Não é de hoje que nós, Homo sapiens, gostamos de sentar em um sofá confortável e descansar após um longo dia de trabalho. Mas, apesar do nosso cotidiano cada vez mais sedentário, a capacidade de correr longas distâncias está codificada em nossos genes há alguns milhões de anos.
Um estudo recente em ratos mostrou como um fragmento de DNA pode ter sido responsável por tornar nossos ancestrais em maratonistas, nos dando a resistência necessária para fugir de predadores, explorar territórios mais distantes e, eventualmente, conquistar o mundo.
“Essas são evidências realmente convincentes” – disse Daniel Lieberman, um biólogo evolucionista especializado em humanos da Universidade de Harvard, o qual não estava envolvido no trabalho. “É uma ótima peça do quebra-cabeça sobre como humanos se tornaram tão bem sucedidos” – continuou.
Se considerarmos o mundo primitivo onde nossos ancestrais viviam, é difícil imaginar como eles sobreviveram frente a predadores da savana, das selvas e de intempéries severas. Ainda assim, somos a espécie mais bem sucedida do planeta.
Há décadas já se sabe que possuímos 98% do nosso DNA idêntico aos dos nossos primos chimpanzés. E como é bem fácil perceber, não foi nossa habilidade de subir em árv
ores que garantiu a sobrevivência da espécie. Uma das primeiras características que nos diferenciou dos primatas foi maneira particular com que nossos ancestrais caçavam suas presas.
Acredita-se primeiros hominídeos faziam uso de uma estratégia conhecida como caça de resistência, onde os caçadores perseguem suas presas até que estas estejam exaustas e não consigam mais fugir. Assim, nossos ancestrais não precisavam depender de força bruta ou explosões de agilidade para caçar.
A habilidade de correr longas distâncias provavelmente foi decisiva considerando como o clima do planeta mudou há 3 milhões de anos atrás. Com áreas florestais secando, e a savana tomando conta, a mobilidade se tornava cada vez mais importante.
Essa transição climática coincide com algumas mudanças esqueléticas nos registros fóssies que podem ter ajudado os primeiros hominídeos a tornar essas corridas possíveis, como pernas mais longas. Alguns outros autores ressaltam a importância de alterações que melhoraram a dissipação de calor destes corredores, ao exemplo da perda de pelos e da expansão de glândulas sudoríparas.
Quando consideramos o aspecto molecular, cientistas ainda têm dificuldades para encontrar as diferenças celulares e genéticas que nos garantiram tamanha resistência, como confirmou Herman Pontzer, um antropólogo evolutivo da Universidade de Duke, Carolina do Norte, em entrevista para a Science.
Algumas décadas atrás surgiu os primeiro suspeito, quando Ajit Varki, da Universidade de San Diego (UCSD) e colegas descobriram uma das primeiras diferenças genéticas que nos separam dos macacos: um gene chamado CMP-Neu5Ac Hidroxilase (CMAH).
Outros primatas têm este gene completo, o que os ajuda a produzir uma molécula de açúcar chamada ácido siálico, localizada na membrana da célula. Enquanto isso, humanos possuem uma versão defeituosa deste gene, portanto, não produzem o açúcar. Desde então, Varki já publicou trabalhos demonstrando o envolvimento do ácido siálico na inflamação e na resistência à malária.
Em seu último estudo, Varki e colaboradores averiguaram a importância do gene CMAH para os músculos e para a habilidade de correr, já que ratos com algum tipo de distrofia muscular tinham um quadro pior caso não tivessem esse gene.
Para tal, ratos com a versão normal do gene CMAH e a quebrada (semelhante a dos humanos) foram postos para correr em pequenas esteiras. Os músculos da perna foram examinados cuidadosamente antes e depois de correrem diferentes distâncias, alguns depois de duas semanas e outros depois de 1 mês. Após um período de treinamento, os ratos com a versão quebrada do CMAH correram a um passo 12% mais rápido e distâncias 20% mais longas do que os outros ratos.
Foi observado que os ratos com a versão humana do gene apresentavam maior resistência muscular à fadiga e mais capilares ramificados nos músculos das pernas. Quando os pesquisadores isolaram as fibras musculares em uma placa, elas continuaram se contraindo por muito mais tempo do que as dos outros ratos.
Os músculos dos ratos “humanizados” também conseguiram usar oxigênio de maneira mais eficiente. Mesmo assim, a equipe não sabe dizer como a molécula de açúcar afeta a resistência, uma vez que ela realiza várias funções dentro da célula.
Muito provavelmente esse mesmo tipo de mudança beneficiou nossos ancestrais há 2 – 3 milhões de anos atrás. No entanto, “ratos não são humanos, ou primatas”, ressaltou Jason Kamilar, também em entrevista para Science. “Os mecanismos genéticos em ratos não necessariamente se traduzem para humanos ou outros primatas” – continuou.
De qualquer maneira, este estudo se mostra promissor em identificar uma das mudanças genéticas que realmente causaram essas diferenças nos corpos dos humanos ancestrais. Se considerarmos a importância que um defeito gênico em apenas um gene representa para toda uma evolução, este trabalho realmente demonstra que ainda há muito a ser explorado na antropologia evolutiva.
E pensando ainda que 98% do nosso genoma é idêntico aos dos chimpanzés, você já se perguntou quais dos nossos genes nos fazem humanos?