Você já sentiu um incômodo ao assistir a um documentário ou filme sobre civilizações antigas quando os cientistas envolvidos abrem sarcófagos milenares como se abrissem um armário qualquer em casa, sem equipamentos de segurança? Poderia este ato, aparentemente descuidado, invocar alguma ‘maldição da múmia’, despertando microrganismos e doenças desconhecidas?
A resposta é: provavelmente não. Embora o risco de infecção e desenvolvimento de doenças causadas pelos microrganismos que tenham permanecido nesses corpos mumificados seja baixo (e o porquê é explicado neste ‘fio’ do Podcast Microbiando), esses micróbios antigos podem guardar evidências preciosas.
Graças aos métodos utilizados ou condições ambientais favoráveis que possibilitavam a mumificação artificial ou natural de corpos humanos, muitos microrganismos constituintes da microbiota dos indivíduos mumificados foram também preservados. Então, com a utilização de técnicas moleculares modernas, é possível recuperar e analisar o material genético desses organismos. Por meio de microscopia e de outras técnicas de produção de imagens, como a tomografia, também podemos observar esses micróbios habitando órgãos ou tecidos específicos do corpo da múmia, dependendo do seu estado de conservação. Mas que tipo de conhecimento as informações sobre esses microrganismos antigos podem gerar?
Evolução da resistência em patógenos e desenvolvimento de novos antibióticos
Os microrganismos encontrados nas múmias ajudam, por exemplo, no entendimento sobre a evolução de patógenos que nos assolam ainda hoje. Um estudo publicado em 2017 revelou que bactérias presentes na microbiota intestinal de múmias do Império Inca com mais de 1.000 anos apresentavam resistência à maioria dos antibióticos utilizados hoje em dia. Curiosamente, esses antibióticos foram desenvolvidos apenas nos últimos 100 anos. Logo, a análise dos genomas das bactérias encontradas nas três múmias incas dos séculos 11-15 AEC (a. C.) indica que genes codificando a resistência a antibióticos já estavam presentes no microbioma intestinal humano antes mesmo de produzirmos essas drogas industrialmente e as utilizarmos em larga escala.
A comparação entre os resistomas (a coleção de genes de resistência) das bactérias encontradas em múmias antigas e daquelas presentes na microbiota dos atuais humanos pode ajudar na compreensão de como a resistência a certos antibióticos se desenvolveu, quais os fatores determinantes para o desenvolvimento da resistência e quais as contribuições do atual uso indiscriminado de antibióticos para a seleção de microrganismos resistentes. Isso, por sua vez, pode ser útil para o desenvolvimento de novos antibióticos capazes de driblar a resistência bacteriana e combater mais eficazmente doenças infecciosas.
História evolutiva de microrganismos e reconstrução de eventos de migração humana
As múmias e sua microbiota também permitem conhecer mais sobre os movimentos de migração humana, como mostra o exemplo a seguir. Em 1991, uma múmia de 5.300 anos foi encontrada nos Alpes italianos. A múmia de Ötzi, o Homem de Gelo, como foi chamado, foi descongelada anos mais tarde, e amostras do seu conteúdo estomacal e intestinal foram analisadas. Os pesquisadores responsáveis descobriram que Ötzi havia sido infectado pela bactéria Helicobacter pylori, microrganismo presente em metade da população mundial atualmente e frequentemente associado à gastrite e úlceras.
A H. pylori é utilizada como marcador para rastrear movimentos populacionais e o sequenciamento do genoma da bactéria encontrada nas entranhas da múmia mostrou que pertence a uma linhagem diferente da predominante atualmente na Europa, último continente habitado por Ötzi. A análise genômica e a reconstrução da história evolutiva da bactéria indicam ainda que teria ocorrido uma migração de pessoas portadoras da H. pylori da África para a Europa após a morte de Ötzi, dando início à hibridização que resultou na população bacteriana prevalente na Europa hoje. Estes resultados ajudaram, por fim, a corroborar o acontecimento de uma possível onda migratória entre a África e a Europa nos últimos milhares de anos e preencher uma lacuna na história demográfica humana.
Microrganismos parasitas em fósseis e compreensão sobre mecanismos de desenvolvimento de doenças
Não somente múmias humanas são objetos de estudo. Fósseis também podem armazenar seres microscópicos preservados. Um caso emblemático foi a descoberta inédita, por pesquisadores brasileiros, de um parasita sanguíneo no interior de ossos de um titanossauro encontrado em São Paulo. O parasita possivelmente provocou um quadro de osteomielite aguda no animal. A doença teria causado muita dor e provocado deformidades em seu corpo, motivo pelo qual o dinossauro estudado foi apelidado de ‘dino zumbi’ pela equipe de cientistas.
A partir de análises de microscopia, tomografia e biopsias realizadas no tecido fossilizado, a equipe conseguiu elucidar a evolução da osteomielite, doença que acomete ainda hoje pessoas e animais. O entendimento sobre a evolução da osteomielite, por sua vez, é importante para a Medicina moderna, pois leva à maior compreensão sobre a doença e potencialmente facilita a busca por tratamentos mais eficientes.
E onde entra a Biotecnologia nessa história? Essas pesquisas envolvem interdisciplinaridade e contemplam diversas áreas de estudo que estão abrangidas pela Biotecnologia, como Microbiologia, Biologia Molecular, Bioinformática, Patologia e Parasitologia. Há até mesmo promissores campos de estudo em pleno desenvolvimento, especializados em investigações que utilizam modernas técnicas para desvendar mistérios antigos: alguns exemplos são a Arqueogenética e a Paleomicrobiologia.
Felizmente, a maldição da múmia e zumbis dinossauros não são reais (ou, pelo menos, ainda não têm comprovação científica…). A presença de microrganismos preservados em múmias e fósseis está, inclusive, longe de ser uma ‘maldição’. Ao recuperar e estudar esses microrganismos antigos, a Ciência tem muito a contribuir para a saúde humana e de outros animais, desvendando, em seus mistérios ocultos, respostas para questões e males que nos afetam no presente.
Cite este artigo:
LATOCHESKI, E. Maldição da múmia e dinossauros zumbis? Como microrganismos antigos podem ajudar a resolver questões atuais. Revista Blog do Profissão Biotec, v. 8, 2021. Disponível em:<https://profissaobiotec.com.br/maldicao-mumia-microrganismos-antigos-problemas-atuais/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.