Organismos que vivem nos extremos da escala de pH possuem adaptações evolutivas com potencial utilidade para a biotecnologia.

O nicho ambiental (o ambiente em que um organismo vive) é deveras relevante para entender a vida. Basicamente, todas as localidades do planeta Terra são passíveis de serem habitadas, desde que haja as adaptações necessárias. Por isso, para sobreviverem à austeridade do ambiente, os extremófilos apresentam características e propriedades fascinantes, e iremos abordá-las neste texto sobre extremófilos acidófilos e alcalófilos!

Nós humanos vivemos confortavelmente num ambiente com pH neutro (em torno de 7), e a maioria de nossas células também. Imagine como é viver num local com pH 2 ou com pH 10! Seria penoso, no mínimo. Porém, existem organismos que vivem nos extremos da escala de pH, variando de 1 a 14, e preferem locais altamente ácidos ou básicos, os chamados acidófilos e alcalófilos, respectivamente. 

Neste texto, iremos abordar exemplos de organismos na escala microscópica, encontramos em todos os domínios da vida e incluindo protozoários, fungos, bactérias e microalgas. Eles podem fornecer novos conhecimentos e nos ensinar muito sobre a bioquímica celular, além de possíveis produtos com utilidade para diferentes indústrias.

Sobre a acidez ou a basicidade do ambiente

Os processos celulares (como metabolismo, síntese de DNA e de proteínas) ocorrem em condições específicas de temperatura, pH, salinidade, entre outros; ao se esforçar para modular esses fatores, a célula mantém a homeostase, seu equilíbrio interno, e garante sua sobrevivência. Como manter a homeostase em condições específicas de temperatura e salinidade já foram abordadas em textos anteriores sobre microrganismos extremófilos, nessa matéria nós vamos considerar o pH.

A medida de pH, sigla para potencial de hidrogênio, mensura a concentração de íons de hidrogênio (H+). Soluções com maiores concentrações desse íon são consideradas ácidas, e com menores concentrações são básicas. O valor de pH pode variar de 0 a 14 e é medido em escala logarítmica inversamente proporcional à presença do H+ no meio; ou seja, soluções com pH em torno de 7 são neutras, com pH abaixo de 7 são ácidas e com pH acima de 7 são básicas.

Mas por que entender o pH é importante? Antes de falar dos acidófilos e dos alcalófilos, tomemos como base o nosso organismo.

Escala de pH
#ParaTodosVerem: Escala de pH e os valores de pH de diferentes substâncias. O sangue humano tem pH em torno de 7, logo é neutro; produtos de limpeza à base de alvejante têm pH maior que 12 e são básicos; e café preto, suco de limão e o suco gástrico têm pH menor que 5 e são considerados ácidos. Imagem adaptada de Princípios de Bioquímica de Lehninger, 6ª edição. 

Por todo o nosso corpo (sejam os órgãos, os biofluidos, as células, suas organelas e outros compartimentos celulares), o valor do pH é continuamente controlado. Sendo assim, estabelecer um equilíbrio ácido-base possibilita o devido funcionamento das nossas funções fisiológicas. Um exemplo da importância do pH para a homeostase é a produção de adenosina trifosfato (ATP), uma molécula fornecedora de energia essencial para a célula: o complexo de enzimas e proteínas responsável pela produção de ATP (chamado de ATP sintase), requer um gradiente de íons H+ através da membrana para funcionar.

Além disso, as proteínas possuem atividade em faixas específicas e ideais de pH cuja alteração pode influenciar negativamente os processos bioquímicos da célula. Portanto, os microrganismos que vivem em nichos ecológicos cujo pH é extremamente ácido ou básico têm, obrigatoriamente, mecanismos para superar as adversidades que o ambiente impõe e para prosperar em tais locais. 

Adaptações dos organismos acidófilos e alcalófilos

O ambiente em que estes extremófilos vivem é desafiador por não ser de pH neutro; então esses microrganismos devem superar as adversidades impostas pela diferença da concentração de íons no meio extracelular e no intracelular.

A fim de manter a homeostase celular, algumas adaptações engenhosas foram selecionadas nestes extremófilos. 

1 – Alcalófilos

Os microrganismos alcalófilos vivem e prosperam em ambientes de pH básico. Pelo fato de que uma grande parte dos alcalófilos apresenta pH interno inferior ao externo, ou seja, menos básico, a manutenção da homeostase intracelular se dá pelo acúmulo de íons H+. Eles possuem mecanismos para sintetizar ácidos orgânicos, impedir a entrada de íons hidroxila (OH, grupo funcional das bases, que torna o meio básico) e captar íons H+ do ambiente.

Lembra quando mencionei a ATP sintase? Os alcalófilos têm um complexo diferenciado, que, além de produzir ATP, retém o H+ no citoplasma, contribuindo para o equilíbrio do pH interno. Por fim, o envelope celular (composto por membrana plasmática e parede celular) desses organismos é especializado; eles apresentam uma composição de biomoléculas, como lipídios e polissacarídeos, com carga negativa, que interagem com o íon H+ e impedem sua saída.

Lago Turkana
#ParaTodosVerem: A foto mostra o Lago Turkana, no Grande Vale do Rift (Quênia e Etiópia), que é o maior lago alcalino do mundo, com pH 9,4. Fonte da imagem: National Geographic.

2 – Acidófilos

Já os acidófilos são microrganismos que habitam ambientes de pH bastante ácido. O raciocínio para entender as adaptações destes extremófilos é, basicamente, o oposto dos alcalófilos. Como os acidófilos possuem o meio intracelular com maior pH que o ambiente externo, ou seja, menos ácido, o foco principal é impedir o acúmulo de íons H+ no citoplasma, um dos estímulos possivelmente indutores de morte celular. 

Em adição ao transporte de íons de hidrogênio para o exterior da célula, o envelope celular dos acidófilos apresenta moléculas com carga positiva e baixa penetrabilidade aos íons. As adaptações da membrana são predominantemente observadas em arqueas, procariontes unicelulares que possuem composição orgânica característica (como lipídios e isoprenos) resistentes à hidrólise ácida em sua estrutura. Ademais, outro fator importante é a utilização da alta concentração de prótons (H+) no exterior da membrana pela ATP sintase para a produção eficiente de energia para a célula.

Vale notar que, além dos fatores protetores que modulam a concentração interna dos íons, tanto os acidófilos quanto os alcalófilos possuem uma maquinaria celular apropriada para proteger suas biomoléculas dos valores extremos de pH. 

Fonte geotermal em São Miguel, Azores
#ParaTodosVerem: A foto mostra uma fonte geotermal em São Miguel, Azores. Além da alta temperatura, o ambiente apresentado é acídico também. Fonte da imagem: Johnson, D.B. e Aguilera, A. (2016).

Aplicações biotecnológicas dos extremófilos

Sabendo agora que existem organismos capazes de crescer em meios extremamente ácidos ou básicos, como esse conhecimento pode ser útil para nossa sociedade? Nós já somos beneficiados com acidófilos presentes na nossa microbiota intestinal, uma vez que o suco gástrico do estômago é naturalmente ácido (pH 2), mas as duas classes de extremófilos abordadas têm o potencial de trazer novos aprimoramentos para múltiplos processos industriais.

  1. Extremozimas. Sem dúvidas, uma das principais contribuições destes extremófilos são as enzimas capazes de suportar ambientes com pH ácido ou básico. A alteração no pH é um estressor físico considerável, então enzimas cuja atividade ótima aconteça nos extremos da escala de pH são desejáveis para processos industriais que utilizam tais condições. Exemplos são: celulase resistente a ácidos para produção de biocombustível a partir de biomassa e proteases estáveis em pH alcalino para formulação de detergentes.
  2. Antibióticos. Já existem registros de metabólitos secundários isolados de uma bactéria alcalófila com atividade antibiótica, como a Naphthospironone A que apresenta atividade citotóxica.
  3. Carotenoides. Esses pigmentos também são produzidos por diferentes extremófilos, e podem ser úteis pelas suas características antioxidantes e anti-inflamatórias e por serem estáveis em situações ácidas ou básicas.
  4. Bioplásticos. O uso excessivo de plástico não biodegradável é danoso para o meio ambiente, uma vez que compostos se acumulam e nunca desaparecem da natureza. Então, a fabricação de bioplástico, polímeros derivados de biomassa e que são biodegradáveis, é essencial. Os extremófilos (especialmente os alcalófilos) têm a capacidade de produzir determinados metabólitos de alta qualidade, como o ácido lático, composto amplamente estudado na indústria de bioplásticos.

Estas são apenas algumas possibilidades de aplicação de moléculas encontradas em acidófilos e alcalófilos, dentre as incontáveis biomoléculas e metabólitos que eles produzem! 

Estudar esses microrganismos é muito curioso, por eles serem tão distintos de outros seres vivos que conhecemos; entender sua fisiologia e bioquímica ao mesmo tempo que ponderamos se podemos utilizar este conhecimento é uma parte emocionante da biotecnologia!

Perfil de Luísa Valério
Texto reviso por Sofia e Natália Videira

Cite este artigo:
FRANCA, L. V. Extremófilos Acidófilos e Alcalófilos. Revista Blog do Profissão Biotec. V. 10, 2023. Disponível: <>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências

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Fonte da imagem destacada: Pawel Czerwinski no Unsplash (editada).

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