Epigenética: as “marcas” que podem mudar a expressão gênica, mas não o DNA

A epigenética estuda as alterações que mudam a expressão gênica, sem alterar o DNA do indivíduo, e podem ter diferentes aplicações.

Você já se perguntou “Como as nossas células podem ser tão diferentes se todas possuem a mesma informação genética?”  ou já se questionou “Como os nossos hábitos podem alterar a expressão dos genes, sem alterar o DNA?”. As respostas para essas perguntas estão na epigenética, um processo capaz de alterar a expressão dos genes sem mudar a informação genética, contida no nosso DNA (ácido desoxirribonucleico). Mas como isso é possível?

A Epigenética

O termo epigenética é usado desde a década de 1940 para definir o processo em que “marcas” são adicionadas ao DNA ou às proteínas que se ligam ao DNA, ativando ou desativando a expressão dos genes, mas sem alterar a sequência de nucleotídeos do DNA. Essas “marcas” podem ou não ser transmitidas entre as gerações (memória epigenética), contribuindo para formação de novos fenótipos dos descendentes.

Dessa forma, a epigenética nos permite compreender, por exemplo, como as células de diferentes tecidos, mesmo possuindo o mesmo DNA, expressam genes e proteínas diferentes, resultando em morfologias e funções diferentes!

Esquema representativo da expressão gênica em dois órgãos diferentes
Esquema representativo da expressão gênica em dois órgãos diferentes. Embora o DNA seja o mesmo (com os mesmos genes), a diferença na expressão dos genes é determinante para definir as morfologias e funções de cada órgão. #ParaTodosVerem: À esquerda, representando o órgão 1,  uma linha na cor amarela representa o DNA, seguido de setas que representam a expressão gênica, e três quadros (nas cores verde, azul e vermelho) representando as proteínas A, B e C. À direita, representando o órgão 2,  uma linha na cor amarela representa o DNA, seguido de setas que representam a expressão gênica, e dois quadros (nas cores verde e azul) representando as proteínas A e B. Adaptado de Alberts, B. et al., 2010.

As principais alterações epigenéticas

As alterações epigenéticas (também chamadas de “marcas epigenéticas”) são flexíveis, logo, podem ocorrer naturalmente (devido a etapas da diferenciação celular, estágio do desenvolvimento, etc) ou em resposta a algum fator externo como estresse, fome, exposição à poluição, fumo e atividade física. Muitas dessas alterações epigenéticas não ocorrem do dia para noite e podem demorar anos para surgirem.

É importante ressaltar que epigenética não é sinônimo de edição gênica, pois não adiciona ou remove regiões do DNA. A epigenética está relacionada a regulação da expressão gênica, facilitando ou dificultando a expressão de um determinado gene.E essa regulação varia de acordo com as alterações epigenéticas que ocorrem no DNA.

Dentre as principais alterações epigenéticas já descritas, destacam-se:  

  • Alterações na cromatina: Cromatina é o nome dado ao complexo formado pelo DNA enovelado em proteínas histonas. Esse complexo pode ser modificado pela presença de substâncias como grupos acetil (acetilação), enzimas e alguns tipos de RNA (microRNAs e pequenos RNAs de interferência).

Essa modificação pode influenciar a compactação da cromatina: quanto mais compactada, menor a transcrição do gene presente naquela região do DNA; quanto menos compactada, maior a transcrição do gene presente naquela região do DNA.

  • Modificações de histonas: As proteínas histonas podem ser modificadas por fosforilação (adição de grupo fosfato), pela  acetilação ou metilação dos seus aminoácidos (adição de grupos acetil e metil, respectivamente). Enquanto fosforilação e acetilação induzem o relaxamento da cromatina (facilitando a transcrição do gene), a metilação induz a condensação da cromatina (dificultando a transcrição do gene).
  • Metilação: É a alteração epigenética mais conhecida, e ocorre quando as enzimas metiltransferases adicionam um grupo metil (-CH3) à base nitrogenada citosina do DNA. Isso inibe a ligação de fatores de transcrição e da RNA polimerase naquela região do DNA, logo, regulam a expressão do gene. A metilação é uma das modificações mais frequentes no DNA de eucariotos.

Apesar de ser uma modificação que ocorre naturalmente em todos os indivíduos, em algumas condições, como doenças psiquiátricas, neonatais, doença de Alzheimer e câncer, os padrões de metilação são mais frequentes ou diferentes dos padrões observados em condições normais.

A metilação é uma das alterações epigenéticas mais comuns no DNA dos eucariotos
A metilação é uma das alterações epigenéticas mais comuns no DNA dos eucariotos. #ParaTodosVerem: Na imagem superior, o DNA (linha amarela) está envolto nas proteínas histonas (cilindros azuis); Na imagem inferior, o mesmo esquema, mas com a presença de grupos metil (esferas vermelhas) localizadas ao longo do DNA. Fonte: Adaptado de Weinhold, 2006.
  • RNAs não codificadores (ncRNAs): São os RNAs que não são traduzidos em proteínas, como por exemplo os microRNAs (miRNA) e os pequenos RNAs de interferência (siRNA). Os ncRNAs são amplamente produzidos em mamíferos e outros organismos (nesses casos, cerca de 98% do DNA é ncRNAs!) e durante muito tempo foram considerados “lixo transcricional”, pois não eram traduzidos em nenhuma proteína. Mas as pesquisas demonstraram que alguns ncRNAs conseguem se ligar a outros mRNAs impedindo a expressão de genes. E essa regulação pode ocorrer em até 60% dos nossos genes! Mais uma forma natural de regular a expressão gênica sem alterar a sequência do DNA.

Onde a epigenética pode ser utilizada?

As pesquisas indicam que a compreensão das alterações epigenéticas pode ser útil para diferentes setores: saúde humana e animal (prevenção, diagnóstico, prognóstico e tratamento de doenças), agricultura, genética, entre outros. A seguir listamos algumas dessas aplicações:

Biomarcadores moleculares: Algumas alterações epigenéticas, como a metilação de DNA, podem ser utilizadas como biomarcadores moleculares de doenças. É o exemplo do câncer, visto que a hipometilação (pouca metilação) do DNA e algumas metilações pontuais são associadas a maior expressão de oncogenes e incidência de câncer de próstata, respectivamente.

Os estudos epigenéticos dos tumores também podem determinar possíveis diferenças entre suas alterações epigenéticas (metilação do DNA, modificações de histonas, expressão de ncRNAs), facilitando a identificação do tumor, e a escolha do tratamento mais apropriado. Dessa forma, o diagnóstico e o prognóstico do câncer seriam mais rápidos, precisos e menos invasivos.

Herança epigenética: Estudos em animais demonstram que a exposição paterna à nicotina gera proles com alterações epigenéticas que regulam a expressão de genes associados a desenvolvimento neural e fenótipo de ansiedade. Também foi observado que a exposição materna a alguns suplementos induz alterações epigenéticas na prole, que favorecem a expressão de genes relacionados à obesidade.

Melhoramento genético animal: As técnicas de reprodução assistida podem afetar os padrões epigenéticos e, consequentemente, a expressão gênica. A ciência busca o desenvolvimento e/ou adaptação das técnicas de reprodução assistida a fim de evitar a ocorrência de alterações epigenéticas em gametas e embriões (e consequentes perdas gestacionais e mortalidade perinatal), além de gerar animais resistentes a doenças e com maior longevidade e produtividade.

Quatro vacas por trás de trilhos de metal
O aprimoramento das técnicas de reprodução assistida pode evitar a ocorrência de alterações epigenéticas em animais, aumentando a produtividade e o bem estar animal.  #ParaTodosVerem: Quatro vacas por trás de trilhos de metal. Fonte: Pexels.

Agricultura: As modificações epigenéticas também podem ser usadas para melhorar a resistência de uma planta a pragas ou estresse, ampliar sua adaptação a condições adversas,como calor e seca, e aumentar o teor de nutrientes.

Oito morangos vermelhos
No morango, o melhoramento epigenético gerou frutos mais resistentes a doenças. #ParaTodosVerem: Oito morangos vermelhos dispostos sobre um prato branco. Fonte: Pexels.

Epigenética no Brasil

A epigenética já é uma realidade, inclusive no Brasil. Diversos grupos de pesquisa, em diferentes regiões do país, investem em pesquisas para compreender os mecanismos que regulam as alterações epigenéticas. A Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal do Pará (UFPA) são algumas das instituições que realizam pesquisas nessa área.

O futuro da Epigenética

Os estudos sobre epigenética ganharam destaque nos últimos anos e o termo passou a ser muito utilizado na mídia. Erroneamente, a epigenética foi associada a dietas milagrosas ou medicamentos/suplementos que seriam capazes de “mudar o DNA” das pessoas ou de seus filhos. Mas, como vimos anteriormente, as alterações epigenéticas regulam a expressão dos genes sem mudar o DNA do indivíduo, e ainda são necessários mais estudos (principalmente em humanos) para entendermos completamente os mecanismos associados a essa regulação.

Por isso, é preciso ter cuidado com as inúmeras informações que circulam, principalmente na internet. Na dúvida, busque referências em artigos científicos, instituições de pesquisa e ensino ou em plataformas de divulgação científica, como o Profissão Biotec. A epigenética é uma área muito promissora e, em um curto espaço de tempo, deve trazer inúmeros benefícios para diferentes setores da sociedade.

Perfil Bruna Lopes
Texto revisado por Jennifer Medrades e Ísis V. Biembegut

Cite este artigo:
LOPES, B. P. Epigenética: as “marcas” que podem mudar a expressão gênica, mas não o DNA. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/epigenetica-marcas-que-podem-mudar-expressao-genica-mas-nao-dna/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências:

Alberts, B. et al. Biologia molecular da célula. Artmed,2010,  5ª edição.
Chen, Y et al. Epigenetic modification of nucleic acids: from basic studies to medical applications. Chem Soc Rev, 2017.Disponível em <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28352906/ > Acesso em: 01 de abril de 2022.
Costa, EBO et al. Epigenética: regulação da expressão gênica em nível transcricional e suas implicações. Semina: Ciências Biológicas e da Saúde, 2013. Disponível em < https://pesquisa.bvsalud.org/controlecancer/resource/pt/lil-726422#:~:text=A%20epigen%C3%A9tica%20compreende%20um%20conjunto,no%20entanto%2C%20ocorrer%20nenhuma%20altera%C3%A7%C3%A3o > Acesso em: 01 de abril de 2022.
Franco, MM. Epigenética no melhoramento genético e reprodução animal. Archivos Latinoamericanos de Producción Animal, 2017. Disponível em <https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/169751/1/2571-7501-1-PB.pdf > Acesso em: 01 de abril de 2022.
Helmstetter, M. Epigenética: conduzindo a sinfonia da genética. Forbes, 2021.Disponível em <https://forbes.com.br/forbesagro/2021/08/epigenetica-conduzindo-a-sinfonia-da-genetica/#:~:text=A%20epigen%C3%A9tica%20explica%20como%20o,expressando%20ou%20silenciando%20um%20gene.> Acesso em: 01 de abril de 2022.
INCA. Epigenética de tumores. Instituto Nacional do Câncer, Ministério da Saúde, 2021.Disponível em <https://www.inca.gov.br/pesquisa/pesquisa-experimental-e-translacional/programa-carcinogenese-molecular/epigenetica-de-tumores.> Acesso em: 01 de abril de 2022.
Leite, ML et al. Epigenômica, epigenética e câncer. Rev Pan-Amaz Saude 2017. Disponível em <http://scielo.iec.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-62232017000400006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt#:~:text=As%20Epigen%C3%A9tica%20e%20epigen%C3%B4mica%20s%C3%A3o,na%20sequ%C3%AAncia%20de%20DNA1.> Acesso em: 01 de abril de 2022.
Sanches, R. Mecanismos epigenéticos. Casa da Ciência, 2015. Disponível em <https://www.casadaciencia.com.br/mecanismos-epigeneticos/> Acesso em: 01 de abril de 2022.
Santana, VP. Epigenética – como você pode modular seus genes? Ilha do conhecimento, 2018.Disponível em <https://ilhadoconhecimento.com.br/epigenetica-como-voce-pode-modular-seus-genes/#:~:text=Atrav%C3%A9s%20da%20epigen%C3%A9tica%2C%20um%20organismo,atrav%C3%A9s%20da%20%E2%80%9Cmem%C3%B3ria%20epigen%C3%A9tica%E2%80%9D.> Acesso em: 01 de abril de 2022.
Villanueva, L et al. The Contribution of Epigenetics to Cancer Immunotherapy. Trends in Immunology, 2020.Disponível em <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32622854/> Acesso em: 01 de abril de 2022.
Weinhold, B. Epigenetics: The Science of Change. Environmental Health Perspectives, 2006. Disponível em < https://ehp.niehs.nih.gov/doi/full/10.1289/ehp.114-a160 > Acesso em: 01 de abril de 2022.
Fonte da imagem destacada: pixabay.

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Francis de Morais Franco Nunes
Francis de Morais Franco Nunes
2 anos atrás

Tópico super importante, parabéns pelo texto! Para ampliar a discussão, compartilho nossos artigos recentes sobre epigenética de RNAs, um campo científico emergente. Abraços, Francis Nunes (UFSCar):

Active genic machinery for epigenetic RNA modifications in bees
https://www.researchgate.net/publication/353395125_Active_genic_machinery_for_epigenetic_RNA_modifications_in_bees

Transcriptional expression of m6A and m5C RNA methyltransferase genes in the brain and fat body of honey bee adult workers
https://www.researchgate.net/publication/363064834_Transcriptional_expression_of_m6A_and_m5C_RNA_methyltransferase_genes_in_the_brain_and_fat_body_of_honey_bee_adult_workers?_tatpl%5Bac%5D%5B0%5D%5Bactor%5D=AC%3A11528363&_tatpl%5Bac%5D%5B0%5D%5Bid%5D=1541381587873807&_tatpl%5Bac%5D%5B0%5D%5Bobject%5D=PB%3A363064834&_tatpl%5Bac%5D%5B0%5D%5Bts%5D=1661935208&_tatpl%5Bac%5D%5B0%5D%5Bverb%5D=follow&_tatpl%5Bs%5D=29232081caea85bd9380fa94c65bad7f7c69f189

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