Seja na escola, na faculdade ou no trabalho, todos nós já recebemos alguma tarefa que simplesmente parecia não fazer nenhum sentido, mas que, no fim das contas, tivemos que fazer assim mesmo. Você se identificou? Agora, imagine como seria se o seu trabalho fosse produzir (e produzir, e produzir…) algo que não apenas parece não ser exatamente útil para você, mas que, com o tempo, pode acabar literalmente te matando? Parece um processo trabalhista esperando para acontecer, mas é algo muito próximo do que passam as células usadas em fermentações industriais em todo o mundo.
OK, talvez esse exemplo seja um pouco exagerado, mas é fato que desde o desenvolvimento da técnica do DNA recombinante, na década de 1970, a diversidade de produtos que conseguimos produzir a partir de microrganismos vem crescendo exponencialmente. Se antes da introdução de transgênicos nós já conseguíamos obter vários produtos derivados do metabolismo dos microrganismos, como etanol e ácidos orgânicos, atualmente a imaginação parece ser o limite. Agora é possível, por exemplo, utilizar células microbianas para fabricar hormônios humanos com incrível biocompatibilidade, combustível de foguete e até mesmo hemoglobina vegetal para tornar os hambúrgueres veganos ainda mais deliciosos!
O problema nisso é que, embora nossa capacidade tecnológica tenha aumentado significativamente, as células utilizadas nos processos fermentativos em si não mudaram muito desde então. Muitos desses bioprodutos, sejam eles naturais ou obtidos de forma recombinante, podem ser tóxicos para esses microrganismos nas concentrações necessárias para a viabilidade econômica do processo fermentativo. Por conta disso, o desenvolvimento de cepas de microrganismos mais robustas (ou seja, com a habilidade de manter um fenótipo estável e altamente eficiente mesmo quando enfrentam perturbações) e mais tolerantes a esses bioprodutos se torna essencial para a competitividade dos bioprocessos.
A engenharia de cepas robustas é facilitada pela ‘caixinha de ferramentas’ da Biologia Sintética
Diversas abordagens podem ser utilizadas para promover a robustez de hospedeiros microbianos. Estratégias comuns envolvem a modificação de componentes celulares, como a membrana plasmática, para garantir a integridade celular mesmo em condições adversas como a redução do pH, ou ainda, a expressão de proteínas protetivas, como bombas de efluxo, para lidar com o aumento das concentrações intracelulares de metabólitos tóxicos. Neste contexto, avanços nas áreas de Biologia de Sistemas e Biologia Sintética vêm contribuindo para o entendimento de componentes genéticos (como promotores e terminadores transcricionais, assim como sítios de ligação ribossômica) em suas partes essenciais, o que permite o desenho racional de verdadeiros circuitos genéticos cada vez mais sofisticados.
Uma aplicação muito interessante são circuitos de feedback. Estes percebem variações da concentração de determinado composto no meio de cultivo ou mudanças na homeostase celular e realizam a regulação dinâmica da expressão de enzimas de vias metabólicas ou de genes com efeitos protetivos. Ao contrário de sistemas que são continuamente expressos ou que dependem da adição de indutores externos ao meio de cultivo, esses circuitos são interessantes porque são auto regulados e atuam à medida em que as células se encontram sob estresse. Isso evita o gasto de recursos celulares quando as condições voltam a ser favoráveis.
A evolução adaptativa acelera o desenvolvimento de linhagens industriais
Outra abordagem que vem ganhando destaque para o desenvolvimento de linhagens tolerantes é a evolução adaptativa (que é mais conhecida como Adaptive Laboratory Evolution, ou simplesmente “ALE”). Essa técnica se baseia na ideia de que, durante o crescimento celular, erros na replicação dos genomas dos microrganismos são responsáveis por mutações que podem se acumular ao longo das gerações e, assim, promover o surgimento de populações com características vantajosas para determinadas condições.
De forma geral, durante um processo de ALE são realizados longos cultivos em circunstâncias que representam um desafio para o crescimento celular, como em meios de cultura em baixo pH, com elevados níveis de compostos tóxicos, ou enriquecidos com fontes de carbono não-convencionais. Seguindo os princípios da seleção natural, após múltiplas gerações, as células que permanecem no meio de cultivo são aquelas que acumularam mutações que conferem vantagens no crescimento sob a condição estudada. A partir daí, é possível identificar quais são essas mutações presentes nas células adaptadas e reintroduzi-las em linhagens de interesse para tentar determinar relações causais entre genótipo e o fenótipo observado. Basicamente uma engenharia reversa do processo evolutivo!
Aqui vale ressaltar que a relação genótipo-fenótipo nem sempre é óbvia, e que uma das dificuldades encontradas em abordagens como a de desenho racional são imprevisíveis efeitos-borboleta no metabolismo do organismo modificado. Por conta disso, ALE é uma técnica que vem ganhando bastante popularidade, já que permite a obtenção de cepas melhoradas para determinada função sem que os pesquisadores tenham que ter conhecimento anterior das modificações exatas que devem ser feitas para se atingir o fenótipo desejado.
Devido a essas vantagens, ALE vem sendo utilizada para o desenvolvimento de linhagens com capacidades fermentativas superiores em trabalhos super interessantes. Por exemplo, utilizando essa técnica um grupo de pesquisa conseguiu aumentar a tolerância de E. coli a L-serina, um aminoácido com importantes aplicações nas indústrias farmacêutica e cosmética, de 3 g/L para 100 g/L. Além disso, o grupo foi capaz de identificar mutações-chave que permitiram triplicar o rendimento da produção dessa molécula mesmo sem a suplementação do meio de cultivo com outros aminoácidos. Outros trabalhos mostram como é possível utilizar ALE para aumentar a tolerância da bactéria Pseudomonas putida a inibidores do crescimento celular presente em hidrolisados vegetais, triplicar a produção de carotenoides na levedura Saccharomyces cerevisiae e até otimizar o crescimento de células com genomas mínimos, isto é, genomas modificados que orquestram o metabolismo celular com o menor desperdício de energia possível .
À medida em que a demanda por processos industriais mais sustentáveis e eficientes aumenta, fica evidente como o desenvolvimento de microrganismos mais robustos é essencial para a competitividade da Biotecnologia Industrial. Independente da técnica utilizada para atingir esse objetivo, cabe a nós, biotecnologistas, dar novas ferramentas para que as células microbianas possam dar conta do recado e continuar nos fornecendo os bioprodutos que amamos. Continue lendo a nossa série série Engenharia Metabólica – hackeando a biologia para saber mais sobre como podemos fazer isso!
Sobre os autores:
Guilherme Viana é Biotecnologista formado pela UnB, mestre em Bioquímica pela USP, e um grande entusiasta de tudo o que tenha a ver com microbiologia industrial. Quando não está pesquisando sobre o estresse em microrganismos, provavelmente está buscando alguma coisa para fermentar.
.
María Eugenia Guazzaroni é Microbiologista formada pela Universidade de Río Cuarto (Argentina), doutora pela Universidade de Granada (Espanha), e atual professora da USP. Adora mergulhar nos genomas das bactérias que ainda não conseguimos cultivar para descobrir genes bacanas e depois ver se eles funcionam também em outras bactérias
Texto revisado por Ísis Biembengut e Bruna Lopes