha em estoque, já que este é o ingrediente principal da receita. Se faltar farinha, não tem pão. 

A lógica aqui é a mesma. Se a minha rota metabólica precisa de piruvato (um intermediário comum do metabolismo), eu preciso garantir que ele esteja sempre disponível dentro da célula. Isso pode ser feito de diversas maneiras, mas uma estratégia comum é “deletar” (jargão de laboratório que significa remover um gene/enzima) ou diminuir a expressão de outras enzimas que utilizam piruvato como substrato.

Um cofator, por sua vez, é definido como qualquer composto químico essencial para a atividade de uma enzima. Os principais exemplos são moléculas como NADH, NADPH, ATP e coenzima A. Não basta reconstruir a via metabólica no microrganismo hospedeiro se os cofatores necessários não estarão disponíveis. É como tentar assar o pão sem energia elétrica – o forno não vai funcionar.

Sem a presença de coenzima e/ou cofator, a enzima não é funcional – não há “encaixe” do substrato no sítio ativo da enzima. Ou seja: cofatores e coenzimas são essenciais para atividade da enzima. Adaptado de Difference Between

7 – Modificação da rota metabólica para aumento de rendimento

A esta altura do projeto, já temos uma linhagem que apresenta um bom rendimento de produção e começamos a realizar fermentações em biorreatores de bancada, em volumes de (normalmente) 1 a 10 litros . Até então, estávamos analisando a eficiência das novas linhagens em cultivo em frascos erlenmeyer em shaker (como na foto abaixo), o qual  é um processo rápido e prático, porém onde temos pouco controle e informação sobre o que está acontecendo. Em um biorreator de bancada, conseguimos monitorar e corrigir o pH do meio, a taxa de oxigenação e outro parâmetros importantes. É como se fosse reproduzido um processo industrial em pequena escala.

Diferentes sistemas fermentativos para testes de novas linhagens geradas em projetos de Engenharia Metabólica. Fonte: Imagem adaptada de Jeff Miller e Institut Pasteur.

Ao mudar o sistema de análise, é bem provável que o comportamento do microrganismo também se modifique e sejam evidenciados novos gargalos no metabolismo. Por isso, após esse processo, pode haver a demanda de se realizar novas modificações genéticas.

8 – Modificação do meio de cultivo para aumento de rendimento

Da mesma forma que no item anterior, é possível que ao mudar a escala do processo, a linhagem não se adapte tão bem ao meio de cultivo e seja necessário realizar modificações no meio. Outro fator importante é tentar reduzir os custos com a formulação do meio: diminuir a concentração de insumos, trocar a fonte de carbono e/ou outros nutrientes por compostos mais baratos ou até mesmo por resíduos agroindustriais. 

9 – Análise sistêmica para otimizar o rendimento

Essa estratégia faz parte de uma das últimas rodadas de engenharia necessárias para a construção de um microrganismo para uso industrial. É o momento no qual se busca entender se ainda há algum gargalo metabólico que pode ser corrigido para atingir rendimentos ainda maiores. Análises de “ômicas” (transcriptômica, proteômica e metabolômica) que permitam entender o que está acontecendo dentro da célula ou simulações metabólicas in silico (computador) são muito utilizada

10 – Scale-up e otimização de bioprocessos

Se o seu o projeto de Engenharia Metabólica chegou nessa etapa, parabéns! Mas isso ainda não significa que está pronto: a linhagem precisa ser validada em fermentações em escala de planta piloto e/ou planta demo, com volumes maiores que 10 litros. É possível que, a cada  etapa do escalonamento do bioprocesso, novos desafios surjam, tais como: aeração insuficiente, aquecimento desigual ao longo do biorreator, aumento da viscosidade do meio devido a alta concentração do bioproduto, etc.

Outro grande desafio é a etapa de purificação (também chamada de “downstream”), que vem depois da fermentação. Ao terminar a fermentação, temos um caldo fermentativo contendo o nosso bioproduto, porém repleto de diversos outros compostos, inclusive células. A engenharia entra em ação aqui e tem bastante trabalho para executar até chegar no bioprocessos ideal!

Todas as etapas de um projeto de Engenharia Metabólica demandam muita dedicação e aplicação de tecnologias de ponta, seja na ideação até na execução, validação e otimização. Embora seja trabalhosa, essa tecnologia nos permite cruzar fronteiras entre o entendimento dos seres vivos e o uso deles para a construção de um mundo mais sustentável. Certamente veremos novos bioprodutos nos próximos anos. Que tal você desenvolver um deles?

Texto revisado por Ísis Biembenguti e Bruna Lopes

Referências:
Bailey, J.E. Toward a science of metabolic engineering. Science 252, 1668–1675. (1991).

Choi, K. R., et al. Systems Metabolic Engineering Strategies: Integrating Systems and Synthetic Biology with Metabolic Engineering. Trends in Biotechnology v. 37- 8, p.817-837 (2019).

Horinouchi T, et al.Transcriptome analysis of parallel-evolved Escherichia coli strains under ethanol stress. BMC Genomics, 19;11:579 (2010).

Lee, S., Kim, H. Systems strategies for developing industrial microbial strains. Nat Biotechnol 33, 1061–1072 (2015).

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