O número de infecções pelo coronavírus normalmente é calculado com base no resultado de exames diagnósticos, realizados a partir de amostras de sangue, secreção do nariz e garganta ou saliva do paciente. Entretanto, há situações em que pode haver subnotificação de casos em função do baixo número de testes disponíveis, ou mesmo da impossibilidade de realizá-los.
Imagine, por exemplo, a dificuldade de coletar amostras de pessoas que habitam em comunidades isoladas ou sem fácil acesso aos serviços de saúde, ou o atraso causado quando não se consegue atender à grande demanda por testagem de possíveis infectados, como já aconteceu no Brasil.
Felizmente, há ferramentas epidemiológicas alternativas para o monitoramento de casos de doenças infecciosas. Por exemplo, você sabia que é possível utilizar o esgoto para acompanhar o avanço da pandemia do coronavírus?
Esgoto e a cronologia da pandemia da COVID-19
Oficialmente, o primeiro registro de infecção pelo coronavírus em humanos ocorreu em Wuhan, China, em dezembro de 2019. Entretanto, suspeita-se que o vírus estaria circulando semanas ou até meses antes da notificação deste suposto primeiro caso, e não somente no território chinês, mas em outros países mundo afora.
Uma das evidências que corroboram essa suposição é a detecção do SARS-CoV-2 no esgoto de vários países antes do surto na China. No Brasil, pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina detectaram a presença do coronavírus no esgoto coletado em Florianópolis no final de novembro de 2019. O primeiro caso clínico reportado no Brasil, porém, data do final de fevereiro de 2020.
O que o coronavírus tem a ver com o esgoto?
O SARS-CoV-2 infecta células que expressam a proteína receptora ACE2, que podem ser encontradas no intestino delgado humano. É esta última característica que faz com que o coronavírus seja encontrado também nas fezes de alguns pacientes, além de gotículas respiratórias e de saliva, mesmo depois de várias semanas após a infecção.
Após a excreção com as fezes, os vírus e seu material genético seguem para sistemas de coleta, onde são diluídos e passam a entrar na constituição do esgoto doméstico. Então, o esgoto segue por um sistema de tubulações até chegar a uma estação de tratamento (ETE), onde amostras são coletadas para detecção do coronavírus. Na prática, a detecção do RNA viral no esgoto se dá via transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR).
Em estudos de diferentes países, como EUA, Japão, Itália, Austrália e Países Baixos, a concentração do RNA do SARS-CoV-2 no esgoto apresentou correlação com o número de casos identificados por testes diagnósticos e admissões hospitalares. Esses resultados indicam que o monitoramento da carga viral no esgoto pode ser utilizado como complemento aos exames convencionais para acompanhamento da pandemia em uma região.
Vale frisar que a análise do esgoto serve para monitoramento epidemiológico de uma população, e não para diagnóstico em nível individual. Para saber se uma pessoa foi acometida pela COVID-19, apenas exames convencionais são adequados, pois a ausência do coronavírus nas fezes, e consequentemente no esgoto, não implica que não ocorreu infecção.
Vantagens e limitações do esgoto como ferramenta epidemiológica
Os testes utilizados para diagnóstico da COVID-19 são geralmente realizados apenas após o surgimento de sintomas graves, que podem levar até duas semanas para aparecer. Soma-se a esse tempo o período necessário para análise das amostras dos pacientes após recebimento pela instituição responsável, o que no Brasil, para testes via RT-PCR, pode levar vários dias.
Por outro lado, a eliminação do coronavírus pelas fezes pode ocorrer em três dias após a infecção e, consequentemente, o RNA viral pode estar presente no esgoto já no início do desenvolvimento da doença. Dessa forma, a detecção do RNA viral no esgoto indicaria tendências de aumento da transmissão mais cedo que os exames diagnósticos. Esta é uma vantagem importante de utilizar o esgoto como ferramenta epidemiológica, pois quanto antes os sinais de avanço da doença em uma comunidade forem detectados, mais efetivas serão as medidas de prevenção ou controle.
Outra vantagem de monitorar o avanço da pandemia por meio do esgoto é que este método permite obter um retrato mais fiel da situação da pandemia em uma região. Exames diagnósticos frequentemente são realizados apenas para sintomáticos, e casos com sintomas leves ou inexistentes deixam de ser notificados. Quando se utiliza o esgoto para acompanhamento da evolução da COVID-19 em uma população, a abrangência e cobertura dos resultados são maiores, pois tanto pacientes sintomáticos como assintomáticos podem excretar coronavírus nas fezes.
A testagem aplicada ao esgoto é, ainda, barata e não invasiva, pois não exige coleta de material biológico do paciente. Embora as partículas virais possam ser degradadas no esgoto, é possível também realizar o sequenciamento genético do coronavírus e acompanhar a circulação das variantes, como feito em um estudo brasileiro.
A concentração do RNA viral excretado nas fezes pode variar para cada paciente e mudar ao longo do curso da doença. Além disso, estações de tratamento em diferentes localidades operam com configurações distintas (por exemplo, volume de esgoto tratado e tipo de processo), o que introduz variação nos resultados para a concentração do coronavírus no esgoto.
Dessa forma, a aplicação da testagem do coronavírus no esgoto é restrita, por enquanto, à observação e comparação de tendências de mudança na transmissão em uma localidade ou período particular. Também é difícil, ainda, relacionar a concentração do RNA viral no esgoto ao número absoluto de infecções.
Outros desafios que ainda precisam ser superados incluem a padronização da coleta e análise do RNA viral do esgoto, matriz complexa e repleta de interferentes, e a integração dos dados em redes de vigilância epidemiológica. No Brasil, há ainda outro empecilho: a falta de saneamento básico. Apenas metade da população brasileira tem seu esgoto coletado, o que diminui o alcance das análises. Ainda assim, há no país instituições que realizam a detecção do coronavírus no esgoto de várias cidades.
Exemplos brasileiros de monitoramento do coronavírus no esgoto
A Fiocruz participou de um projeto de vigilância do coronavírus nos esgotos de Niterói (RJ). As informações estão disponíveis no portal Acompanhamento dos Casos de Coronavírus de Niterói. Por meio do monitoramento dos esgotos da cidade, por exemplo, pesquisadores detectaram o coronavírus em uma comunidade em que ainda não havia registro oficial de casos. Em função dos resultados, equipes foram mobilizadas para identificar possíveis infectados e orientar a comunidade, e ações para conter a transmissão do coronavírus foram tomadas.
Há também a Rede Monitoramento Covid Esgotos, coordenada pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Estações de Tratamento de Esgotos Sustentáveis (INCT ETEs Sustentáveis) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Ainda participam do projeto seis Universidades Federais (UnB, UFMG, UFPE, UFC, UFPR e UFRJ), entre outros parceiros. A rede realiza o monitoramento do coronavírus nos esgotos de seis cidades: Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro e Brasília. Os resultados são disponibilizados por meio de boletins de acompanhamento e do painel de monitoramento.
Aplicações do esgoto para monitoramento epidemiológico
O esgoto é a “matéria-prima” da epidemiologia baseada em águas residuárias (WBE, do inglês Wastewater-Based Epidemiology). Por meio da detecção de biomarcadores no esgoto, a WBE é utilizada para avaliar o estilo de vida e o nível de saúde de comunidades humanas.
Além do monitoramento do coronavírus e de outros patógenos, a WBE pode ser aplicada, por exemplo, para acompanhar tendências no uso de drogas lícitas e ilícitas. É possível, também, conhecer a situação socioeconômica ou de saúde de uma população a partir da busca por biomarcadores relacionados à dieta ou consumo de fármacos e produtos de higiene pessoal, ou estimar o risco de exposição de uma comunidade a substâncias como pesticidas.
Embora visto como resíduo desagradável, o esgoto é um alvo de estudos complexo e promissor. A ampliação dos serviços de saneamento, além de trazer melhor qualidade de vida, permitirá o desenvolvimento de pesquisas sobre o esgoto como ferramenta epidemiológica potente (e barata!), seja para compreensão do avanço da COVID-19 ou monitoramento da saúde e estilo de vida de uma população.
Cite este artigo:
LATOCHESKI, E. C. Esgoto para monitoramento epidemiológico do coronavírus. Revista Blog do Profissão Biotec, v.8, 2021. Disponível:<https://profissaobiotec.com.br/esgoto-para-monitoramento-epidemiologico-do-coronavirus/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
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