Variações genéticas no DNA fazem com que nosso sistema imunológico responda de forma diferente aos agentes invasores.

Você já deve ter observado que nem todos respondem da mesma forma a uma infecção. Daí vem a pergunta: “Por que algumas pessoas são mais suscetíveis que outras, levando em consideração a mesma exposição ambiental ao agente infeccioso?”. Os pesquisadores já sabem que as variações no DNA (ácido desoxirribonucléico) dos seres humanos podem influenciar na suscetibilidade ou resistência às doenças, reações alérgicas, rejeição de transplantes e respostas às vacinas.

Dupla hélice do DNA
Dupla hélice do DNA imersa em citocinas pró-inflamatórias.
#ParaTodosVerem: dupla hélice DNA de cor azul clara, com o centro róseo-avermelhado, onde se encontram gotículas redondas, que remetem aos mediadores químicos do sistema imunológico. Fonte: https://www.istockphoto.com/

Compreendendo a imunogenética

O sistema imunológico é responsável por defender nosso corpo contra bactérias, fungos, vírus e parasitos invasores, realizando a função de reconhecer e combater os agentes estranhos. Mas nem todos respondem da mesma forma a um agente invasor, pois as variações presentes na sequência do DNA podem tornar o indivíduo mais suscetível ou mais resistente a um determinado patógeno.

A imunogenética busca elucidar a influência da genética na resposta imunológica. Isso pode ser justificado porque as proteínas do sistema complemento, os anticorpos (que também são proteínas), os receptores de reconhecimento de agentes invasores e os outros componentes do sistema imunológico são produzidos a partir das informações genéticas presentes no DNA. O exemplo mais clássico da imunogenética é o sistema sanguíneo ABO, cuja produção dos diversos anticorpos e antígenos é determinada pelos genes de cada indivíduo.

As variações na imunidade dos seres humanos têm causas ambientais (50%) e genéticas (30-40%). A base genética do sistema imunológico pode ajudar a compreender as diferentes respostas ao mesmo agente infeccioso, os fatores genéticos associados às vias imunológicas normais, as variantes que resultam em “defeitos” imunológicos e as influências genéticas nas respostas imunomediadas.

As principais alterações genéticas que interferem na resposta imune ocorrem nos genes MHC (Major Histocompatibility Complex), que em humanos são chamados de HLA (Human Leukocyte Antigens), que são os mais polimórficos em seres humanos e codificam proteínas de defesa clássicas encontradas nas células humanas. As moléculas do MHC ficam localizadas na superfície celular e têm a função de apresentar antígenos às células de defesa.

A imunidade e o DNA

O Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) tem a capacidade de assumir o controle da maquinaria celular, ao inserir seus genes nas células humanas para fugir do sistema imune e infectar novas células. Um exemplo de como a presença de variações no genoma humano pode influenciar na resposta contra um agente infeccioso é a variante Δ32 no gene CCR5, que confere resistência aos indivíduos que são infectados pelo HIV.

Os GWAS (Estudos de Associação Genômica Ampla) têm demonstrado diversas associações de SNPs (Single Nucleotide Polymorphisms) com respostas imunes múltiplas. Um GWAS que analisou a relação entre a infecção, progressão da doença e o histórico de pacientes em diferentes cenários, associou polimorfismos nos genes ABCB1, TGFB1 e XRCC1 com a suscetibilidade à infecção pelo HAV (Hepatitis A Virus), vírus causador da hepatite A, em americanos descendentes de mexicanos.

Em relação à tuberculose, pode ser citado o SNP rs73226617 que está associado com a progressão precoce da tuberculose em algumas populações. O SNP rs9272785 no gene HLA-DQA1 foi associado ao início precoce da doença em indivíduos entre 20 a 40 anos de idade.

Durante a pandemia da COVID-19 (Coronavirus Disease 2019), pôde-se encontrar indivíduos “super imunes” que tiveram contato com pacientes infectados, como os trabalhadores da saúde, e nunca apresentaram resultados positivos nos testes. Acredita-se que esses indivíduos possuam variantes genéticas que codificam tipos raros do receptor ACE2, que impedem a aderência e entrada do vírus na célula.

Imunogenética e as doenças autoimunes

As doenças autoimunes são causadas pela combinação de fatores ambientais e genéticos. Alterações na sequência do DNA podem originar doenças autoimunes. A ocorrência de mutações nos genes que codificam as moléculas HLA, pode fazer os linfócitos T perderem a capacidade de reconhecimento e passarem a atacar os componentes do próprio organismo.

A presença do SNP rs2476601 no gene PTPN22 resulta na formação de uma proteína defeituosa, que está fortemente associada ao lúpus eritematoso sistêmico, uma doença cujos próprios anticorpos antinucleares atacam múltiplos órgãos. Existem diversos polimorfismos imunogenéticos do tipo “Repetição em Tandem de Número Variável (VNTR)” em mais de vinte genes HLA associados à predisposição ao desenvolvimento da diabetes mellitus do tipo 1, onde ocorre a destruição das células beta do pâncreas, por anticorpos produzidos pelo sistema imunológico do próprio indivíduo.

Autoanticorpos
Autoanticorpos codificados por variações presentes no DNA.
#ParaTodosVerem: registro de anticorpo em formato da letra Y, de cor azul e amarelo com outros anticorpos desfocados no plano de fundo com diferentes tons da cor azul e branca. Fonte: https://www.istockphoto.com/

Aplicações da imunogenética

A imunogenética é extremamente importante para verificar a compatibilidade de órgãos entre o doador e o receptor, para evitar que “ataques” do sistema imunológico provoquem a rejeição do tecido/órgão transplantado. Nesse contexto, as variações genéticas nos genes HLA, tornam difícil encontrar um doador compatível com um receptor, como por exemplo, a compatibilidade de medula óssea. Existem diversos tipos de moléculas HLA, sendo as mais importantes: HLA-A, HLA-B, HLA-C, HLA-DR e HLA-DQ.

As variações imunogenéticas também interferem na ocorrência de reações alérgicas a um composto externo. Um exemplo é o alelo HLA-B*57:01, que está presente em 5 a 8% dos portadores do HIV e é capaz de predizer a resposta ao abacavir, um medicamento capaz de inibir a replicação do HIV-1 e HIV-2. O teste do HLA-B*57:01 é recomendado na bula do abacavir pelo FDA (Food Drug and Administration) nos Estados Unidos e seu uso é contraindicado para indivíduos com este alelo. O intuito é prevenir as reações alérgicas, que podem comprometer a vida, após a ingestão do abacavir.

Outra resposta imunomediada que pode comprometer um tratamento farmacológico, está associada com a presença do alelo HLA-B*5801. Indivíduos portadores deste alelo têm risco de desenvolver reação alérgica ao alopurinol, um medicamento usado para o tratamento de hiperuricemia, sendo recomendado, em alguns países, a realização do teste genético para examinar a presença deste polimorfismo antes do indivíduo iniciar o uso do alopurinol e verificar a possibilidade de usar um medicamento alternativo.

A Síndrome de Stevens-Johnson, uma reação alérgica grave aos medicamentos, possui alguns polimorfismos genéticos associados a sua manifestação: HLA-B*1502 com o uso de carbamazepina, fenitoína e lamotrigina; HLA-B*5901 com o uso de metazolamida; HLA-B*7301 com o uso de anti-inflamatórios não esteroidais da categoria dos oxicans; e HLA-B*3802 com o uso de sulfametoxazol.

Células de defesa defendendo o organismo de um agente invasor.
Células de defesa defendendo o organismo de um agente invasor.
#ParaTodosVerem: células em formato redondo de cor azul clara com flagelos que estão segurando o agente invasor que tem formato redondo, superfície descontínua e cor azul. Fonte: https://www.istockphoto.com/

Exames imunogenéticos

Com o avanço da ciência e tecnologia, técnicas como o Sequenciamento do Genoma Humano, Reação em Cadeia da Polimerase em Tempo Real, SNP-array, sequenciamento do transcriptoma (RNASeq), têm contribuído com a genômica e tornou possível associar os SNPs com os diferentes desfechos das doenças. Os estudos de GWAS são exemplos de que as alterações de única base estão associadas à diversidade imunológica.

A tipagem de HLA é um exame imunogenético amplamente realizado em laboratórios de análises clínicas para verificar a compatibilidade entre o doador e o receptor, evitando ataque e destruição do órgão/tecido transplantado. Em alguns casos pode ser feita a análise de quimerismo, que quantifica a porcentagem de DNA do próprio indivíduo e do doador, no sangue, para monitorar a evolução do transplante.

Variações nas respostas às vacinas

As respostas imunes às vacinas também não são uniformes, e sabe-se que o desenvolvimento de vacinas contra muitas doenças não obtém sucesso por diversos fatores (idade, sexo, etnia, qualidade do antígeno, número de dose(s), via de administração e variabilidade genética). Os estudos de imunogenética no campo das vacinas, investigam a variabilidade genética nos genes HLA do hospedeiro para prever a resposta imune vacinal, a falta dela e até mesmo se existe algum risco associado ao desfecho imunológico causado pela vacina.

Variantes encontradas nos genes HLA classe I e II foram associadas a diferentes respostas à vacina contra o sarampo, conforme informa a tabela abaixo.

Classe HLAAleloAssociação
Classe IHLA-B*8, B*13, B*44, DRB1*03 e DQA1*0201Baixos níveis de anticorpos contra o Morbillivirus
Classe IIHLA-DRB1*03 e DQA1*0201
Classe IHLA-B*7Altos níveis de anticorpos contra o Morbillivirus
Classe IIDQA1*0104 e DPA1*0202

Fonte: Haralambieva et al., 2013.

O desenvolvimento da vacina contra a malária teve grandes dificuldades devido a elevadas variações genéticas em regiões codificadoras de células apresentadoras de antígenos e de células produtoras de citocinas. Uma análise em genes HLA classe I e II, revelou alelos associados com diferentes respostas à vacina Mosquirix, conforme informa a tabela abaixo.

Classe HLAAleloAssociação
Classe IHLA-A*01 e HLA-B*08Efeitos protetores da vacina contra malária (mosquirix)
Classe IIHLA DRB1*15/16
Classe IHLA-A*03 e HLA-B*53Diminuição da eficácia da vacina contra malária (mosquirix)
Classe IIHLA DRB1*07

Fonte: Haralambieva et al., 2013.

Vírus com DNA fita dupla capaz de infectar as células.
Vírus com DNA fita dupla capaz de infectar as células.
#ParaTodosVerem: estruturas virais redondas, transparentes, com dupla hélice de DNA no interior vermelhas, com espículas na superfície da membrana. Fonte: https://www.istockphoto.com/

Pesquisas e desafios

Neste texto, foi visto que diversas variações imunogenéticas estão relacionadas à produção de anticorpos, de antígenos, ou com a interação entre eles e que a presença dessas variantes no genoma humano pode influenciar, na suscetibilidade às doenças, na progressão da infecção, na resistência a um agente invasor, na quantidade de células imunes e na expressão de proteínas envolvidas na resposta imune.

Mas é importante ressaltar que ainda são necessárias mais pesquisas e avanços tecnológicos para realizar novas descobertas e elucidações sobre a influência das variações genéticas na diversidade de respostas do sistema imunológico. Isso possibilitará avanços na medicina de precisão, utilizando-se de diagnósticos e tratamentos personalizados e desenvolvimento de vacinas mais eficazes para populações específicas, visto que a mesma variante pode ter implicações clínicas distintas, em diferentes populações.

No Brasil existe a Rede Brasil de Imunogenética, onde os pesquisadores de todo o país somam esforços para desenvolver trabalhos científicos que estudam os fatores genéticos envolvidos na resposta imune, bem como, descobrir SNPs de interesse imunogenético, determinar a frequência populacional desses SNPs e pesquisar genes imunorrelevantes.

Perfil de Karwhory
Texto revisado por Arthur Enrici e Fabiano Abreu

Cite este artigo:
SILVA, K. W. L. Imunogenética: a imunidade que vem do seu DNA! Revista Blog do Profissão Biotec, v. 11, 2024. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/imunogenetica-imunidade-seu-dna>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

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