Psicrófilos são uma classe de organismos extremófilos, e vivem em temperaturas gélidas graças à evolução de qualidades adaptativas.

Ambientes frios (abaixo de 5ºC) cobrem cerca de 80% da biosfera terrestre e são, à primeira vista, ecossistemas isolados e escassos de vida. Isto é uma noção errônea, já que os psicrófilos conseguem sobreviver e proliferar nessas regiões atípicas! Do grego, “amante de frio”, esses extremófilos colonizam os locais gélidos do planeta e evoluíram mecanismos adaptativos robustos.

Como já vimos nesta série de textos com os radioresistentes e os halófilos, todo habitat da superfície terrestre pode abrigar vida! A biologia dos extremófilos desafia as nossas percepções sobre o que é uma região habitável. 

No presente texto, veremos como as espécies de organismos que sobrevivem nesses nichos ecológicos podem trazer informações e produtos valiosos para nossa sociedade.

Sobre os efeitos de temperaturas baixas 

Segundo o pesquisador norte-americano James A. Coker, “como seres humanos, tendemos a olhar o mundo sob nossa perspectiva e, por sua vez, as condições sob as quais nossa espécie se desenvolve como ‘normais’ e ‘típicas’ para o planeta Terra; no entanto, isso está muito longe da verdade.”

Cada organismo tem uma temperatura ideal para o funcionamento normal de seu metabolismo e outros processos fisiológicos; portanto, métodos de preservação do calor são necessários para lidar com as variações externas.

Mas por que a temperatura é um fator tão limitante? Para entender isso, vamos pensar a nível celular.

Antigo pergelissolo Ártico
Antigo pergelissolo Ártico. Foto de Katia Orlinski. #ParaTodosVerem:  Fonte: National Geographic Brasil

Dentro das células, inúmeras reações e processos metabólicos diferentes estão ocorrendo, que requerem condições físico-químicas específicas para funcionarem. 

Equação de Arrhenius, em que os termos significam: k= constante de velocidade de reação; Ea= energia de ativação; R= constante dos gases; T= temperatura; e= base de logaritmos naturais; A= frequência de colisões de moléculas.

A equação acima, chamada de equação de Arrhenius, nos mostra que a temperatura é um fator relevante para a velocidade de reações químicas. Sendo assim, a diminuição da temperatura compromete a termodinâmica e a velocidade de reações químicas da célula e, por conseguinte, o metabolismo: o DNA não estará estável e não será transcrito e nem traduzido; e as proteínas perdem a função por não estarem com enovelamento correto.

Precisamos lembrar que a água é o solvente onde ocorrem essas reações celulares, e ela tem um ponto de fusão (congelamento) característico. Em temperaturas próximas de zero, há a formação de cristais de gelo, que são deletérios para a célula ao induzir a morte celular via ruptura da membrana celular. Além disso, a baixa temperatura também influencia negativamente a fluidez da membrana citoplasmática, componente essencial da integridade celular. 

Portanto, ambientes com temperaturas baixas infligem condições extenuantes cujos psicrófilos devem superar a fim de sobreviverem.

Microrganismos psicrófilos

Há exemplos de psicrófilos em todos os domínios da vida: bactéria, archaea e eukarya. O habitat ideal desses organismos varia; o espectro de temperatura abrange temperaturas abaixo de 15ºC até -20ºC.

A nossa espécie consegue viver tranquilamente em localidades frias no mundo (Rússia e Canadá, por exemplo) com o auxílio de fatores externos: vestuário adequado e casas adaptadas que possuem aquecimento e conservam o calor.  Porém, os organismos psicrófilos necessitam da temperatura fria para viver e se reproduzir. Alguns dos habitats que podemos encontrar psicrófilos são: criosfera (regiões cobertas permanentemente por neve e gelo; geleiras), lagos polares (ártico e antártico) e alpinos, oceano profundo e pergelissolo.

Como eles sobrevivem às adversidades impostas pelos ambientes que habitam? Os psicrófilos têm múltiplos mecanismos adaptativos que foram selecionados para conciliar seus metabolismos com o habitat.

Uma modificação importante é a composição da membrana plasmática. A fim de manter a integridade celular,  há maior concentração de ácidos graxos polinsaturados e pigmentos carotenoides (importantes para aumentar a fluidez da membrana), além de síntese de transportadores que absorvem nutrientes eficientemente.

A adaptação das proteínas é crucial. Considerando que, em baixas temperaturas, a velocidade das reações é drasticamente afetada, os psicrófilos apresentam enzimas com estruturas mais flexíveis. Desta maneira, elas se mantêm ativas mesmo com os desafios de desnaturação proteica e reações demoradas.

Por fim, esses organismos têm que superar o desafio imposto pelos cristais de gelo. Para evitar o dano estrutural da célula causado por esses cristais, há o acúmulo de solutos que diminuem o ponto de fusão do citoplasma, e também há produção de moléculas protetoras contra o congelamento, que impedem a formação dos cristais.    

Aplicações biotecnológicas dos extremófilos psicrófilos

Depois de aprender sobre as estratégias de sobrevivência dos psicrófilos, é possível perceber algumas qualidades que podem ser proveitosas para a ciência e para a indústria. Abaixo, seguem alguns exemplos de biomoléculas desses organismos com possíveis aplicações para nossa sociedade:

  1. Extremozimas. Uma das moléculas com maior potencial são as enzimas termoestáveis dos psicrófilos, capazes de diminuir o consumo de energia em diferentes processos. Um exemplo é a enzima Antarctic Phosphatase (New England Biolabs Inc.), utilizada para clonagem e outras técnicas de biologia molecular. Ademais, as extremozimas são aplicáveis em diferentes indústrias, como:
    1. Alimentícia: A capacidade catalítica das enzimas pode ser útil na estabilização de vinhos, na remoção de lactose e na diminuição da viscosidade de materiais durante o processamento de alimentos.
    2. Limpeza: Formulação de detergentes e diminuição do consumo de energia em lavagens a frio.
    3. Farmacêutica: Agentes antibacterianos e antifúngicos, fármacos anticâncer e catalisadores de reações/processos de síntese de fármacos.
    4. Biorremediação: Degradação de poluentes (óleo, por exemplo) e tratamento de resíduos de águas em condições gélidas.
    5. Bioenergética: Produção eficiente e com custo-benefício de biodiesel.
  2. Conservantes e protetores: As moléculas que protegem os psicrófilos de cristais de gelo podem ser de grande valia como crioprotetores e preservantes em procedimentos de estoque. A trehalose, por exemplo, é um açúcar essencial para a regulação e proteção contra congelamento e estresse osmótico; essa molécula pode ser utilizada, por exemplo, para a criopreservação de células

Um longo caminho a frente

Pelo fato de que os psicrófilos são adaptados à baixas temperaturas, eles nos apresentam uma visão diferenciada quanto a vida e a sobrevivência.

O potencial biotecnológico dos mecanismos adaptativos é considerável, uma vez que tanto a ciência básica quanto a aplicada se beneficiam com a adequação ao frio. Mais estudos da natureza dos psicrófilos são necessários para compreender o escopo real de possibilidades; mas até lá, nós nos mantemos maravilhados com a biologia dos extremófilos!

Perfil de Luisa Franca
Texto revisado por Tayna Costa e Natália Videira

Cite este artigo:
FRANCA, L. V. Extremófilos e biotecnologia: conhecendo os microrganismos psicrófilos. Revista Blog do Profissão Biotec. V. 10, 2023. Disponível: <https://profissaobiotec.com.br/extremofilos-biotecnologia-conhecendo-microrganismos-psicrofilos/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

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Fonte da imagem destacada:  Arie Wubben em Unsplash.

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