Corpos femininos em segundo plano: os impactos da não inclusão de fêmeas em pesquisas científicas

Sabia que a Ciência tem ignorado muitas diferenças entre o corpo feminino e masculino e que isso pode trazer consequências às mulheres? Vem descobrir!

Você já deve ter ouvido falar que a maioria dos estudos pré-clínicos são realizados em camundongos, porque eles possuem muitas semelhanças genéticas, anatômicas, fisiológicas e biológicas com nós, seres humanos. Mas o que talvez você não saiba, é que a maioria desses estudos são realizados apenas com camundongos machos.

E, quando passamos para os estudos clínicos (em seres humanos), muitas mulheres até são incluídas, mas dificilmente os dados do estudo são diferenciados entre homens e mulheres pelos pesquisadores. Que implicações isso pode causar? Descrevemos 4 situações em que as diferenças encontradas entre homens e mulheres podem enviesar trabalhos científicos (e também sua translação para a aplicação na clínica médica) quando apenas um dos sexos é estudado.

1 – Escolha da dose de medicamento

Um artigo de revisão feito por pesquisadores da Universidade da Califórnia (Estados Unidos) avaliou mais de 5 mil artigos de estudo de farmacocinética e farmacodinâmica para 86 medicamentos. O que eles perceberam foi que na maioria dos artigos não há diferenciação entre os sexos biológicos para estudo.

Mas aqueles que tinham o cuidado de fazer o agrupamento dos resultados por sexo perceberam que em 88% dos casos as mulheres tinham concentrações maiores do medicamento na circulação do que os homens e que isso está fortemente associado a maior incidência de efeitos colaterais em mulheres.

Esse efeito costuma acontecer porque são prescritas as mesmas doses para homens e mulheres, pois era esperado que os metabolismos fossem equivalentes. No entanto, com este estudo fica claro que essa pré-suposição não está correta e precisa ser avaliada. 

Uma hipótese levantada pelo artigo é de que as concentrações elevadas de medicamento encontradas no sangue estariam relacionadas ao peso corporal, que em geral é menor em mulheres. Isso acontece principalmente em comprimidos, onde a dose é padrão e dificilmente é ajustada de acordo com o peso do paciente. Mas as razões não são resumidas apenas a esse fato. Outras variáveis elencadas pelo artigo estão relacionadas, por exemplo, as mulheres possuem: 

  • Expressão diferenciada de enzimas do metabolismo em relação aos homens;
  • Menor taxa de filtração renal;
  • Tempo de esvaziamento gástrico mais lento;
  • Menor pH gástrico;
  • Menor volume de plasma sanguíneo;
  • Menor fluxo sanguíneo para os órgãos;
  • Menor índice de água corporal.

Essas diferenças são tão expressivas que podem modificar completamente o comportamento de um medicamento no corpo feminino em relação ao corpo masculino. Por exemplo, a lepirudina, um medicamento anticoagulante, é detectável na circulação de mulheres até 48 horas após a ingestão, enquanto que em homens ela desaparece em apenas 2 horas!

2 – Tratamento da dor

A dor também pode ser diferente em homens e em mulheres. Já era de consenso na comunidade científica que a dor crônica está associada às células micróglias, células de defesa pequenas e ramificadas que residem no sistema nervoso. 

No entanto, pesquisadores da McGill University no Canadá perceberam em sua pesquisa com camundongos machos e fêmeas que o mecanismo que desencadeia a dor nas fêmeas é diferente. Nas camundongos fêmeas, a dor era comandada por outra célula do sistema imune, as células T.

Além disso, em pesquisas para o tratamento da dor, parece ser necessárias doses mais altas de medicamentos em mulheres para causar o mesmo efeito que em homens. Os pesquisadores estudaram o potencial da metformina (um medicamento usualmente utilizado em pacientes com diabetes) para o tratamento da dor. E há indícios de que ela precisa de doses mais altas em mulheres porque para entrar no sistema nervoso e causar o efeito desejado, a metformina precisa de uma proteína que é expressa em maior quantidade em homens do que em mulheres.

Diferentes caminhos que desencadeiam a dor em machos e fêmeas. Os camundongos machos castrados, com níveis baixos de testosterona mudam para uma resposta à dor observada nas fêmeas. Fêmeas que não têm células T, ou que são prenhes, mudam para o caminho observado nos machos. #PraCegoVer: Na imagem vemos dois neurônios periféricos cinza escuro, um representando o caminho para dor em machos e outro em fêmeas. O neurônio masculinho termina na junção com o cordão espinhal, representado por um cilindro cinza claro, dentro do cordão espinhal masculinho há uma célula ramificada chamada micróglia e logo abaixo um seta vermelha que aponta para a palavra “dor”, que será percebida pelo cérebro masculino. O neurônio feminino termina em outro cilindro cinza claro, que representa o cordão espinhal feminino. Dentro do cordão há uma célula arredondada cinza escuro, a célula T, logo abaixo há uma seta azul apontando para a palavra “dor”, que será percebida pelo cérebro feminino. Fonte: DANCE, A., 2019.

3 – Tratamento de Depressão

As mulheres são as que mais sofrem com problemas como depressão, ansiedade e transtorno pós-traumático. No entanto, quase que 100% dos estudos de antidepressivos são testados apenas em camundongos machos e nos estudos clínicos (com humanos) são realizados, em sua maioria, em mulheres

Essa conduta faz com que muitos dos potenciais medicamentos não passem nos estudos  clínicos, possivelmente não porque eles não funcionem, mas porque não funcionem tão bem em mulheres. O que acaba por invalidar as pesquisas pré-clínicas, pois faz com que se perca tempo e dinheiro em etapas de teste que não contemplam o principal público-alvo do medicamento.

Uma das razões dos medicamentos não causarem os mesmos efeitos em mulheres está no eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA), um conjunto de interações que envolve esses três órgãos, e que regula a resposta do organismo ao estresse. 

Em geral, os medicamentos antidepressivos tendem a interagir com o HPA a fim de diminuir os níveis de cortisol do sangue. No entanto, como os testes pré-clínicos usam apenas camundongos machos, os medicamentos que passam nestes testes são aqueles que interagem bem com o HPA de machos.

Quando esses medicamentos chegam na fase clínica e são testados em mulheres, eles não induzem a mesma desregulação no eixo HPA que é observada em camundongos machos. Ainda não se sabe muito bem a razão, mas os níveis de cortisol em mulheres com depressão costumam ser maiores que em homens, e a interação dos medicamentos com o eixo HPA de mulheres não diminui significativamente esses níveis. 

O que se sabe é que as diferenças sexuais no eixo HPA estão relacionadas aos hormônios gonadais. Os neurônios do eixo HPA expressam dois tipos de receptores, os receptores de estrogênio (ER) alfa e beta. O estrogênio (hormônio feminino) interage com ambos os receptores, enquanto que a testosterona (hormônio masculino) interage apenas com o receptor ERbeta. Dessa maneira a regulação da função do eixo HPA se comporta diferentemente entre os sexos.

4 – Expressão gênica

Interessados em estudar se havia diferenças na expressão gênica nos mais diversos tecidos do corpo humano, pesquisadores fizeram um consórcio chamado GTEx (do inglês Genotype-Tissue Expression). Eles começaram suas pesquisas em 2010, e como já esperavam, encontraram diferenças significativas na expressão entre os tecidos. Mas no meio do caminho perceberam que além disso, era possível perceber diferenças na expressão gênica do mesmo tecido entre homens e mulheres.

Eles notaram diferenças na expressão de mais de 13 mil genes entre homens e mulheres. E apesar dessas diferenças serem pequenas, quando juntamos todas elas é possível que causem um grande impacto no metabolismo global de cada sexo. O interessante é que a maioria desses genes diferenciados não eram de cromossomos sexuais (X e Y), mas dos cromossomos autossômicos e estavam relacionados à resposta a drogas e hormônios,  função imunológica,  metabolismo de gordura,  câncer ou  marcação epigenética.

Resumo das diferenças na expressão gênica de homens e mulheres. #PraCegoVer: A silhueta de um homem e de uma mulher em cinza, com destaque para os órgãos internos desenhados em seu interior, aparece a tireóide (em verde escuro), o pulmão (em verde claro), coração (em roxo), fígado (em verde claro), estômago (em bege) e intestino (em laranja). Ao lado do homem há uma caixa de texto escrito: Homens e mulheres possuem profundas diferenças na regulação da expressão gênica. Ao lado da mulher há outra caixa escrito: Essas diferenças estão relacionadas a respostas a: Drogas e hormônios, função imunológica, metabolismo de gordura, câncer e marcação epigenética. Fonte: Adaptado de OLIVA, et al., 2020.

Por que não estudar camundongos fêmeas?

Por que as fêmeas são excluídas das pesquisas pré-clínicas e até mesmo de pesquisas de ciência básica? A principal razão é que se pensava que a flutuação do hormônio estrogênio nas fêmeas poderia causar alterações “irreais” nos resultados dos experimentos.

Alguns pesquisadores da University of Ottawa no Canadá que estudavam os efeitos de uma molécula (mGluR5) na reversão dos sintomas do Alzheimer em camundongos descobriu que a mGluR5 não causava efeito nenhum nas fêmeas. Ele tentou publicar o seu artigo com esse achado, mas foi duramente criticado, e aqueles que rejeitaram seu trabalho disseram que aquilo não passava do efeito da flutuação hormonal das fêmeas.

No entanto, ele estava determinado a provar que não era apenas uma questão hormonal. Para isso ele fez vários testes. Testou a mGluR5 em fêmeas sem ovários e castradas, testou em fêmeas tratadas com antagonistas de estrogênio por 3 semanas e em neurônios em cultura de placa, sem a presença de estrogênio ou testosterona.

Em todos os testes a mGluR5 se ligou fortemente aos neurônios de camundongos machos e não se ligou aos neurônios das fêmeas. Essa descoberta tem grande importância, pois o tipo de receptor ao qual se liga o mGluR5 é o mesmo para a maioria dos medicamentos prescritos e se eles se comportam de maneiras diferentes em machos e fêmeas, talvez seja necessário que todos eles sejam estudados novamente.

Além desses testes, a hipótese da flutuação hormonal não faz muito sentido, porque mesmo os camundongos machos não compartilham a mesma quantidade de testosterona, invalidando a justificativa de não utilizar fêmeas nas pesquisas pré-clínicas.

Por exemplo, camundongos são animais gregários (ou seja, que vivem em bando) e se organizam em hierarquias, sendo que os camundongos maiores e mais agressivos são camundongos alfa, e os menores, os camundongos beta. Essa diferença na hierarquia e no comportamento altera significativamente os níveis de testosterona entre cada um dos camundongos.

Todas essas evidências demonstram que as diferenças entre o corpo masculino e feminino vão muito além das características sexuais ou dos níveis hormonais. E estamos descobrindo apenas agora o quão profundas elas podem ser.

Essas descobertas nos mostram que é crucial que ambos os sexos sejam tratados com o mesmo interesse nas pesquisas científicas, e que não podemos estudar apenas o corpo masculino supondo que o feminino se comporta da mesma maneira. Essa decisão irá impactar diretamente na melhora do aproveitamento dos recursos financeiros direcionados à Ciência e elevar o patamar do planejamento da pesquisa na área da saúde. Além disso, melhoraria o resultado das pesquisas e a qualidade de vida dos pacientes, em especial as mulheres.

Texto revisador por Priscila Esteves e Natália Videira

Referências:
ABD-EL RAHMAN, K. S. el al. Aβ oligomers induce pathophysiological mGluR5 signaling in Alzheimer’s disease model mice in a sex-selective manner. Science Signaling. v. 13, n. 662, 2020. Disponível em: https://stke.sciencemag.org/content/13/662/eabd2494. Acesso em: 02/03/2021.
DANCE, A. Why the sexes don’t feel pain the same way. Nature. v. 567. 2019. pp. 448-450. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-019-00895-3#ref-CR1. Acesso em: 02/03/2020.
HANDA, R. J, WEISER, M. J. Gonadal steroid hormones and the hypothalamo–pituitary–adrenal axis. Frontiers in Neuroendocrinology. v. 35, n. 2, 2014, pp. 197-220. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.yfrne.2013.11.001. Acesso em: 03/03/2021.
KOKRAS, N. et al. Sex differences in the hypothalamic–pituitary–adrenal axis: An obstacle to antidepressant drug development?. British Journal of Pharmacology. v. 175, n. 21, 2019. Disponível em: https://bpspubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/bph.14710. Acesso em: 02/03/2021.
OLIVA, M. et al. The impact of sex on gene expression across human tissues. Science. v. 369, n. 6509, 2020. Disponível em: https://science.sciencemag.org/content/369/6509/eaba3066. Acesso em: 02/03/2021.
SEYDEL, C. The missing sex. Nat Biotechnol. 2021. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41587-021-00844-4. Acesso em: 02/03/2021
SORGE, R. E. Spinal Cord Toll-Like Receptor 4 Mediates Inflammatory and Neuropathic Hypersensitivity in Male But Not Female Mice. JNeurosci. Disponível em: https://www.jneurosci.org/content/31/43/15450/tab-article-info. Acesso em: 04/03/2021.

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