Ao longo dos textos sobre extremófilos, vimos que condições ambientais diversas abrigam uma multiplicidade de formas de vida. No caso dos piezófilos (do grego, “piezo” para pressão e “filo” para amar), eles evoluíram para sobreviver em locais com valores elevados de pressão hidrostática.
Os piezófilos prosperam em locais, como no oceano profundo, em que a pressão pode chegar a valores 100x maiores que na altitude do nível do mar. As estratégias que eles usam para sobreviver têm grande valor tanto para a ciência básica quanto para a ciência aplicada, especialmente para a biotecnologia industrial.
Definição e efeitos da pressão hidrostática
Antes de explicarmos as modificações que os piezófilos adquiriram no decorrer de sua evolução, vamos entender o conceito de pressão hidrostática. Explicando o conceito por partes, “pressão” é definida como a força exercida perpendicularmente em determinada área, e “hidrostática” se refere ao estudo da mecânica de fluidos (materiais deformáveis, como a água) que estão em equilíbrio estável e estático, ou seja, que estão em repouso.
De maneira simplificada, se pegarmos um ponto infinitamente pequeno do fluido, a única força que estaria atuando sobre ele seria o peso da coluna do fluido acima. Então, se uma pessoa está no nível do mar, a pressão atuando nela seria a de uma atmosfera, ou cerca de 0,1 MPa (Mega Pascal, unidade de pressão do Sistema Internacional). À medida que a pessoa desce em direção ao fundo do mar ou ao centro da crosta terrestre (a subsuperfície), o peso da coluna aumenta e, consequentemente, a pressão hidrostática.
A pressão é um parâmetro crucial para o estudo da vida. O estresse celular causado por alta pressão hidrostática (HHP, sigla do inglês high hydrostatic pressure) pode ocasionar alterações citológicas nas biomoléculas e nos processos celulares, que inviabilizam o crescimento celular e causam a morte de microorganismos.
Exemplificando o que ocorre na célula, a fluidez da membrana celular é negativamente afetada e compromete tanto a estrutura quanto a permeabilidade da célula; o aumento da pressão modifica a conformação das biomoléculas, assim como suas interações; e também ocorrem dissociação/desagregação e desnaturação de complexos proteicos .
Um dos principais efeitos da variação da pressão é a consequente variação do volume, que altera o equilíbrio de diversas reações bioquímicas cruciais para a sobrevivência da célula. Portanto, os piezófilos possuem determinadas modificações evolutivas que evitam e superam esse tipo de estresse.
Microrganismos piezófilos
Seja no mar profundo ou na subsuperfície terrestre, os piezófilos possuem seu crescimento ótimo em ambientes com HHP. Usando o exemplo do mar profundo, cuja profundidade média é cerca de 3800m, os piezófilos sobrevivem e prosperam nesses nichos ecológicos com valores de pressão acima de 40MPa!
Vale notar que alguns microrganismos podem ser classificados como piezotolerantes, ou seja, conseguem suportar locais com maiores valores de pressão hidrostática, mas a taxa de seu crescimento é otimizada em condições de menor pressão.
O estudo de diferentes microrganismos piezófilos elucidou estratégias biológicas comuns em organismos adaptados à pressão extrema. Sendo a manutenção da fluidez da membrana celular uma delas, com o objetivo de permitir a movimentação e a interação das moléculas que a constituem. Para tal, existe uma maior proporção de ácidos graxos insaturados (compostos orgânicos base para lipídios; esta classe possui ligações duplas entre seus átomos), que diminui o empacotamento dessas moléculas e preserva as funcionalidades da membrana em ambientes de HHP. Além disso, há síntese suprarregulada de chaperonas, moléculas essenciais que auxiliam na montagem e no enovelamento correto de outras proteínas, para impedir a desnaturação e consequente perda de função das proteínas.
Por fim, algumas espécies desses extremófilos acumulam determinados compostos orgânicos, chamados piezólitos, como taurina e beta-hidroxibutirato. É especulado que tais moléculas são produzidas para contrabalancear o estresse causado em HHP ao preservar a estrutura e funcionamento de proteínas.
Aplicações biotecnológicas dos extremófilos piezófilos
Processos industriais que utilizam alta pressão hidrostática são relativamente comuns, sendo empregados na indústria alimentícia, para pasteurização e preservação de alimentos, e também na indústria farmacêutica, como na inativação de patógenos para o desenvolvimento de vacinas.
Os piezófilos e seus mecanismos adaptativos podem fornecer uma nova percepção de condições com HHP, além das características desses extremófilos possibilitarem a aprimoração de procedimentos industriais. Alguns exemplos são:
- Extremozimas. Enzimas estáveis e capazes de suportar HHP sem perda de função podem ser importantes para diversos processos industriais, como o processamento de alimentos. Amilases, peptidases e hidrolases resistentes à pressão e que utilizam pouca energia são alguns exemplos de enzimas de piezófilos com potencial utilidade.
- Lipídios. Como os piezófilos possuem maior quantidade de ácidos graxos insaturados em suas membranas, tanto as enzimas da rota bioquímica quanto os próprios lipídios podem ser alvos de estudo para a ciência básica e para aplicações industriais das moléculas e de enzimas adaptadas, como citado no tópico anterior.
Notou que a lista é pequena? Isso se deve ao fato de que o cultivo em laboratório desses microrganismos ainda é difícil, sendo necessárias condições especiais de pressão para o estudo apropriado de piezófilos. Entretanto, análises in silico (estudos e simulações feita em computador) de bancos de dados são meios que podemos usar para superar esse desafio.
Além disso, a engenharia genética de não-piezófilos pode ser uma alternativa para estudar os efeitos da HHP e para o desenvolvimento de novos produtos e processos industriais em condições de alta pressão. E desta forma, ampliar ainda mais as aplicações biotecnológicas para esses microrganismos.
Cite este artigo:
FRANCA, L. V. Extremófilos e biotecnologia: conhecendo os microrganismos piezófilos. Revista Blog do Profissão Biotec. V. 10, 2023. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/extremofilos-biotecnologia-conhecendo-microrganismos-piezofilos/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
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Fonte da imagem destacada: Crystal Kwok no Unsplash.