Sabia que um órgão sem células pode ser muito útil? Já ouviu falar da matriz extracelular? Confira neste texto, você vai se surpreender com o uso da descelurização de órgãos para resolver entraves no transplante de órgãos!
Nos últimos anos, muito se tem falado de medicina regenerativa (MR) e uma de suas abordagens para a regeneração de órgãos e tecidos é a descelularização de tecidos (Hey, não se assuste com esse nome!). Mas qual o seu significado? Por que ela é importante? Quais são suas abordagens? Quais seu benefícios? Neste texto, abordaremos uma das estratégias desenvolvidas pela biotecnologia e que no futuro (porque não se utiliza na prática clínica, está apenas em fase de pesquisa) poderão ser aplicadas na MR: a descelurização de órgãos e tecidos.
O cenário atual:
Envelhecimento da população. As estimativas do IBGE indicam que, até 2030, o Brasil possuirá 40,3 milhões de idosos (indivíduos com mais de 60 anos). Este cenário é uma moeda de duas faces. A boa é que as pessoas vivem mais; a má é que, nesse processo, seus órgãos e as funções destes vão se deteriorando/falhando. E isto gera uma necessidade – transplante de órgãos; paralelamente a isso, um problema mundial: As filas de espera.
Agora você deve estar se perguntando se o ser humano não possui um mecanismo de reparo. Sim, ele tem. E como o corpo humano lida com danos ou falhas teciduais? Quando estas são pequenas, possui grande capacidade de reparo. Porém, se o dano for grande ou severo, ou se a idade for avançada, o sistema de reparo não consegue consertar as falhas ou perdas.
Analisando dados do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT) referentes aos primeiros meses do ano de 2019, o quadro não é animador. Houve uma queda de 1.2% na taxa de doadores efetivos (aqueles cujo órgão é retirado para transplante) ao mesmo tempo em que não se verificam crescimentos nas taxas de transplantes renais e pancreáticos, observando-se diminuição nas taxas de transplante hepático (queda de 6.7%) e pulmonar (queda de 16.7%). Segundo a mesma fonte, em 2017 a necessidade de transplantes superou a quantidade de transplantes realizados para todos os órgãos considerados no estudo, corroborando a expansão da lacuna entre doadores e pacientes necessitados de transplante.
Nesse quadro inquietante, a medicina regenerativa (MR) tem surgido como alternativa para amenizar o problema, permitindo a possibilidade de “implantar” órgãos, e assim, reduzir o problema das filas e da rejeição dos órgãos transplantados (já que a fonte do material base poderia ser de outros animais, como porco). Os fatores centrais neste ecossistema da chamada “engenharia de tecidos” são: as células, as moléculas sinalizadoras (que geram o ambiente necessário para a especialização das células) e a organização estrutural – o arcabouço do tecido.
Definida como o “processo de reparar ou substituir células, tecidos ou órgãos a fim de restaurar suas funções normais”, uma das estratégias da MR utiliza a técnica de descelularização, a fim de aproveitar o arcabouço de um órgão de um doador para posterior recelularização com células saudáveis.
Descelularização?! Arcabouço?!
Descelularização consiste em uma técnica que envolve a remoção das células de um tecido ou órgão, deixando apenas a estrutura que as envolve. Esta estrutura é a matriz extracelular.
Para compreender a importância dessa técnica, devemos primeiro relembrar que um órgão é composto de um conjunto de tecidos, cada um com uma característica diferente que, quando somadas, permitem o correto funcionamento do órgão. A anatomia do tecido, por sua vez, consiste na associação das células com estruturas extracelulares. E estas estruturas levam o nome de matriz extracelular, a peça fundamental para a aplicação translacional da descelurização de órgãos e tecidos.
Mas o que é a Matriz Extracelular (MEC)?
Como o nome já indica, trata-se de um espaço externo às células, é o microambiente em 3D no qual as células residem. Ele consiste em uma rede de inúmeros elementos e, em sua maioria, macromoléculas muito conhecidas no campo de cosméticos (como colágenos, fibronectina e lamininas) e outras glicoproteínas (carboidratos associados a proteínas) que ajudam na manutenção da estrutura tecidual, assim como seu remodelamento, já que consistem em estruturas fibrosas.
Além de prover arcabouço às células, esta matriz contém substâncias que orquestram o comportamento das células, influenciando em seu tamanho, sua proliferação, sua especialização celular, sua migração e até mesmo sua morte. É heterogênea e a sua composição varia entre os tecidos.
Sabe-se que um dos problemas do transplante de órgãos é sua rejeição. Isso ocorre quando o sistema imune o reconhece como estranho, iniciando a produção de anticorpos para combatê-lo. Entretanto, essa reação é causada pela presença de moléculas na superfície das células do órgão transplantado. Nesse contexto, a MEC se destaca, pois de acordo com estudos realizados, ela não gera resposta imune no indivíduo.
Como ocorre a descelularização de órgãos ou tecidos?
Foram desenvolvidos diversos métodos para a retirada seletiva de células de órgãos ou tecidos de doadores, sem afetar o “esqueleto” extracelular. Através do método químico e enzimático, podem ser utilizados: (i) agentes surfactantes, os quais diminuem as forças que mantêm as moléculas da membrana plasmática celular juntas, permitindo seu rompimento; (ii) Ácidos e Bases; (iii) Enzimas. O método físico, por sua vez, utiliza: (i) pressões altas que promovem o rompimento da célula, ou (ii) Ciclos de congelamento e descongelamento do material.
Para visualizar todos os métodos com mais detalhes, veja no esquema abaixo:
Já que a rejeição é um dos maiores desafios dos transplantados, um dos objetivos da descelularização é eliminar qualquer elemento que provoque uma resposta imune dentro de outro organismo. A capacidade de causar uma resposta imune é chamada de imunogenicidade e esta deve ser reduzida ao máximo nível. Porém, quem são os elementos que provocam resposta imune? Principalmente o material genético (DNA e RNA) e elementos da superfície celular.
Se o material for imunogênico, sua presença no organismo transplantado tenderá a provocar falhas funcionais e necessidade de remoção imediata. No entanto, para diminuir as chances disso ocorrer, o material deve ser re-celularizado com células do próprio paciente (denominadas de células autólogas), e então introduzi-lo nele.
Recelularização?
Para a produção de um tecido ou órgão funcional, o arcabouço gerado a partir da descelularização deve ser repopulado com células. Quaisquer células? Não. Devem ser as células do próprio paciente que irá receber o material. Além disso, a complexidade do material de interesse influencia nos métodos de reconstrução e nos tipos celulares necessários para a recelularização – caso se trate de um tecido apenas, é necessário um tipo celular específico, porém, se o material corresponder a um órgão completo, mais tipos celulares serão necessários.
Porém, não podemos pensar que este é um processo rápido! O processo de repopulação de um arcabouço com células primárias (células extraídas do paciente) é demorado.
Além desta estratégia, existem outras formas de se obter órgãos para transplante. Pesquisadores estão trabalhando na possibilidade de se criar um arcabouço através de impressão 3D. E ainda, orgãos porcinos transgênicos estão sendo desenvolvidos, a fim de evitar rejeição em humanos (notificação da agência FAPESP; Link de texto do Profissão Biotec sobre o assunto; Vídeo explicativo do youtube sobre o assunto).
O futuro da Medicina Regenerativa
A importância do uso da descelurização de órgãos é a preservação de uma arquitetura desenhada pela natureza, original, que, portanto, carrega a própria natureza do órgão ou tecido. Isso permite a distribuição espacial e o crescimento correto da população celular posteriormente reintroduzida.
O desafio é alcançar arcabouços com o máximo nível de purificação, de forma que não gerem respostas imunes, e que mantenham ao máximo a composição original e seus aspectos mecânicos. Além disso, é importante que se obtenha um órgão ou tecido fiel ao conhecido, após a recelularização do mesmo. Por enquanto, essa ainda não é uma prática na clínica, as pesquisas estão sendo realizadas e os avanços nas técnicas estão ocorrendo.
Embora a maioria dos estudos até então sejam realizados a nível in vitro e, quando in vivo, em animais apenas, o futuro da descelurização de órgãos como estratégia para ser aplicada nos processos de transplante é animador! Com essa técnica, as filas de transplante não mais serão um problema e a taxa de rejeição dos órgãos diminuirá!
Referências:
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