Matéria-prima, substratos e resíduos: entenda o cenário de como a biotecnologia planeja mudar a economia tradicional e se tornar uma das armas mais promissoras contra as mudanças climáticas.

Como qualquer indústria, a biotecnologia depende das matérias-primas como um componente fundamental do seu funcionamento. Estes materiais foram e continuarão a ser presentes em qualquer revolução tecnológica e industrial, desde o séc. XVIII com o carvão mineral até as fontes renováveis atuais. 

O petróleo, o carvão e o gás natural são as três fontes mais utilizadas na matriz energética atual (representando 34%, 27% e 24% da matriz, respectivamente). Já o uso de fontes renováveis vem crescendo desde 2008, porém ainda é baixo. Em 2018,  representou apenas 4% no total da matriz energética global conforme levantamento da British Petroleum. O uso de matérias-primas e fontes energéticas não-renováveis desde o início da revolução industrial vem causando, por parte do homem, graves impactos com consequências ambientais e climáticas em escala global, aponta o IPCC. Nossas tecnologias e prioridades precisam mudar se quisermos evitar uma catástrofe ambiental: precisamos migrar para a bioeconomia. 

O petróleo se mantém como combustível mais utilizado na matriz energética com 37%. Carvão é o segundo maior, mas perde participação em 2018 representando 27%, o menor nível em 15 anos. A participação do gás natural aumentou para 24% de modo que a diferença entre o carvão e o gás natural foi reduzida para três pontos percentuais. A contribuição da hidroeletricidade e energia nuclear se manteve relativamente estável em 2018 em 7% e 4%, respectivamente. Um forte crescimento empurrou a contribuição dos renováveis para 4%, logo abaixo da energia nuclear. Traduzido de  BP Statistical Review of World Energy 2019.

O desafio é grande, mas não impossível. Em 2016, o Brasil, através do congresso nacional, se comprometeu a cumprir o acordo de Paris que estipula a redução de 37% nos níveis de emissão de gases do efeito estufa até 2025 comparado ao ano de 2005. Reutilizar, reciclar e reduzir é importante, mas dificilmente resolveremos a crise climática desta maneira – aproveito para indicar o excelente vídeo do canal Kurzgesagt sobre. Infelizmente , não estamos fazendo a lição de casa, ao invés de reduzir a emissão de gases estamos aumentando.

As mudanças se fazem necessárias e estamos atrasados. Precisamos migrar para uma economia voltada à baixa emissão de gases e com grande participação de materiais e tecnologias biológicas, a chamada bioeconomia. Indo ao encontro desta tendência, a biotecnologia, e em especial a Engenharia Metabólica, busca avanços técnico-científicos que permitam viabilizar fontes renováveis para a substituição de processos tradicionalmente feitos a partir de fontes não renováveis. O objetivo é aumentar a participação dos bioprocessos dentro da atividade industrial contribuindo para a sustentabilidade do setor. 

1ª geração: substratos simples

A natureza da matéria-prima muitas vezes determina ou pelo menos influência em muitos aspectos produtivos de uma transformação industrial como eficiência, escalabilidade, custos, logística e, não menos importante, a sustentabilidade. 

Em bioprocessos, o metabolismo heterotrófico  é mais comumente utilizado para a maioria dos processos industriais, ou seja, a fonte energética também é fonte de carbono para o microrganismo. O uso de uma mesma matéria-prima para essas duas funções, muitas vezes, simplifica etapas do desenvolvimento e otimização do bioprocesso. Essa estratégia normalmente resulta em maiores taxas de crescimento e produtividade dos microrganismos, o que muitas vezes auxilia o processamento/purificação (downstreaming) do produto e possui relativa facilidade no escalonamento.

 Atenção: neste artigo vamos abordar somente os bioprocessos mais modernos e onde há um impacto na bioeconomia, então aquela coalhada da sua avó, cerveja artesanal do seu amigo hipster ou o seu Kefir ficarão de fora, ok?

 Existem diversos exemplos de bioprocessos que utilizam fontes de carbono de fácil consumo para o microrganismo. Essas fontes são majoritariamente carboidratos como a glicose, mas também podem ser ácidos graxos, aminoácidos ou combinações destas fontes. Neste tipo de bioprocesso, o catabolismo da linhagem cultivada possui boa capacidade de aproveitamento, pois são moléculas comuns que participam do metabolismo primário da grande maioria dos seres vivos. Alguns destes bioprocessos são:

  • Produção de etanol a partir do caldo de cana (sacarose) por Saccharomyces cerevisiae (a famosa levedura de pão e cerveja) em biorrefinarias brasileiras, ou a partir de milho (frutose) nos EUA, mas mais recentemente no Brasil também.
  • Produção de goma xantana a partir de diversos carboidratos por bactérias do gênero Xantomonas.
  • Produção de 1,3-propanodiol a partir de glicose por Escherichia coli, uma patente da DuPont
  • Produção de insulina humana recombinante a partir de glicose ou glicerol em Escherichia coli geneticamente modificada.
  • Produção de enzimas recombinantes como DNA polimerase, enzimas de restrição, proteases para uso em diagnóstico e pesquisa. 
Destilaria de etanol a partir de cana-de-açucar. Fonte: Mariordo, Wikimedia commons .

Os bioprocessos heterotróficos que utilizam fontes de carbono simples como os citados acima já estão bem consolidados no mercado: as indústrias já dominam o processo produtivo e os clientes validam os custos dos produtos ao adquiri-los. São os bioprocessos de 1ª geração.

 Apesar de serem bem consolidados, estes substratos possuem um desafio inerente que é a competição com o seu uso na indústria de alimentos, e portanto, representam conflito de interesses. Essa competição pela oferta desses materiais acaba, por vezes, em aumentar os custos destes substratos.

2ª geração: substratos complexos

Produtos que possuem alto valor agregado como medicamentos justificam o uso de substratos mais nobres (substratos de 1ª geração, soro fetal bovino, etc), mais purificados e que, portanto, aumentam os custos de operação do bioprocesso, o OPEX (operational expenditure). No entanto, à medida que os esforços são realizados para chegar a novos produtos com valor agregado menor, substituindo o uso das fontes não renováveis, a margem de um bioprocesso economicamente viável fica cada vez mais estreita, de maneira que, se faz necessário a busca de uma fonte de carbono de custo cada vez menor. 

A fronteira atual da inovação na bioeconomia encontra-se na utilização eficiente de resíduos agroindustriais para diminuir a contribuição dos custos da matéria-prima dentro do produto, são os chamados bioprocessos  de 2º geração. Isso quer dizer que a viabilização do uso de resíduos pode tornar economicamente viável determinado bioprocesso. É o que fez a Raizen com o processo de produção de etanol de segunda geração, este utiliza a palha e o bagaço da cana-de-açúcar como substratos. 

Os resíduos agroindustriais são frequentemente uma mistura de macromoléculas de difícil degradação pelos microrganismos, possuem dificuldade de caracterização, variação na composição dependendo da origem, planta ou tecido vegetal e também podem conter inibidores de crescimento. Os resíduos mais comuns são provenientes de biomassa vegetal como bagaço, palha, cascas, etc. É na composição dessa biomassa que entram principalmente os biopolímeros que são constituintes desses tecidos vegetais como a celulose, a pectina, a lignina, a hemicelulose, entre outros.

Representação da parede celular vegetal. Fonte: Traduzido  de Flint e colaboradores, 2012.

Existem abordagens simples ou elaboradas para lidar com a complexidade dos resíduos. As mais simples são a prospecção de linhagens naturalmente boas degradadoras do substrato e produtoras do produto de interesse. É um tiro no escuro, pode ser possível isolar uma linhagem que seja uma boa produtora nessas condições, mas essa abordagem se limita a produtos que sejam naturalmente produzidos pelo metabolismo do hospedeiro. 

Já as abordagens mais complexas, envolvem modificações genéticas dos microrganismos: seja através da (i) inserção de genes que expressam enzimas de degradação da biomassa em um hospedeiro produtor, ou (ii) de genes de biossíntese do produto em um hospedeiro naturalmente adaptado para degradação da biomassa. 

O bioprocesso perfeito não exist…

Microrganismos que obtêm  a sua fonte de carbono de moléculas inorgânicas (autotróficos), como microalgas que usam CO2, ainda são pouco utilizados dentro da indústria para bioprocessos. No entanto, apesar de possuírem produtividades menores, as fermentações envolvendo autotrofia possuem saldo global negativo para emissão de carbono, o que é de grande interesse para capturar gases do efeito estufa. 

Exemplo de fotobiorreator utilizado para o cultivo de microalgas. Fonte: Eva Decker, Wikimedia commons .

Por exemplo, o estudo de algas fotossintetizantes é promissor para a produção de lipídeos, estima-se que a produtividade/área cultivada é de 10 a 100 vezes maior que a da agricultura. A fermentação de compostos C1 (moléculas de um carbono) como o Syngas (uma mistura de dióxido e monóxido de carbono e hidrogênio), metano, metanol, formiato e dióxido de carbono também vem atraindo cada vez mais interesse de empresas como LanzaTech, Mango Materials, Cargil, etc. Uma vez que o carbono inorgânico é integrado ao metabolismo central dos microrganismos diversos produtos podem ser produzidos através desses substratos como etanol, 1,3-propanodiol, acetona, isopropanol, entre outros. 

Apesar de possuírem as vantagens citadas acima, os bioprocessos envolvendo fixação de carbono são de alta dificuldade técnica e demandam muita pesquisa e desenvolvimento até serem competitivos com os bioprocessos mais comuns e tornarem-se comercialmente viáveis. Porém, dadas as vantagens inerentes a estes bioprocessos, é atualmente, um campo de pesquisa em grande expansão.

E agora?

Vimos que, de fato, os bioprocessos são importantíssimos para contribuir para um modelo de sociedade mais sustentável através da bioeconomia. Para a biotecnologia tornar-se cada vez mais impactante dentro de uma demanda global por redução drástica de impactos ambientais, a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação são essenciais. 

Este texto faz parte da série sobre Engenharia Metabólica. Confira os demais conteúdos da série neste link.

Texto escrito por: Lucas Garbini Cespedes é bacharel em ciências biológicas e mestre em biotecnologia pela USP, atuou principalmente no desenvolvimento de linhagens microbianas e regulação gênica para consumo de resíduos para a produção de moléculas de interesse industrial. Atualmente é pesquisador no Instituto Senai de Inovação em Biossintéticos.

Texto revisado por Caroline Salvati e Ísis Biembengut

Referências Bibliográficas:
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FLINT, Harry J et al. “Microbial degradation of complex carbohydrates in the gut.” Gut microbes vol. 3,4 (2012): 289-306. doi:10.4161/gmic.19897
GREENWELL, HC., LAURENS LM., SHIELDS RJ., LOVITT RW., FLYNN KJ. Placing microalgae on the biofuels priority list: a review of the technological challenges. J R Soc Interface. 2010;7(46):703-726. doi:10.1098/rsif.2009.0322
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STOLLBO, Katharina., BOUKIS, Nikolaos., SAUER, Jorg. SYNGAS Fermentation to Alcohols: Reactor Technology and Application Perspective. Chemie Ingenieur Technik, [s. l.], v. 92, p. 125-136, 2020. DOI 10.1002/cite.201900118. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/cite.201900118. Acesso em: 19 jan. 2021.

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