Muitas pessoas já se imaginaram sendo astronautas e conhecendo novos lugares no universo. Mas nem todas sabem que longas jornadas no espaço podem causar alterações no organismo que persistem por muito tempo, mesmo após o retorno à Terra. Um desses desafios é a perda de massa muscular durante viagens espaciais, um fator que dificulta voos de longa duração. Então como diminuir os efeitos colaterais e permitir viagens espaciais mais longas? A resposta para essa pergunta pode estar no intestino de esquilos durante a hibernação.
Hora de dormir
Vivendo em ambientes cheios de perigos e condições desfavoráveis para a vida, os animais possuem mecanismos de sobrevivência impressionantes. Um deles é a conhecida hibernação. Mas calma! Embora já estejamos acostumados com esse termo, hibernar não é simplesmente dormir por meses a fio. Existe um complexo preparo metabólico, e até mesmo físico, para que os animais consigam realizar esse processo.
A hibernação geralmente ocorre em períodos em que as condições ambientais são muito adversas e os alimentos se tornam escassos, como durante um inverno intenso. Nessa situação, um animal teria que gastar muito de sua energia, já restrita pela falta de alimento, para continuar aquecido e garantir suas atividades vitais.
Dessa forma, manter o organismo em um estado letárgico reduz ao máximo a atividade metabólica e permite a sobrevivência até que as condições se tornem favoráveis novamente. A hibernação, então, é o estado em que o metabolismo e a temperatura corporal são reduzidos por um período prolongado. Essa redução pode ser tão drástica que alguns animais param de defecar e precisam de um certo tempo para se adaptar novamente às condições normais.
Para conseguir passar por esses períodos, os animais se preparam por meses. Primeiramente, eles precisam preparar suas casas (ou o seu hibernáculo). Elas podem ser cavernas, tocas ou casulos, e cada animal possui o seu estilo próprio. Também é muito importante estocar alimentos, já que os animais podem despertar em alguns momentos durante a hibernação para comer. Alguns animais armazenam essa fonte de energia no próprio corpo, na forma de gordura corporal. Fazendo isso, eles estão prontos para um sono bem longo, que geralmente dura entre cinco e sete meses.
O segredo para dormir bem
A hibernação é fundamental para que alguns animais consigam superar períodos desafiadores para a sobrevivência, explorando a plasticidade metabólica, isto é, a capacidade metabólica de se adaptar a diferentes condições, para reduzir as demandas de energia e permitir o jejum de longo prazo. Porém, alguns mecanismos desse processo ainda são um mistério para a ciência, uma vez que a hibernação também apresenta seus próprios desafios.
Um fator desafiador nesse período, por exemplo, é a deficiência de nitrogênio obtido a partir da dieta. O nitrogênio é um componente chave dos aminoácidos que, por sua vez, formam todas as proteínas do corpo. Logo, a ausência desse constituinte afeta diretamente a síntese de proteínas. Como, então, esses animais mantêm o equilíbrio proteico e a massa muscular durante a hibernação?
Para tentar responder a essa pergunta, pesquisadores da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, realizaram uma pesquisa com esquilos terrestres de 13 linhas (Ictidomys tridecemlineatus), já conhecidos por sua capacidade de enfrentar períodos de hibernação.
O trabalho, liderado pelo pesquisador Matthew Regan e publicado este ano na revista Science, analisou o microbioma do intestino desses esquilos e chegou a uma conclusão interessante. Os microrganismos simbiontes presentes no trato intestinal deles são capazes de realizar uma reciclagem do nitrogênio a partir da ureia, que pode então ser incorporado pelos esquilos, evitando o desequilíbrio protéico.
Vamos simplificar. A ureia é uma molécula orgânica, solúvel em água e rica em nitrogênio. Em mamíferos, a ureia é produzida por meio de uma sequência de reações bioquímicas, com o objetivo de secretar a amônia (NH3), uma substância tóxica produzida no organismo. O trato intestinal dos esquilos estudados abriga microrganismos ureolíticos, que possuem enzimas capazes de quebrar a ureia e incorporar o nitrogênio dela em outros metabólitos, que são reabsorvidos pelo seu hospedeiro. Dessa maneira, o nitrogênio pode ser incorporado de novo nas proteínas do animal. Esta relação entre microrganismos e mamíferos está esquematizada na imagem a seguir.
Os autores também concluíram que tanto os microrganismos quanto os esquilos se beneficiam desse processo, uma vez que as proteínas de ambos incorporaram o nitrogênio da ureia. Isso confirma a existência de uma relação simbiótica, assim como a teoria de que a ureia atua como uma reserva de nitrogênio.
Esses resultados mostram que existe uma grande importância do microbioma intestinal na manutenção do metabolismo durante a hibernação. Nessa perspectiva, os autores sugerem que esses microrganismos podem desempenhar esse papel não só em esquilos, mas também em outras espécies. E por que não em humanos?
O que isso tem a ver com astronautas
Em abril de 1961, foi realizada a primeira viagem espacial, que levou o cosmonauta Yuri Alexeyevich Gagarin a completar a órbita terrestre a bordo de uma espaçonave russa. Atualmente, depois de muitas viagens após esse marco histórico, ainda se buscam maneiras de tornar essas experiências no espaço mais seguras e com menos efeitos colaterais para quem participa delas.
Um dos efeitos experimentados por astronautas durante viagens espaciais é a perda de massa muscular, devido a um ambiente hostil de microgravidade. O fenômeno da microgravidade ocorre porque a espaçonave e tudo que se encontra dentro dela está em um estado chamado de queda livre, em que não se tem peso aparente. Essa condição atua negativamente sobre a síntese de proteínas, levando à redução de massa muscular.
Como já falado, animais capazes de hibernar possuem um robusto sistema microbiano que impede que eles percam massa corporal. Esse mecanismo poderia ser usado para ajudar astronautas em suas viagens? É o que os pesquisadores estão buscando descobrir.
Para Matthew Regan, é necessário saber quais proteínas têm sua síntese diminuída durante os voos espaciais e compará-las com as proteínas que são beneficiadas pela reciclagem do nitrogênio ureico durante a hibernação. Caso exista sobreposição entre essas proteínas, tudo indica que esse processo pode beneficiar a saúde muscular de astronautas. Atualmente, o pesquisador continua a investigar essa relação por meio da Agência Espacial Canadense.
A pesquisa com microbiota de esquilos pode beneficiar a saúde muscular de astronautas. Fonte: Pixabay
#ParaTodosVerem: na fotografia é possível ver uma pessoa usando trajes de astronauta, andando em solo lunar. Ao lado há uma bandeira dos Estados Unidos e dois satélites.
Perspectivas
Além de poder auxiliar na saúde muscular de astronautas no espaço, a pesquisa dos mecanismos de captação de nitrogênio também pode fornecer estratégias para o combate à desnutrição. Explorar esses mecanismos pode permitir o desenvolvimento de pílulas pré ou probióticas associadas aos microrganismos ureolíticos, que podem atuar no intestino humano e ajudar no equilíbrio proteico.
Essa relação científica inusitada entre esquilos e astronautas mostra como a ciência pode ser curiosa e como é importante integrar diversas áreas do conhecimento. Mas Regan destacou que ainda existe um longo caminho a ser percorrido para chegar a uma aplicação prática desses achados, envolvendo muito tempo e dedicação. Assim como todo trabalho de pesquisa, este pode ser um pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade.
Cite este artigo:
NASCIMENTO, L. X. O que esquilos têm a ver com viagens espaciais? Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/esquilos-tem-a-ver-com-viagens-especiais/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências:
FARIA, Caroline. Hibernação. In: InfoEscola. [S. l.]. Disponível em: https://www.infoescola.com/biologia/hibernacao/. Acesso em: 23 fev. 2022.
GUIMARÃES JÚNIOR, Roberto; PEREIRA, Luiz Gustavo Ribeiro; TOMICH, Thierry Ribeiro; MACHADO, Fernanda Samarini; GONÇALVES, Lúcio Carlos. 1. Informações gerais. In: UREIA em Dieta de Ruminantes. [S. l.: s. n.], 1999. Disponível em: https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/155977/1/Cnpgl-2016-CadTecVetZoot-InfGerais-Ureia.pdf. Acesso em: 23 fev. 2022.
MAGALHÃES, Lana. Ciclo da Ureia. In: Toda Matéria. [S. l.]. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/ciclo-da-ureia/. Acesso em: 23 fev. 2022.
Porto Editora – Primeira Viagem Espacial na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2022-02-24 17:57:27]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$primeira-viagem-espacial. Acesso em: 23 fev. 2022.
REGAN, Matthew et al. Nitrogen recycling via gut symbionts increases in ground squirrels over the hibernation season. Science, v. 375, p. 460-463, 27 jan. 2022. DOI: 10.1126/science.abh2950. Disponível em: https://www.science.org/doi/10.1126/science.abh2950. Acesso em: 23 fev. 2022.
SYMBIOTIC Microbes in Hibernating Squirrels Inform Space Travel. [S. l.], 28 jan. 2022. Disponível em: https://www.genengnews.com/topics/omics/symbiotic-microbes-in-hibernating-squirrels-inform-space-travel/. Acesso em: 23 fev. 2022.
Fonte da imagem destacada: Unsplash.