Uma criatura capaz não só de sobreviver à radiação, mas se beneficiar dela. Um organismo muito antigo. Um ser (quase) indestrutível e com habilidades incríveis. Estamos falando de quem?
Se você pensou no Godzilla em resposta às perguntas anteriores, bem… Você acertou. Porém, um organismo com habilidades tão surpreendentes não existe apenas na ficção.
Entre os cenários improváveis para o desenvolvimento da vida, estão aqueles caracterizados por elevados níveis de radiação. Entretanto, sabemos da existência de microrganismos extremófilos, capazes de resistir às condições adversas e ambientes inóspitos. E, acredite, há bactérias e fungos que não apenas toleram a radiação ou compostos radioativos, mas também os aproveitam para sua sobrevivência.
E mais, esses microrganismos adaptados à radiação podem ser aplicados a favor da saúde humana e ambiental. Confira a seguir.
Estrela do Guinness Book, o livro dos recordes
Deinococcus radiodurans, cujo nome significa “estranha baga que suporta radiação”, está listada no Guinness Book, o livro dos recordes, como a bactéria mais “durona” do mundo.
Deinococcus radiodurans, o organismo mais resistente à radiação conhecido. Fonte: Michael Daly/Genome News Network
#PraTodosVerem: na micrografia, há várias células microbianas esféricas de cor esverdeada, agrupadas em tétrades, com fundo amarelo.
Além de tolerar a radiação ionizante em níveis centenas de vezes maiores que os suportados por seres humanos, a D. radiodurans é, ainda, resistente à seca e escassez de nutrientes. E aí, é merecedora do título ou não?
A Deinococcus radiodurans foi descoberta há mais de 60 anos, em amostras de carne moída enlatada. O produto havia sido submetido à radiação gama, em um nível 250 vezes superior ao necessário para matar células de Escherichia coli. Surpreendentemente, as células da D. radiodurans estavam viáveis.
Mais tarde, a resistência à radiação foi associada à capacidade da D. radiodurans de reconstituir seus genomas (há entre 4 e 10 cópias por célula) após terem sido ‘quebrados’ em centenas de pedaços. A bactéria é capaz de regenerar o genoma com elevada fidelidade e em apenas algumas horas.
Recentemente, a lista de habilidades extraordinárias da D. radiodurans foi incrementada. A bactéria sobreviveu durante um ano fora da Estação Espacial Internacional e tolerou, além das radiações cósmica galáctica e solar ultravioleta, vácuo, frio extremo, dessecação e microgravidade. Segundo a equipe responsável pelo estudo, da Universidade de Viena (Áustria), esses resultados auxiliam na compreensão sobre mecanismos e processos pelos quais a vida pode existir fora da Terra. Literalmente, uma grande viagem, não?
Biorremediação
Além de tolerar a radiação, existem microrganismos capazes de transformar compostos radioativos, como o urânio. À medida que essas substâncias radioativas são assimiladas, são convertidas a formas que apresentam menor risco ao ambiente e aos organismos vivos.
Por exemplo, as bactérias do gênero Geobacter produzem filamentos proteicos que agem como minúsculos cabos elétricos. Em contato com urânio solúvel, esses “fios” produzem descargas elétricas e ativam uma série de reações que culminam na produção de energia para as células da bactéria. Em contrapartida, o urânio é “aprisionado” em uma forma mineral insolúvel, e o material radioativo é impedido de se espalhar pelo ambiente.
Além disso, esses microrganismos produzem “esponjas” moleculares que podem absorver urânio. Essas descobertas indicam que a Geobacter poderia ser aplicada para a captura e remoção de urânio e, possivelmente, de outros metais de matrizes complexas como águas poluídas.
Fungos também podem ser aplicados para a biorremediação de áreas contaminadas por compostos radioativos. Por exemplo, esses organismos são capazes de transformar urânio empobrecido em minerais quimicamente estáveis.
O urânio empobrecido (urânio 238) é um resíduo do processo de “enriquecimento”, isto é, da separação do urânio 235 do urânio natural. O urânio 238 é radioativo, embora em menor nível que o urânio 235, e pode causar danos à saúde humana e ambiental.
Várias espécies de fungos foram observadas crescendo sobre áreas contaminadas com urânio empobrecido. À medida que fungos estendem suas hifas sobre locais em que o urânio empobrecido está presente, essa substância é convertida a formas menos danosas para organismos vivos.
Exploração do espaço e prospecção de novas moléculas
Após o acidente nuclear de Chernobyl, ocorrido em 1986, pesquisadores descobriram fungos crescendo nas paredes de um reator destruído da usina nuclear abandonada. Curiosamente, esses organismos cresciam em direção às fontes de radiação, como se fossem atraídos por ela.
Anos mais tarde, descobriu-se que esses fungos produzem grandes quantidades de melanina, o mesmo pigmento encontrado na nossa pele. Nesses microrganismos, a melanina parece absorver a radiação e convertê-la em energia para o crescimento microbiano.
Para aprender mais sobre esses organismos, amostras de oito espécies descendentes dos fungos de Chernobyl foram enviadas para a Estação Espacial Internacional, em 2016. Os pesquisadores responsáveis esperavam que, sob as condições adversas do espaço, esses organismos produzissem novas biomoléculas, que poderiam ser exploradas em benefício da humanidade. A prospecção de biomoléculas produzidas por esses organismos radiorresistentes ainda está em curso, mas o sequenciamento dos respectivos genomas indica a potencial produção de metabólitos de interesse biotecnológico ou industrial.
Além disso, os mecanismos utilizados por esses fungos para se proteger dos danos causados pela radiação podem ser “imitados” ou estimulados e auxiliar os seres humanos em sua jornada de exploração do espaço.
Desenvolvimento de vacinas
Lembra da Deinococcus radiodurans, organismo capaz de causar inveja até no próprio Godzilla? Aqui está ela novamente, dessa vez como fonte de inspiração para o desenvolvimento de vacinas.
Quando expostos à radiação, extremófilos como a D. radiodurans protegem as proteínas de reparo do DNA, e não o DNA em si. Para proteger as proteínas que realizam o reparo celular, a D. radiodurans produz enzimas que dependem do íon manganês (Mn2+) e que apresentam atividade antioxidante.
Pesquisadores perceberam, então, que poderiam utilizar compostos antioxidantes associados ao manganês para o desenvolvimento de vacinas. Para a produção de vacinas inativadas, por exemplo, o agente patogênico é submetido à radiação ionizante, e seu DNA ou RNA é inativado. Assim, esse agente deixa de ser infeccioso. Por outro lado, se tratados previamente com antioxidantes dependentes de manganês, as estruturas e peptídeos da superfície do patógeno se mantêm íntegros e, por sua vez, podem ser reconhecidos e combatidos pelo sistema imune.
A produção de vacinas frequentemente depende de um longo processo de tentativa e erro para determinar quais estruturas e peptídeos do patógeno geram melhores respostas do sistema imune. Já a alternativa inspirada na D. radiodurans permite desenvolver vacinas inativadas, que podem utilizar o agente patogênico inteiro, com todas as estruturas que possivelmente geram resposta imune preservadas.
Assim, a produção das vacinas seria mais rápida e envolveria menores custos. Vacinas contra o vírus Chikungunya e o vírus da encefalite equina venezuelana, produzidas por meio desse novo processo, foram testadas em camundongos e apresentaram resultados promissores.
Esses são apenas alguns exemplos de microrganismos tolerantes à radiação, e diversas outras espécies com habilidades notáveis existem. De “limpadores” de áreas contaminadas a inspiradores da busca por novos horizontes, os microrganismos extremófilos não param de nos surpreender. À medida que desvendarmos seus mistérios, novas aplicações biotecnológicas surgirão, e a adaptabilidade da vida nos mostrará, ainda mais, sua beleza.
Cite este artigo:
LATOCHESKI, E. C. Do Guinness Book à inspiração para vacinas: microrganismos extremófilos e radiação. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em:<https://profissaobiotec.com.br/guinness-book-inspiracao-para-vacinas-microrganismos-extremofilos/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
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