Imagine que você é uma mulher vivendo no início do século XX e é obrigada a ver sua mãe, suas tias e suas amigas terem uma gravidez atrás da outra, sem o menor controle sobre sua própria saúde. Margaret Sanger, nascida em Nova York no ano de 1879, passou por isso, e viu sua mãe morrer após a 18ª gestação aos 49 anos.
Esse evento teve grande influência sobre Margaret. Ela se tornou enfermeira obstétrica e passou a vida estudando sobre os impactos de gravidezes consecutivas em mulheres, e ajudando-as como podia, principalmente nas mais pobres.
Métodos contraceptivos usados no século XIX
Desde que se tem conhecimento sobre a forma como uma mulher engravida existem os mais diferentes métodos para evitar a gravidez. Durante o século XIX e início do século XX, alguns dos métodos mais utilizados eram coito interrompido, esponjas vaginais embebidas em quinino, diafragma de borracha e preservativos à base de intestino de animal.
A maioria desses métodos, no entanto, não era seguro do ponto de vista da saúde, nem da contracepção. Além disso, não eram acessíveis para as mulheres mais pobres. Isso fez com que houvesse uma demanda para aprimorar os métodos contraceptivos disponíveis.
Barreiras sociais para o uso dos métodos contraceptivos
Além de todas as dificuldades práticas de se evitar a gravidez, ainda existia muito preconceito envolvido nesse contexto. A igreja e as pessoas religiosas eram contra o uso dos anticoncepcionais, pois defendiam a reprodução e afirmavam que evitar a concepção, de maneira voluntária, seria um pecado.
Além disso, até mesmo feministas, que reconheciam a necessidade da mulher de limitar o tamanho das próprias famílias, acreditavam que a contracepção deveria ocorrer pela conquista da maternidade voluntária. Ou seja, a luta das feministas era a favor da autonomia da mulher dentro do casamento, pela liberdade delas de dizerem “não” às exigências sexuais de seus maridos.
A invenção da pílula anticoncepcional
Margaret Sanger teve papel chave na invenção da pílula anticoncepcional Ela convenceu Katharine McCormick, uma filantropa americana, a financiar as pesquisas do cientista Gregory Pincus sobre a pílula anticoncepcional. Gregory foi um biólogo formado pela Universidade de Cornell e conhecido por suas pesquisas em fisiologia sexual de mamíferos.
Quando Gregory foi consultado por Margaret e Katherine sobre a possibilidade de desenvolver um novo método contraceptivo, ele apostou em uma pesquisa recente que descrevia a progesterona como possível anti ovulatório. Então, após realizar alguns testes em animais, ele comprovou que repetidas injeções de progesterona realmente são capazes de inibir a ovulação.
O desafio então era encontrar uma fórmula que permitisse produzir uma pílula barata de progesterona. Isso foi possível graças à parceria estabelecida com dois laboratórios, Syntex e Searle que já vinham trabalhando em uma progesterona sintética. Pincus juntamente com John Rock, um especialista em fertilidade, iniciaram seus testes com humanos em 1956.
Finalmente no dia 18 de agosto de 1960 a primeira pílula anticoncepcional aprovada pela Food and Drug Administration (FDA) nos EUA chegou ao mercado. No entanto, devido aos já citados preconceito e desaprovação por parte da igreja e da sociedade, inicialmente a pílula não tinha indicação de contraceptivo, mas sim para aliviar os sintomas desagradáveis da menstruação.
Riscos e benefícios à saúde
Não existe nenhuma intervenção médica que não possua riscos, e com a pílula anticoncepcional não é diferente. Após o uso em larga escala muitos efeitos colaterais foram percebidos, tais como inchaço, perda da libido, dores nos seios e o mais famoso de todos, a trombose.
Mas há também muitos benefícios como o controle do ciclo menstrual, a redução das cólicas e do fluxo menstrual, além do mais importante, a eficácia na contracepção. Como destacado no início do texto, antes do advento da pílula, as mulheres sofriam com muitas gravidezes ao longo da vida, o que podia causar anemia, carência de vitaminas, parto prematuro, estiramento do útero, hemorragia após o parto, diástase abdominal, pré-eclâmpsia, ganho de peso e doenças crônicas relacionadas, como diabetes e hipertensão.
Hoje a pílula é um método contraceptivo barato, seguro e acessível e é recomendada não apenas para mulheres que desejam evitar a gravidez, mas também pode ser receitada para o controle dos sintomas da menstruação, da endometriose e da síndrome do ovário policístico. No entanto, há necessidade de acompanhamento médico para ajuste das doses e do tipo de hormônio adequado, por isso nunca inicie o uso da pílula sem consultar um ginecologista!
Avanços científicos e a pílula anticoncepcional
A primeira pílula desenvolvida por Pincus era composta de uma progesterona sintética chamada noretinodrel em combinação ao estrogênio sintético. Com o passar das décadas muita coisa mudou.
Novos hormônios foram desenvolvidos, como a drospirenona, o levonorgestrel, o etinilestradiol e o valerato de estradiol. Essas novas fórmulas permitiram a redução das dosagens hormonais (até 10 vezes menor que da pílula original), sem perder a eficácia, reduzindo significativamente os efeitos colaterais, e aumentando consequentemente sua segurança.
Também foram desenvolvidas novas formas de administração dos hormônios contraceptivos, seja na forma de adesivos cutâneos, implantes ou injeções. Essas novas formas de administração são de longa duração dispensando a necessidade do uso diário, o que reduz o índice de falha do método.
Existem também métodos hormonais de ação local, ou seja, nos quais o hormônio tem ação localizada e não depende de circulação sistêmica para agir, como é o caso do DIU (Dispositivo Intrauterino) Mirena e do anel vaginal.
Além disso, alguns métodos não hormonais estão disponíveis como o DIU de cobre, o DIU de cobre com prata, o diafragma e o mais conhecido de todos a camisinha, que é o único que também protege contra as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).
Os avanços científicos nesse sentido não param, e atualmente um novo método está sendo desenvolvido por um instituto de pesquisa na Georgia (USA). Um adesivo composto por microagulhas que liberam de maneira controlada o hormônio levonorgestrel na corrente sanguínea por pelo menos 1 mês e pode ser facilmente aplicado pela própria mulher, sem dor, sem complicações e com grande eficácia.
Benefícios sociais
Além dos benefícios à saúde, são inegáveis os benefícios sociais do uso das pílulas anticoncepcionais. Elas são de extrema importância para que as mulheres consigam limitar o crescimento de suas famílias, tendo em vista a necessidade de prover condições de vida razoáveis a todos os seus membros, o que se torna cada vez mais difícil à medida que se tem mais filhos.
A fome e a desigualdade social podem ser minimizadas com o controle de natalidade, mas não nos esqueçamos que a popularização dos métodos anticoncepcionais também surgiu de uma demanda social. Era necessário que as mulheres fossem para o mercado de trabalho após a Segunda Guerra Mundial e não se dedicassem mais apenas ao trabalho doméstico nos EUA e em outros países ocidentais.
Atualmente existem muito mais métodos contraceptivos, que são mais modernos e mais confiáveis que os existentes nos anos 1960 ou antes. Alguns são hormonais e outros não. Essa diversidade é necessária, pois permite que cada mulher, juntamente com seu médico, decida qual(is) métodos vai utilizar e se adequa melhor às suas necessidade e à sua saúde.
Esse texto tem como objetivo demonstrar a importância do advento da pílula dentro do seu contexto histórico e de como as mulheres foram impactadas por ele. É evidente que movimentos sociais, como a invenção e popularização da pílula anticoncepcional são complexos e têm origens tanto na ciência quanto nas demandas individuais e coletivas. Dessa forma, é importante apoiarmos o avanço da ciência, e o trabalho de cientistas mulheres, que tem como potencial a melhora da qualidade de vida, da saúde e do bem estar social da população.

Cite este artigo:
MEDRADES, J. P. Muito além da pílula anticoncepcional: história, ciência e luta. Revista Blog do Profissão Biotec, v. 12, 2025. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/muito-alem-da-pilula-anticoncepcional-historia-ciencia-e-luta/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências:
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