Em geral, a modificação genética de cultivos vegetais costuma ser realizada para que esses cultivos possuam vantagens frente a estresses causados por pragas, ambientes, herbicidas, doenças ou para enriquecimento nutricional. Por meio de técnicas de engenharia genética, a biotecnologia vem permitindo o enriquecimento nutricional de alimentos, o que pode impactar positivamente na saúde e bem-estar da população. A seguir, veremos como a vitamina A é um micronutriente de suma importância ao nosso organismo e como a engenharia genética permite auxiliar no combate a deficiência desse composto.
Histórico da Deficiência de Vitamina A
A vitamina A é importante em diferentes processos no desenvolvimento de um organismo como o crescimento, reprodução, imunidade, diferenciação celular – isto é, quando uma célula se especializa em determinada função – e na visão. Esta última função geralmente é a mais conhecida, pois a deficiência de vitamina A implica diretamente em sintomas de cegueira noturna e xeroftalmia (popularmente conhecida como olhos secos).
Diferentes doenças estão associadas a deficiência ou ausência de vitaminas no organismo, e essas doenças são chamadas de avitaminoses. As vitaminas, em geral, não são sintetizadas pelo organismo e devem ser obtidas através da alimentação pois são moléculas indispensáveis para a manutenção da vida. Dessa forma, as avitaminoses se manifestam quando há uma alimentação incompleta ou são decorrentes de outros problemas de saúde como a síndrome de má absorção.
A cegueira noturna é uma doença observada em humanos desde a antiguidade. Os egípcios foram capazes de realizar o diagnóstico, propor tratamentos e curar a doença – mesmo sem ter conhecimento sobre o que eram vitaminas. Um dos tratamentos realizados na época era a aplicação de fígado de boi assado nos olhos, como uma forma de compressa. Hoje sabemos que o fígado é rico em vitamina A e que os egípcios possuíam um método de tratamento relativamente eficaz, mas pouco refinado. Apesar de parecer estranho, um dos tratamentos utilizados atualmente consiste na aplicação de pomadas contendo acetato de retinol (uma variação da vitamina A).
A ingestão de nutrientes e as conversões realizadas pelo nosso metabolismo permitem que o fluxo sanguíneo distribua esses compostos para seus locais de atuação, ou armazenamento. Com isso, a vitamina A/retinol é capaz de chegar aos nossos olhos e cumprir seu papel. Mesmo que os tratamentos empíricos e eficazes tenham sido elaborados para algumas dessas avitaminoses, somente no início do século passado viemos a conhecer o que de fato seriam as vitaminas, além de relacionar essas moléculas com suas patologias.
Durante a primeira guerra mundial (1914 – 1918), muitas crianças mal nutridas foram diagnosticadas com diferentes patologias, incluindo xeroftalmia e cegueira noturna. Isso levou ao desenvolvimento de estudos sobre os componentes nutricionais presentes na alimentação, onde crianças que recebiam alimentos como manteiga, leite ou óleo de fígado tinham alívio ou prevenção dos sintomas. Os pesquisadores concluíram que nesses alimentos havia uma substância “solúvel em gorduras” essencial a manutenção da visão e do sistema imunológico. Atualmente conhecemos essa substância solúvel em gorduras como vitamina A, uma vitamina classificada como “lipofílica”.
Somente em torno de 1930 a relação entre visão e vitamina A foi comprovada, o isolamento do Betacaroteno (precursor da vitamina A) de cenouras e os estudos envolvendo essa molécula levaram a premiação do Nobel de química em 1937. Hoje, cerca de 80 anos depois desse feito, utilizamos vitamina A na composição de medicamentos não só para a visão, mas também para o tratamento de acne, câncer e outras doenças.
Atualmente, cerca de 250 milhões de crianças na fase escolar sofrem com deficiência de vitamina A na alimentação. A síntese e distribuição desse micronutriente em países em desenvolvimento se mostrou uma estratégia eficaz para reduzir os danos causados pela deficiência alimentar. Porém, os altos custos com a distribuição levaram ao desenvolvimento de uma estratégia mais viável.
Engenharia genética como solução
O melhoramento convencional de plantios tem como pré-requisito o cruzamento de espécies vegetais com as características desejadas para que as mesmas sejam passadas para a geração seguinte. Para que isso ocorra, uma compatibilidade entre essas espécies é necessária, de forma que o cruzamento entre elas seja possível. Com o uso de técnicas de engenharia genética, essa necessidade torna-se dispensável já que é possível realizar a inserção de genes de um organismo em outro sem que haja “proximidade” entre as espécies. Por exemplo, os genes de uma bactéria podem ser inseridos em uma planta, ou vice-versa, de acordo com o interesse biotecnológico.
Utilizando a engenharia genética, é possível desenvolver plantios que não possuam algumas características indesejadas, enquanto que os traços vantajosos podem ser melhorados ou inseridos sem a necessidade de realizar cruzamentos. É possível modificar, silenciar (inativar) ou inserir novos genes em um organismo com o que chamamos de “Tecnologia do DNA Recombinante” para a produção de produtos transgênicos.
Enriquecimento nutricional e o “Arroz Dourado”
No final dos anos 90, em parceria com a empresa Syngenta, os pesquisadores Ingo Potrykus e Peter Breyer desenvolveram o Golden Rice – ou Arroz Dourado, em português -, um tipo de arroz geneticamente modificado para a produção de Betacaroteno. Em muitos países, o arroz é considerado um alimento básico na dieta, o que contribui estrategicamente para a escolha deste grão. Com apenas uma porção deste arroz (em torno de 72 g), o consumo de Betacaroteno é cerca de 50-60% da dose diária recomendada, o que pode minimizar os danos causados pela deficiência nutricional.
A biossíntese de uma molécula ocorre em diferentes etapas dentro da célula, geralmente iniciando de moléculas relativamente simples que vão sofrendo modificações e aumentando sua complexidade até chegar na molécula final. As moléculas mais simples que dão origem a outras são chamadas de precursoras em um contexto metabólico. Quando pensamos em células como fábricas de moléculas, os funcionários responsáveis por converter uma molécula em outra costumam ser as enzimas.
No geral, a produção de Betacaroteno em uma célula pode ter origem em um precursor chamado difosfato de geranilgeranil (GGPP). E após uma série de reações enzimáticas, as moléculas de GGPP darão origem ao Betacaroteno. No endosperma do grão de arroz imaturo, há a presença GGPP, porém, a expressão de algumas enzimas responsáveis por realizar as conversões em Betacaroteno não ocorrem.
Para contornar esse problema e construir a via metabólica para produção de Betacaroteno, foram inseridos os genes de duas enzimas no endosperma de grãos de arroz. Um com origem na planta Narcissus pseudonarcissus e outro com origem na bactéria Erwinia uredovora. Após essas modificações, o arroz cultivado passa a produzir um nutriente que antes não produzia.
Atualmente…
De acordo com um artigo publicado na revista Science em 2019, Bangladesh foi o primeiro país a aprovar o plantio do arroz dourado. Em Bangladesh, cerca de 21 % das crianças são afetadas pela deficiência por vitamina A e acabam desenvolvendo os sintomas citados no texto. Espera-se que as primeiras plantações sejam realizadas neste ano (2021) e que a primeira colheita ocorra em 2023. Demoramos cerca de 3400 anos para trocarmos o fígado de boi nos olhos por pomadas e suplementos e cerca de 20 anos entre o desenvolvimento do Arroz Dourado e seu plantio em larga escala. Ainda bem que conseguimos!
Cite este artigo:
SILVA, M. C. Como a engenharia genética de alimentos pode ajudar a solucionar problemas nutricionais? Um relato sobre a vitamina A. Blog do Profissão Biotec. V. 8, março/2021. Disponívem em: <www.profissaiobiotec.com.br/engenharia-genetica-relato-vitamina-a>