Descubra como o Projeto Sc2.0 está moldando o futuro da biotecnologia através da construção do primeiro eucarioto com genoma sintético.

A biotecnologia é uma área dinâmica e em constante evolução. Um dos projetos mais ambiciosos dentro desse campo é o desenvolvimento do primeiro eucarioto com genoma sintético. O projeto conhecido como Saccharomyces cerevisiae 2.0 abreviado como Sc 2.0 é um consórcio internacional que busca criar uma levedura cujo genoma seja totalmente sintético, prometendo inúmeras aplicações potenciais na indústria, na medicina e na pesquisa científica.

Primeiramente, para que serve um genoma?

Um genoma é o conjunto completo de instruções genéticas de um organismo, armazenado em moléculas de DNA dentro das células. Nos organismos eucariotos, como os seres humanos, esse material está organizado principalmente na forma de cromossomos lineares no interior  do núcleo celular, que nada mais são do que o DNA condensado. Por exemplo, nós possuímos um genoma diplóide composto por 46 cromossomos, herdados em 23 pares (23 da mãe e 23 do pai). Já a levedura, quando haploide, possui apenas 16 cromossomos.

Representação em forma de cariótipo haplóide do genoma humano.
Representação em forma de cariótipo haplóide do genoma humano. Nessa imagem estão representados os 22 cromossomos autossomos e os dois cromossomos sexuais X e Y. #ParaTodosVerem: Representação dos 22 cromossomos autossomos (22) e os dois cromossomos sexuais (2) humanos organizados do maior para o menor em forma de cariótipo. Cada cromossomo está com seu par homólogo, com as cores branco e preto representado a eucromatina e heterocromatina. Imagem: Kassem S.H., et al. 2012

O genoma funciona como um manual de instruções que determina todas as características e funções de um ser vivo, desde sua aparência física até seu funcionamento interno. Ele é composto por genes, que são segmentos específicos de DNA contendo informações para a síntese de proteínas ou RNAs regulatórios, além das regiões reguladoras. Essa organização complexa do genoma é essencial para a expressão correta dos traços hereditários e para o funcionamento adequado de cada organismo. Porém, essa mesma complexidade é o maior desafio na hora de sintetizar um genoma em laboratório.

Da célula ao gene. Dentro de uma célula eucariótica há seu núcleo onde estão os cromossomos
Da célula ao gene. Dentro de uma célula eucariótica há seu núcleo onde estão os cromossomos. Ampliando o cromossomo é possível enxergar estruturas como os nucleossomos e por fim a fita do DNA com o destaque para uma região codificadora de proteína, o gene. Para resumir, o cromossomo é simplesmente o DNA em sua forma mais condensada. #ParaTodosVerem: modelo representativo das estruturas do DNA, iniciando por uma célula com os cromossomos espalhados em seu núcleo. Um cromossomo é ampliado para mostrar a condensação do DNA. A fita de DNA enrolado nas histonas. Como um zoom maior é possível observar a dupla hélice e as letras representativas das bases nitrogenadas Modificado de OpenClipart-Vectors por Pixabay

Como e por que construir um genoma sintético?

Genomas sintéticos já foram construídos em organismos mais simples, como vírus e bactérias, com a montagem de DNA sintetizado em laboratório dentro de uma célula viva (ou em vírus), sendo um processo amplamente explorado. A construção de cromossomos lineares também já foi realizada sem maiores problemas. O processo consiste em ligar pequenos blocos de DNA sintetizados em laboratório, com cerca de 70 nucleotídeos (nt) – unidade básica do DNA – formando blocos cada vez maiores (como 150 nt que se unem para formar uma estrutura com  750 nt, e assim por diante), até a formação do cromossomo completo, que pode possuir milhões de nucleotídeos.

Apesar do conhecimento já acumulado, no projeto Sc2.0 os pesquisadores almejam mais do que simplesmente construir o primeiro genoma eucarioto. Eles buscam aumentar a estabilidade genômica através da remoção de estruturas repetitivas do DNA e, criar impressões digitais moleculares, chamadas de PCRtags, para identificação e rastreabilidade dessas linhagens. Essas duas características são altamente desejáveis na indústria, que demanda processos cada vez mais controlados. No entanto, o maior diferencial desse projeto é a possibilidade de recombinação estrutural dentro e entre cromossomos, utilizando uma técnica chamada de SCRaMbLE (embaralhar, em tradução livre). Esse mecanismo tem potencial para revolucionar o uso de leveduras em aplicações industriais e ampliar radicalmente nosso conhecimento sobre a estrutura da vida.

O que já foi e o que será da biotecnologia sintética?

Após mais de 15 anos de pesquisa, o projeto já alcançou a construção de todos os 16 cromossomos de forma individual, inclusive com a criação de um cromossomo totalmente novo. O desafio agora é integrá-los em um só organismo, preservando as características originais da levedura natural. O principal problema é que as múltiplas modificações inseridas podem gerar “bugs” genéticos (sim, esse é o termo científico usado) resultando em células que não crescem adequadamente ou que não conseguem sobreviver em determinados ambientes. No fim de 2023, houve um avanço significativo nesse sentido, com a publicação do sucesso na integração de 6.5 cromossomos na mesma célula, marcando a criação do primeiro organismo eucarioto com mais de 50% do genoma sintético.

Leveduras carregando um ou mais cromossomos sintéticos já foram utilizadas com sucesso para aumentar a tolerância a estressores como etanol, ácido acético (vinagre) e altas temperaturas. Além disso, essas linhagens foram aplicadas na produção de carotenoides, que são precursores da vitamina A e conferem coloração laranja a vegetais como a cenoura. Elas também mostraram potencial para produção de etanol de segunda geração, um combustível renovável essencial para combater as mudanças climáticas. Outra aplicação promissora é a utilização da linhagem final na descoberta do genoma mínimo, ou seja, o mínimo de DNA necessário para sustentar a vida eucariótica.

Em suma, o projeto Sc2.0 não apenas representa um avanço tecnológico, mas também marca uma quebra de fronteira na compreensão e manipulação da vida. Prometendo revolucionar diversas áreas industriais e científicas através das aplicações biotecnológicas derivadas desse desenvolvimento, ele demonstra o poder  da engenharia genética e abre portas para um futuro repleto de possibilidades na pesquisa e na indústria.

Ideia de biologia sintética gerada por Inteligência Artificial.
Ideia de biologia sintética gerada por Inteligência Artificial. #ParaTodosVerem: A imagem mostra um display holográfico em um laboratório de biotecnologia futurista, exibindo uma estrutura de DNA, altamente detalhada e colorida em cores neon vibrantes, destacando sua estrutura complexa. Imagem gerada pelo DALL-E através do chatGPT-4.
Texto revisado por Bruna Cardias e Fabiano Abreu

BEM, L. O Projeto Sc2.0 e o futuro da biotecnologia. Revista Blog do Profissão Biotec, v. 11, 2024. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/o-projeto-sc2-0-e-o-futuro-da-biotecnologia>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

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