A tecnologia CRISPR é um sofisticado método de edição genética baseado em um sistema de imunidade bacteriano contra infecções virais, que vem sendo estudado e aprimorado desde 2011. Atualmente, cientistas do mundo inteiro utilizam a técnica para edição de genes para as mais diversas aplicações. Na área de saúde humana, a CRISPR apresenta um grande potencial para revolucionar a maneira como lidamos com doenças genéticas desafiadoras para a medicina.
Edição genética: onde tudo começou
A edição de sequências de DNA, ou edição genética, já é uma realidade na ciência há mais de 40 anos. No começo dos anos 80, pesquisadores inseriram no genoma da bactéria Escherichia coli genes humanos responsáveis pela produção da insulina. Esse feito revolucionou o tratamento para diabetes, uma vez que permitiu produzir o hormônio de forma eficiente e em larga escala. Era criado, então, o primeiro organismo geneticamente modificado (OGM).
Desde então, a cada ano, novos resultados promissores são gerados nesse campo da biotecnologia. Contudo, em 2011 as cientistas Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna transformaram a maneira como lidamos com o DNA, criando a mais sofisticada tecnologia para edição de genes até hoje, o método Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats (CRISPR), ou em português Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Interespaçadas.
Quando estudava a bactéria Streptococcus pyogenes, Charpentier descobriu uma nova molécula, a trans-activating crispr RNA (tracrRNA), que funciona como uma ferramenta do sistema imune de várias bactérias contra a ação de vírus. Em sua pesquisa, Doudna já havia elucidado boa parte do mecanismo CRISPR, inclusive o funcionamento da enzima Cas9 (em inglês, proteína 9 associada a CRISPR), uma endonuclease de restrição. Esse sistema natural bacteriano opera conforme o esquematizado na imagem a seguir:
Unindo os resultados obtidos com as pesquisas de Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, foi possível desenvolver um novo método de edição de genes, que não apenas permite “cortar” o DNA de um organismo, mas ainda escolher com precisão o trecho em que se deseja fazer isso. Diante de seus esforços para o desenvolvimento dessa técnica, em 2020, essas cientistas receberam o Nobel de Química, sendo o primeiro grupo composto somente por mulheres a ser laureado com o prêmio.
A utilização da técnica CRISPR
Com o passar do tempo, o sistema CRISPR vem evoluindo, de modo que, atualmente, temos não somente a enzima Cas9 atuando como peça chave na edição de genomas, como também a Cas12 e a Cas13, enzima que atua em RNA. A técnica já é usada por cientistas de todo mundo em diversas áreas da pesquisa.
Para colocar esses conhecimentos na prática, é necessário determinar, primeiramente, o gene responsável por uma característica específica que se deseja alterar, por exemplo um gene defeituoso responsável por uma doença. Uma molécula de RNA é então construída a partir da transcrição dessa sequência genética. Ela será a sequência guia para a maquinaria de edição gênica. Posteriormente, a tracrRNA e a enzima de restrição Cas9, são introduzidas nas células que se deseja editar. Com a sequência guia de RNA, a tracrRNA localiza e se liga à sequência de DNA alvo. A enzima Cas9 é acionada para atuar como a tesoura molecular, que corta as duas fitas do DNA no local desejado dentro do genoma. Em seguida, pode ser realizada a deleção do gene defeituoso e/ou a inserção de um gene saudável, permitindo introduzir uma nova característica em um organismo.
Aplicações na área de saúde humana
A descoberta do método CRISPR representa um grande marco na história da biotecnologia e traz consigo a esperança de revolucionar a medicina atual. Desde o princípio da criação das técnicas para edição de genomas, buscou-se formas de se aplicar esses princípios para curar ou tratar doenças humanas de origem genética. Nesse sentido, pesquisadores vêm desenvolvendo trabalhos que visam a criação de estratégias para o tratamento dessas doenças utilizando a técnica.
O sistema CRISPR/Cas9 oferece, por exemplo, perspectivas de edição genômica para tratamento de doenças cardiovasculares, auxiliando na supressão de fatores genéticos relacionados à incidência dessas doenças, e ainda tratando alvos que não podem ser farmacologicamente manipulados. Alguns tipos de câncer e até mesmo a cegueira também demonstram resultados promissores com a técnica.
Recentemente, a CRISPR/Cas9 tem sido testada como uma alternativa para o tratamento de doenças hematológicas como a talassemia, que é um distúrbio sanguíneo hereditário caracterizado pela redução das proteínas que carregam oxigênio no sangue (hemoglobina) e pela quantidade anormal de glóbulos vermelhos no corpo. O trabalho consistiu em ativar a geração de hemoglobina fetal, produzida ainda no útero e que resulta em hemácias saudáveis por meio da edição gênica de células tronco do paciente utilizando a CRISPR/Cas9, gerando alguns resultados promissores para a área da medicina. No futuro, a expectativa é que tenhamos ampla aplicação no tratamento dessas e outras doenças genéticas.
Utilização da técnica no combate à pandemia
O método CRISPR também está demonstrando grande potencial no combate à pandemia do novo coronavírus. A empresa americana Sherlock Biosciences, por exemplo, desenvolveu um teste de Covid-19 baseado na técnica, que permitiu gerar um diagnóstico mais eficiente da doença, antes mesmo dos sintomas se manifestarem. Já aqui no Brasil, pesquisadores das faculdades de Medicina (FMRP) e de Odontologia (FORP) da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, estão desenvolvendo uma estratégia para combater a infecção viral, desestabilizando a interação entre o vírus e as células, por meio da edição de uma porção específica do gene codificador da proteína ACE2, porém sem interferir em sua atividade biológica.
CRISPR e COVID-19. Com base no sistema CRISPR/Cas9, pesquisadores editam uma porção do gene ACE2 que interage com a proteína spike, presente no coronavírus, responsável pela entrada do vírus nas células humanas.#Paracegover: modelo do coronavírus SARS-CoV-2: são várias esferas vermelhas e alaranjadas representando os vírus envoltos pelas proteínas Spike, que estão representadas na imagem como antenas de ponta verde que saem da esfera do vírus. Fonte: Pixabay
Esses exemplos deixam claro que a técnica CRISPR possui um elevado potencial para revolucionar os conceitos e métodos usados atualmente na área da medicina. Embora muitos aspectos fisiológicos, químicos, e até mesmo éticos, ainda necessitem ser analisados, este é mais um dos exemplos de como a biotecnologia pode ser uma aliada para melhorar as condições de saúde pública. E frente a esses esforços coletivos da comunidade científica, talvez, no futuro, tenhamos um novo método seguro e eficaz para tratamento das doenças que hoje desafiam a sociedade.
Cite este artigo:
NASCIMENTO, L.X. CRISPR/Cas9: Como funciona e como pode revolucionar a medicina moderna?. Revista Blog do Profissão Biotec, v.8, 2021. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/crispr-funcionamento-pode-revolucionar-medicina/ > Acesssado em: dd/mm/aaaa