“Certa vez, uma estudante perguntou à antropóloga Margaret Mead: “Qual é o primeiro sinal de civilização?” A estudante esperava que ela dissesse um pote de barro, uma pedra de amolar ou talvez uma arma. Margaret Mead pensou por um momento, depois disse: “Um fêmur curado”.
O fêmur é o osso mais longo do corpo, ligando o quadril ao joelho. Em sociedades sem os benefícios da medicina moderna, leva cerca de seis semanas de descanso para a cicatrização de um fêmur fraturado. Um fêmur curado mostra que alguém cuidou da pessoa ferida, fez sua caça e coleta, ficou com ela e ofereceu proteção física e companhia humana até que a lesão pudesse ser curada. O primeiro sinal de civilização é a compaixão, vista em um fêmur curado.”
Essa livre tradução da passagem que está no livro “The Best Care Possible: A Physician’s Quest to Transform Care Through the End of Life”, escrito pelo médico Ira Byock, remete não somente à história das civilizações, mas também à história da biotecnologia. E com a fala de Mead é possível até medir a distância entre essas duas ciências, e ela tem exatamente o tamanho de um fêmur. E caso você nunca tenha visto um fêmur curado, ele fica como o da foto acima, que mostra a cicatrização desse osso após um tiro.
História das ciências
Podemos começar a análise da citação pela pergunta da estudante, que lembra muito a dialética de Sócrates. Esse é considerado o pai da filosofia, a mãe de todas as ciências. A dialética era a arte do diálogo na Grécia Antiga, e para Sócrates isso significava fazer tantas perguntas em busca da verdade que, ao final de quase um interrogatório, restava ao interlocutor somente admitir a sua ignorância.
A resposta de Margaret Mead, no entanto, cala qualquer sinal de ignorância ao ponto de que talvez até Sócrates tenha se convencido de que ela atingiu a verdade absoluta. O que seria extremamente difícil para ele admitir, já que preferiu encarar a morte do que negar a virtude de suas verdades.
Em seguida, o palpite “um pote de barro, uma pedra de amolar ou talvez uma arma”, citando várias ferramentas, faz referência à engenharia, ou à tecnologia. Já a brilhante revelação de Margaret “um fêmur curado” faz referência à medicina, ou à biologia. Avançando alguns muitos anos, até os dias atuais, têm-se a consolidação da palavra biotecnologia, sendo ela a junção de “bio” de “biologia” e, pasmem, “tecnologia” de “tecnologia”.
Mas e a biotecnologia nessa história?
Apesar de ter um ar de pouca idade, a biotecnologia está presente nas sociedades há tempo o bastante para torná-la uma anciã. Há indícios de seleção de sementes para melhoria da colheita em 8.000 anos a.C. na Mesopotâmia, um dos berços da civilização. E mais uma vez a fala de Mead contempla esse duplo cenário, sem esse anônimo, que “fez a caça e coleta” do ferido, sequer imaginar que estaria dando origem à biotecnologia ou a uma civilização.
Outra boa contribuição da biotecnologia ao relato é a diminuição do tempo de “seis semanas de descanso para a cicatrização de um fêmur fraturado”. Com o avanço das técnicas de cirurgia, hoje o tempo de recuperação até o paciente ter alta e ir para casa varia de 3 a 7 dias. E antes das mãos cirúrgicas dos médicos, sempre existem as mãos sujas de talco de luva de biotecnologistas, responsáveis, entre outras funções, pelas pesquisas de kits de diagnósticos e medicamentos.
A começar pela dor. Se sentir dor hoje é ruim, imagina a milhares de anos atrás, onde ainda não existiam analgésicos. No caso de cirurgias, são usados analgésicos fortes, a maioria opióides, como a morfina, que são derivados da planta de papoula. Eles funcionam bloqueando a mensagem de dor dos nervos (receptores sensoriais) ao cérebro, e quando o cérebro deixa de receber esse aviso, a dor para.
Existem também os anti-inflamatórios não-esteróides que, além de ação analgésica, atuam inibindo a ação de uma enzima chamada ciclooxigenase (COX). Assim, esses medicamentos impedem a produção de prostaglandina, molécula responsável pela inflamação. E tal como a morfina, várias substâncias anti-inflamatórias também têm origem natural. A bioprospecção é a área da biotecnologia responsável pela busca dessas moléculas na natureza, transformando-as em produtos.
O futuro virou presente
Quanto às abordagens mais modernas para cicatrização óssea, um grupo da Universidade do Arizona nos EUA está usando uma combinação de impressão 3D e células-tronco adultas para reestruturação de fraturas que não se recuperam com os tratamentos atuais. “Conseguimos a formação óssea completa. Agora, queremos tornar esse processo de cura ainda mais rápido”, disse o Dr. Szivek, responsável pelo laboratório.
Essa abordagem de bioimpressão e medicina regenerativa se baseia na impressão de uma estrutura similar à matriz óssea com biomateriais (fosfato, cálcio, colágeno e proteínas), e depois, no preenchimento dessa estrutura com células-tronco. Células-tronco são capazes de se tornarem outros tipos celulares, e, nesse caso, reconstruir as células presentes no tecido ósseo (osteoblastos, osteócitos e osteoclastos).
E como é sempre melhor prevenir do que “cirurgiar”, a biotecnologia também está presente na prevenção de complicações. Recentemente foi aprovado aqui no Brasil o medicamento romosozumabe, um anticorpo monoclonal para o tratamento da osteoporose. Além de evitar a perda de massa óssea, ele também regenera as partes já comprometidas pela doença, evitando, assim, a fratura.
Ciências humanas ou biológicas?
Após tantos exemplos, fica evidente a presença da biotecnologia na história das civilizações, e mais ainda, como a narrativa das duas sempre foi na verdade a mesma. A própria vida de Margaret Mead é uma mistura singular de biologia e antropologia, resultando em uma das vozes mais potentes dentro e fora da academia. Ela também foi uma importante referência em temas como: feminismo, relações raciais, poluição e fome.
Chega a ser irônico dizer que o estopim da ciência, tão orgulhosamente racional, tenha se dado em algo tão passional quanto a compaixão. Mas talvez, se tornar cientista seja, acima de qualquer lógica, ser movido por paixões tão profundas que seriam capazes até mesmo de erguer civilizações inteiras.
Cite este artigo:
CÔRTES, D.A. A um fêmur de distância: a ligação da vida de Margaret Mead com a história das ciências. Revista Blog do Profissão Biotec, v.8, 2021. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/margaret-mead-historia-das-ciencias/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.