Do Guinness Book à inspiração para vacinas: microrganismos extremófilos e radiação

Microrganismos tolerantes à radiação podem ser utilizados para aplicações biotecnológicas como biorremediação e produção de biomoléculas.

Uma criatura capaz não só de sobreviver à radiação, mas se beneficiar dela. Um organismo muito antigo. Um ser (quase) indestrutível e com habilidades incríveis. Estamos falando de quem?

Godzilla
Microrganismos e Godzilla: separados por uma história de ficção (e por muitas ordens de grandeza de tamanho). Fonte: Ruchanozpınar, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons. #PraTodosVerem: pôster do filme “Godzilla II: Rei dos Monstros”, de 2019. No centro da imagem, Godzilla está de pé. Sua cabeça está levantada para o alto e um raio azulado e brilhante sai de sua boca. Ao seu redor, destroços caem. Helicópteros voam ao fundo.

Se você pensou no Godzilla em resposta às perguntas anteriores, bem… Você acertou. Porém, um organismo com habilidades tão surpreendentes não existe apenas na ficção. 

Entre os cenários improváveis para o desenvolvimento da vida, estão aqueles caracterizados por elevados níveis de radiação. Entretanto, sabemos da existência de microrganismos extremófilos, capazes de resistir às condições adversas e ambientes inóspitos. E, acredite, há bactérias e fungos que não apenas toleram a radiação ou compostos radioativos, mas também os aproveitam para sua sobrevivência.

E mais, esses microrganismos adaptados à radiação podem ser aplicados a favor da saúde humana e ambiental. Confira a seguir.

Estrela do Guinness Book, o livro dos recordes

Deinococcus radiodurans, cujo nome significa “estranha baga que suporta radiação”, está listada no Guinness Book, o livro dos recordes, como a bactéria mais “durona” do mundo.

Microrganismos
Deinococcus radiodurans, o organismo mais resistente à radiação conhecido. Fonte: Michael Daly/Genome News Network. #PraTodosVerem: na micrografia, há várias células microbianas esféricas de cor esverdeada, agrupadas em tétrades, com fundo amarelo.

Deinococcus radiodurans, o organismo mais resistente à radiação conhecido. Fonte: Michael Daly/Genome News Network 

#PraTodosVerem: na micrografia, há várias células microbianas esféricas de cor esverdeada, agrupadas em tétrades, com fundo amarelo.

Além de tolerar a radiação ionizante em níveis centenas de vezes maiores que os suportados por seres humanos, a D. radiodurans é, ainda, resistente à seca e escassez de nutrientes. E aí, é merecedora do título ou não?

A Deinococcus radiodurans foi descoberta há mais de 60 anos, em amostras de carne moída enlatada. O produto havia sido submetido à radiação gama, em um nível 250 vezes superior ao necessário para matar células de Escherichia coli. Surpreendentemente, as células da D. radiodurans estavam viáveis.

Mais tarde, a resistência à radiação foi associada à capacidade da D. radiodurans de reconstituir seus genomas (há entre 4 e 10 cópias por célula) após terem sido ‘quebrados’ em centenas de pedaços. A bactéria é capaz de regenerar o genoma com elevada fidelidade e em apenas algumas horas.

Recentemente, a lista de habilidades extraordinárias da D. radiodurans foi incrementada. A bactéria sobreviveu durante um ano fora da Estação Espacial Internacional e tolerou, além das radiações cósmica galáctica e solar ultravioleta, vácuo, frio extremo, dessecação e microgravidade. Segundo a equipe responsável pelo estudo, da Universidade de Viena (Áustria), esses resultados auxiliam na compreensão sobre mecanismos e processos pelos quais a vida pode existir fora da Terra. Literalmente, uma grande viagem, não?

Biorremediação

Além de tolerar a radiação, existem microrganismos capazes de transformar compostos radioativos, como o urânio. À medida que essas substâncias radioativas são assimiladas, são convertidas a formas que apresentam menor risco ao ambiente e aos organismos vivos.

Por exemplo, as bactérias do gênero Geobacter produzem filamentos proteicos que agem como minúsculos cabos elétricos. Em contato com urânio solúvel, esses “fios” produzem descargas elétricas e ativam uma série de reações que culminam na produção de energia para as células da bactéria. Em contrapartida, o urânio é “aprisionado” em uma forma mineral insolúvel, e o material radioativo é impedido de se espalhar pelo ambiente.

Além disso, esses microrganismos produzem “esponjas” moleculares que podem absorver urânio. Essas descobertas indicam que a Geobacter poderia ser aplicada para a captura e remoção de urânio e, possivelmente, de outros metais de matrizes complexas como águas poluídas.

Bactérias
Bactérias do gênero Geobacter (os bastonetes da micrografia) absorvem urânio por meio de “esponjas” moleculares. Então, “empacotam” esse metal em vesículas revestidas de lipopolissacarídeos (os pequenos pontos luminosos da imagem). Essas vesículas são liberadas, e as células bacterianas podem absorver mais urânio e continuar o processo. Fonte: Morgen Clark/MSU Today. #PraTodosVerem: na micrografia, há seis células bacterianas, em formato de pequenos bastões na cor marrom claro, com um fundo marrom escuro. Ao redor delas, há pequenas esferas, que correspondem às vesículas produzidas e liberadas por esses organismos.

Fungos também podem ser aplicados para a biorremediação de áreas contaminadas por compostos radioativos. Por exemplo, esses organismos são capazes de transformar urânio empobrecido em minerais quimicamente estáveis. 

O urânio empobrecido (urânio 238) é um resíduo do processo de “enriquecimento”, isto é, da separação do urânio 235 do urânio natural. O urânio 238 é radioativo, embora em menor nível que o urânio 235, e pode causar danos à saúde humana e ambiental. 

Várias espécies de fungos foram observadas crescendo sobre áreas contaminadas com urânio empobrecido. À medida que fungos estendem suas hifas sobre locais em que o urânio empobrecido está presente, essa substância é convertida a formas menos danosas para organismos vivos.

Exploração do espaço e prospecção de novas moléculas

Após o acidente nuclear de Chernobyl, ocorrido em 1986, pesquisadores descobriram fungos crescendo nas paredes de um reator destruído da usina nuclear abandonada. Curiosamente, esses organismos cresciam em direção às fontes de radiação, como se fossem atraídos por ela.

Anos mais tarde, descobriu-se que esses fungos produzem grandes quantidades de melanina, o mesmo pigmento encontrado na nossa pele. Nesses microrganismos, a melanina parece absorver a radiação e convertê-la em energia para o crescimento microbiano. 

Para aprender mais sobre esses organismos, amostras de oito espécies descendentes dos fungos de Chernobyl foram enviadas para a Estação Espacial Internacional, em 2016. Os pesquisadores responsáveis esperavam que, sob as condições adversas do espaço, esses organismos produzissem novas biomoléculas, que poderiam ser exploradas em benefício da humanidade. A prospecção de biomoléculas produzidas por esses organismos radiorresistentes ainda está em curso, mas o sequenciamento dos respectivos genomas indica a potencial produção de metabólitos de interesse biotecnológico ou industrial.

Além disso, os mecanismos utilizados por esses fungos para se proteger dos danos causados pela radiação podem ser “imitados” ou estimulados e auxiliar os seres humanos em sua jornada de exploração do espaço. 

Desenvolvimento de vacinas

Lembra da Deinococcus radiodurans, organismo capaz de causar inveja até no próprio Godzilla? Aqui está ela novamente, dessa vez como fonte de inspiração para o desenvolvimento de vacinas.

Quando expostos à radiação, extremófilos como a D. radiodurans protegem as proteínas de reparo do DNA, e não o DNA em si. Para proteger as proteínas que realizam o reparo celular, a D. radiodurans produz enzimas que dependem do íon manganês (Mn2+) e que apresentam atividade antioxidante

Pesquisadores perceberam, então, que poderiam utilizar compostos antioxidantes associados ao manganês para o desenvolvimento de vacinas. Para a produção de vacinas inativadas, por exemplo, o agente patogênico é submetido à radiação ionizante, e seu DNA ou RNA é inativado. Assim, esse agente deixa de ser infeccioso. Por outro lado, se tratados previamente com antioxidantes dependentes de manganês, as estruturas e peptídeos da superfície do patógeno se mantêm íntegros e, por sua vez, podem ser reconhecidos e combatidos pelo sistema imune.

A produção de vacinas frequentemente depende de um longo processo de tentativa e erro para determinar quais estruturas e peptídeos do patógeno geram melhores respostas do sistema imune. Já a alternativa inspirada na D. radiodurans permite desenvolver vacinas inativadas, que podem utilizar o agente patogênico inteiro, com todas as estruturas que possivelmente geram resposta imune preservadas. 

Assim, a produção das vacinas seria mais rápida e envolveria menores custos. Vacinas contra o vírus Chikungunya e o vírus da encefalite equina venezuelana, produzidas por meio desse novo processo, foram testadas em camundongos e apresentaram resultados promissores.

Seringa
O modo como a bactéria Deinococcus radiodurans se protege dos danos causados pela radiação inspirou o desenvolvimento de um processo rápido e barato para a produção de vacinas inativadas. Fonte: Pixabay. #PraTodosVerem: na fotografia, é mostrada uma seringa com uma agulha sobre uma superfície. A seringa contém líquido.

Esses são apenas alguns exemplos de microrganismos tolerantes à radiação, e diversas outras espécies com habilidades notáveis existem. De “limpadores” de áreas contaminadas a inspiradores da busca por novos horizontes, os microrganismos extremófilos não param de nos surpreender. À medida que desvendarmos seus mistérios, novas aplicações biotecnológicas surgirão, e a adaptabilidade da vida nos mostrará, ainda mais, sua beleza.

Texto revisado por Darling Lourenço e Bruna Lopes

Cite este artigo:
LATOCHESKI, E. C. Do Guinness Book à inspiração para vacinas: microrganismos extremófilos e radiação.  Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em:<https://profissaobiotec.com.br/guinness-book-inspiracao-para-vacinas-microrganismos-extremofilos/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências:

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Fonte da imagem destacada: Unsplash.

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