Genoma Mitocondrial: conheça a pesquisa de brasileiros sobre a evolução das raias que mudaram da água salgada para água doce

Pesquisadores brasileiros compararam mutações no genoma mitocondrial de raias neotropicais que deixaram a água salgada e conquistaram a água doce.

Por Vinícius Nunes Alves 

Provavelmente você já ouviu falar em genoma alguma vez na escola ou na mídia. Genomas são como grandes bibliotecas internas que um ser vivo carrega e os livros são os conjuntos de genes que estão dentro do núcleo das células em organismos eucariontes. Esses genes modulam o crescimento, a  morfologia e o comportamento das espécies. Mas você sabia que existe uma organela celular que apresenta seu próprio genoma? Essa organela é a mitocôndria. A mitocôndria é considerada a usina elétrica da célula por ser responsável pela produção de energia, que é crucial para o funcionamento celular. A produção de energia celular é um processo complexo que depende da atuação de diversos genes que se encontram no genoma mitocondrial, também chamado de mitogenoma. Diferente do genoma nuclear, o genoma mitocondrial  é circular, em geral pequeno e não se condensa em formato de cromatina (similar ao observado nos cromossomos). Além disso, o genoma mitocondrial sofre mutações em uma taxa que permite compreender a relação de parentesco entre espécies e populações, sendo muito utilizado em estudos das áreas de evolução e conservação. 

Pesquisador do Instituto Butantan, em parceria com pesquisadores da Universidade Federal do Acre (UFAC) e do Instituto de Biociências de Botucatu (IBB) da UNESP, desenvolveram a primeira análise comparativa que abrange o genoma mitocondrial de raias de água doce neotropicais. O estudo recém-publicado na renomada Molecular Genetics and Genomics tem o título “Signatures of positive selection in the mitochondrial genome of neotropical freshwater stingrays provide clues about the transition from saltwater to freshwater environment”. Em tradução livre, significa “Assinaturas de seleção positiva no genoma mitocondrial de raias de água doce neotropicais fornecem pistas sobre a transição de água salgada para ambiente de água doce”, o que já entrega boa parte do conteúdo para os pesquisadores da área. Talvez pareça complexo ou específico demais para quem não é especialista, mas com interesse e abertura para o novo, a leitura fica mais acessível do que se imagina e no final você vai aprender mais uma descoberta na biologia. 

Nesta entrevista para o Profissão Biotec, o biólogo, geneticista e bioinformata Pedro Gabriel Nachtigall – também primeiro autor do estudo e representante do Butantan – explica o que é genoma mitocondrial e outras informações curiosas sobre a pesquisa. 

Como entender as assinaturas de um genoma? 

Pedro: “Ao longo do processo evolutivo de uma espécie ou população, o genoma pode sofrer mutações em resposta a estímulos externos que podem melhorar o fitness dos indivíduos da espécie, ou seja, o genoma pode sofrer mutações benéficas que facilitam a sobrevivência da espécie. Nesses casos, essas mutações genômicas são mantidas ao longo das gerações e podem ser identificadas ao comparar o genoma de espécies próximas e distantes. Essas análises comparativas revelam quais mutações estão associadas a processos evolutivos específicos, que nos ajudam a contar a história evolutiva de uma espécie e, por isso, são consideradas assinaturas.”

Pedro Gabriel Nachtigall
Pedro Gabriel Nachtigall, primeiro autor do estudo e fonte da entrevista. Também realiza estudos genômicos sobre evolução de venenos em serpentes no Instituto Butantan.

Basicamente, vocês sequenciaram e caracterizaram o mitogenoma de uma espécie de raia (Potamotrygon falkneri)  de água doce, que pertence à sub-família Potamotrygoninae. raias desse grupo são, atualmente, os únicos elasmobrânquios que se adaptaram a viver exclusivamente em ambientes de água doce. Para quem não sabe ou não se lembra, elasmobrânquios são animais aquáticos que possuem esqueleto composto por cartilagem, como os tubarões e raias. Pode explicar melhor como foram feitas as análises do estudo? 

Pedro: Nós comparamos os mitogenomas dessa espécie de raia (P. falkneri) que sequenciamos com os mitogenomas de outras duas espécies pŕoximas, também da sub-família Potamotrygoninae, e de outras 57 espécies de elasmobrânquios. Essa análise comparativa revelou que as raias de água doce possuem um mitogenoma similar às raias do grupo Dasyatidae de água salgada, o que indica uma relação de parentesco entre elas, ou seja, que são parentes próximos. Essa análise comparativa também revela que o genoma mitocondrial de todas as raias possui um padrão de organização altamente conservado, ou seja, os genes se encontram na mesma ordem em todas as espécies de raias analisadas. Uma analogia interessante para entender isso, seria dizer que o seu quarto e os de todos os seus colegas possuem o  mesmo tamanho, com os mesmos móveis e todos na mesma disposição.

Vocês elucidaram uma semelhança no mitogenoma de raias de água doce e de água salgada, e ainda identificaram um certo padrão de organização dos genes entre todas essas espécies de raias. Isso reforça que raias de água doce e de água salgada compartilharam uma história  longínqua e parecida, mas o estudo de vocês não se resumiu a isso, e sim também pelo reconhecimento de  elementos genéticos que começaram a distinguir as raias que iriam dominar a água doce. Pode contar essa novidade melhor?

Pedro: O fato curioso é que algumas regiões do mitogenoma das espécies de água doce apresentam alguns genes com mutações que ajudam a entender o processo de adaptação à uma vida em ambiente de água doce. E isso também é inesperado para nossa área. Devido à importância da mitocôndria para a biologia celular, o mitogenoma é considerado uma região em que mutações tendem a surgir ao acaso, mas que não costumam afetar o fitness da espécie. Entretanto, as assinaturas detectadas nas raias de água doce revelaram que mutações foram selecionadas para melhorar a capacidade de produção de energia em resposta à troca de um ambiente de água salgada para uma vida em um ambiente de água doce. Essa mudança de ambiente acarretou em alterações necessárias no mitogenoma para ajustar a eficiência de produção de energia nessas espécies de água doce. Além disso, essas mutações também podem ter sido mantidas para um controle mais efetivo da produção de elementos oxidativos, que são danosos às células. Ambientes de água doce possuem uma maior quantidade de oxigênio, em comparação à água salgada, e essa exposição a uma maior quantidade de oxigênio pode ter aumentado excessivamente a produção desses elementos oxidativos nas raias de água doce. Isso deve ter estimulado mutações no mitogenoma dessas raias que permitiram um controle da produção desses elementos oxidativos no novo ambiente.

Qual foi o diferencial do estudo de vocês para chegar nesses achados?

Pedro: Os achados deste artigo só foram possíveis porque não se trata apenas de um estudo para caracterizar o genoma mitocondrial de uma espécie ou compreender a relação entre as espécies, mas também entender os processos moleculares necessários para a transição de um ambiente salgado para um ambiente de água doce. Ou seja, compreender a história contida no genoma das espécies.

Pesquisas como essa sobre genomas de mitocôndrias podem desvendar mutações ocorridas em genes chave de organismos que já existiam no planeta muito antes de nós. Como Pedro destaca, “Mutações podem servir como evidências de uso de hábitat e como adaptações necessárias que permitiram a sobrevivência de espécies atuais. Na evolução biológica as adaptações são geralmente lentas, ao longo de gerações, e são fundamentais para o sucesso da espécie em determinado ambiente”. 

Se você tem interesse por essas questões, vale procurar mais textos de divulgação científica dentro das áreas de evolução molecular e genômica. E para quem já está respirando esse ambiente acadêmico, pode acessar o artigo do Pedro e colaboradores em: https://link.springer.com/article/10.1007/s00438-022-01977-0.

Vinícius Nunes Alves (autor da entrevista)

Licenciado e Bacharel em Ciências Biológicas pela UNESP/IBB.  Mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU/Inbio. Especialista em Jornalismo Científico pela UNICAMP/Labjor. É membro colaborador do Blog Natureza Crítica – divulgação científica em meio ambiente. Foi Professor Substituto na subárea Filosofia da Ciência da UNESP/IBB. Atua como Professor de Ciências na Prefeitura de Botucatu e como colunista do jornal Notícias Botucatu.  

Pedro Gabriel Nachtigall (fonte da entrevista)

Biólogo pela UENP, mestre e doutor em Genética pela UNESP, onde também já foi pesquisador assistente. É pós-doutor pelo Instituto de Matemática e Estatística da USP. Desde 2019 é pesquisador de pós-doutorado do Instituto Butantan e atualmente está em intercâmbio de pesquisa na Universidade Estadual da Flórida (Florida State University). Tem experiência e projeção internacional na pesquisa científica, sobretudo nas áreas de Bioinformática, Biologia Molecular e Evolução.    

Cite este artigo:
ALVES, V. N. Revista Blog do Profissão Biotec. V. 10, 2023. Disponível em:<>.  Acesso em: dd/mm/aaaa.

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