Informação. Atualmente, o fluxo de informação se dá muito mais rápido do que quando comparado a, talvez, 20 anos atrás? Ou até… 5 anos atrás? Independente do período de tempo que você comparar, a resposta será “sim”. Em questão de segundos, uma busca rápida no Google gera milhões de possíveis resultados. Este aprimoramento partiu da necessidade de uma maior velocidade na busca de uma maior quantidade de informações e isso traz uma infinidade de benefícios na atualidade.
Como a ciência está completamente vinculada ao que acontece no mundo, houve também uma evolução dessa natureza em relação à quantidade de dados e velocidade durante essa busca por informações dentro de sistemas biológicos. As tecnologias foram se aprimorando e com isso, além de muitas informações e algumas respostas, como cientistas, nós conseguimos na verdade um número ainda maior de perguntas. Essas muitas perguntas são provenientes de uma fonte quase inesgotável de informação oriundas de análises de ômicas.
Ômica, em sua definição no Dicionário Inglês Oxford é: “um neologismo da língua inglesa (Omics) que informalmente refere-se a um campo de estudo em biologia que termina em -ômica, como genômica, proteômica ou metabolômica, por exemplo. Ômica visa a caracterização coletiva e quantificação de suprimentos de moléculas biológicas que se traduzem em estrutura, função e dinâmica de um organismo ou organismos.”
Para entender de fato o que é ômica é importante relembrar a base de toda a genética. A partir de um determinado gene, ou região específica no DNA, este será traduzido em RNA mensageiro e a tradução pode acontecer e originar uma proteína. Considerando um organismo, o conjunto de componentes de cada uma dessas etapas, ou seja, todos os genes, todos os RNA mensageiros e consequentemente, todas as proteínas, são estudados em diversas áreas da biologia, com enfoque desde a área de diagnósticos, até a área de biotecnologia.
Nesta área, iremos nos aprofundar na produção de etanol.
A história do Proálcool no Brasil
A energia vem sendo discutida desde a Revolução Industrial, com o aprimoramento das máquinas a vapor e dos motores. Atualmente, a maioria dos motores de automóveis (carros, motos, ônibus, caminhões e aviões) produzem movimento a partir de uma reação química conhecida como combustão, sendo que o combustível pode ser a gasolina, diesel, etanol ou querosene para aviação, enquanto o comburente é o gás oxigênio do ar. São diversos os gases gerados como subprodutos dessa reação (H2O, CO2, CO, NO2, SO2) e o uso desenfreado de combustíveis resultaram no acúmulo desses gases na atmosfera, ocasionando eventos extremos decorrentes do aquecimento global.
A maior parte dos combustíveis utilizados ao redor do mundo são de origem não-renovável como os fósseis (petróleo, carvão mineral, gás natural), sendo dessa forma, fontes finitas de energia. A interferência disso no mercado energético foi muito clara na década de 1970, quando nos vimos totalmente dependentes da alta demanda energética e os preços do barril de petróleo oscilavam absurdamente. Essa dependência preocupava. O Brasil se viu obrigado a encontrar formas de energia paralelas e, assim, nasceu um dos programas mais importantes de estímulo ao uso de etanol como combustível de automóveis, o Proálcool.
O uso do álcool combustível era vantajoso por diversos motivos, sendo dois principais:
1) Ser de origem renovável: o Brasil já era grande produtor de cana-de-açúcar e tinha uma vasta extensão territorial e clima que possibilitava uma ampliação das safras. A fonte não era mais finita.
2) O produto da combustão ser consumido: a queima do etanol combustível, assim como os combustíveis de origem fóssil, também gera os gases subprodutos da combustão. Porém, grande parte do CO2 é consumido pela própria cana-de-açúcar durante seu crescimento a partir da fotossíntese, havendo uma captação desse gás na presença de luz produzindo glicose e oxigênio.
Produção de etanol de primeira geração
Nesse primeiro momento, o etanol produzido era feito a partir do caldo da cana-de-açúcar, chamado de etanol de primeira geração.
O processo é a ampliação de um mecanismo que acontece naturalmente (a fermentação do açúcar por microrganismos). Então aprimorar essa reação era a chave do sucesso. Extrair o caldo da cana, adicionar leveduras (Sacharomyces cerevisiae) e fazer com que elas convertessem os açúcares ali contidos (em maior parte a sacarose), transformando-os em etanol por meio da fermentação é no mínimo… ousado. Isso porque no início as quantidades de etanol geradas no final não eram tão atrativas, por diversos problemas relacionados a robustez e crescimento da levedura. Mas após aprimoramento, esse método tradicional rendeu ao Brasil a posição de segundo maior produtor de etanol do mundo (28% em 2018) ficando atrás só do Estados Unidos (com 56%). Como tornar isso ainda mais sustentável? Como melhorar?
A resposta está no descarte: a palha e o bagaço da cana-de-açúcar que não são utilizados para produção de etanol de primeira geração. Por que não utilizar esses descartes que eram queimados no campo ou nas caldeiras para algo mais? Atualmente o excedente de bagaço disponível para segunda geração ou outros usos está situado entre 7 e 10% do bagaço total (aproximadamente 280 kg de bagaço por tonelada de cana). O restante do bagaço obtido no processamento da cana pode continuar sendo empregado como combustível primário na geração de vapor e energia elétrica para a operação da própria usina.
Produção de etanol de segunda geração
O aproveitamento de biomassa vegetal para produção de etanol é um processo denominado segunda geração. Porém, como o bagaço não consegue ser transformado em etanol pelo método tradicional, para viabilidade da produção, duas etapas principais são adicionadas ao processo de primeira geração: o pré-tratamento e a sacarificação.
A primeira quebra da parede celular vegetal, mais abrupta e mais grosseira, chamamos de pré-tratamento. É uma quebra que possibilita uma maior acessibilidade aos açúcares que compõem a fibra (celulose, hemicelulose e lignina). Simplificando, é torná-la mais aberta. Dessa forma, teríamos fragmentos maiores e não uniformes das fibras.
A segunda etapa do processo, que auxilia a diminuir os fragmentos ainda mais, é chamada sacarificação ou hidrólise enzimática. Nesse caso, submetemos fragmentos da parede celular à ação de diversas enzimas, normalmente provenientes de fungos filamentosos (Trichoderma sp., Aspergillus sp., Neurospora sp. entre outros), sendo que cada uma é especializada em uma região de corte. Então, imaginem diversas tesouras agindo quase que ao mesmo tempo, em diversas partes daquele fragmento que veio da biomassa. É quase mágica (é ciência!), mas depois disso tudo, obtêm-se açúcares simples como glicose (vinda da celulose) e xilose (proveniente da hemicelulose), que podem ser então fermentados em etanol.
Relembrando: nosso intuito desde o início é transformar a palha em etanol, mas para que isso seja possível, obter o menor açúcar possível é importante porque as leveduras só conseguem consumir açúcares desse tipo para a fermentação. A celulose, uma das cadeias que compõem a parede celular da planta, é basicamente uma cadeia composta de muitas moléculas de glicose, fonte de energia para a maior parte dos seres viventes, inclusive leveduras. Conveniente, não?
Como as ômicas podem auxiliar na produção de etanol de segunda geração?
Para aprimorar todo esse processo super complexo, muitas pesquisas ainda são necessárias. Por isso, estudos de “ômicas” são os mais aplicados respondendo a perguntas como:
1. Genômica
O que tem escondido nos genes, no DNA? Por que determinada biomassa tem uma quantidade maior de celulose ou lignina? Por que alguns fungos produzem mais enzimas para compor um coquetel enzimático ou até mesmo o que atrapalha essa produção? Por que algumas leveduras são mais resistentes e robustas do que outras?
Estudos de genômica permitem comparações, análises sobre as particularidades de um organismo. Ao sequenciar todo o genoma de um organismo é possível encontrar marcadores genéticos, sequências ainda desconhecidas que codificam alguma proteína ou fator importante, seja o nosso organismo alvo uma planta, fungo filamentoso ou levedura, se considerarmos o processo de obtenção do etanol como um todo.
2. Transcriptômica
Outro nível de refinamento nessas análises é olhar para o que, de fato, aquele determinado organismo estava tentando produzir. Então, a partir do genoma, em uma determinada condição, qual a resposta? Quais transcritos (mRNA) ou genes são mais ou menos ativados?
Imagine que você está em determinada situação que causou um susto. Todas as possibilidades de resposta que passam pela sua cabeça funcionam como se fossem os transcritos de mRNA. Em uma situação alegre, você pensaria em reagir de outras formas. A gama enorme de possibilidades pensadas em todas as situações possíveis é como se representasse o genoma (conjunto de todos os genes). Em cada estímulo, tudo o que de fato passou pela sua cabeça são os transcritos… E o que de fato você fez, as proteínas.
Entender essa dinâmica permite, então, determinar quais as melhores condições para um fungo produzir determinadas enzimas; o que permite uma planta ser mais ou menos resistente à seca; ou quais os transcritos uma levedura produz quando se tem muito etanol no meio em que ela se encontra, entre outras diversas aplicações.
3. Proteômica
Como já dito, as proteínas são os elementos que passaram por todo o processo de tradução (após a transcrição). É o grito, depois do susto, em nossa suposição. Complementar o que foi transcrito (e visto no transcriptoma), com os dados de todas as proteínas de fato produzidas é extremamente importante. Porque essa não é uma relação linear, nem todos os transcritos vão chegar sãos e salvos no final. Estudar essas proteínas auxilia a entender essa dinâmica, além de ver quais são as prioridades daquele determinado organismo para seu melhor desenvolvimento e consequentemente, produção.
A proteômica nos auxilia em respostas como: qual grupo de enzimas determinado fungo filamentoso secretou? Qual proteína a planta produz quando está em um ambiente extremo ou quando exposta a algum patógeno? Ou simplesmente para compreender a dinâmica de uma levedura.
4. Metabolômica
É o estudo de pequenas moléculas (<1500Da) encontradas em todos os organismos, os metabólitos. O metaboloma tem alguns aspectos importantes como: 1) está diretamente relacionado ao fenótipo de um organismo; 2) um metabólito, diferentemente de um gene, transcrito ou proteína, é o mesmo em todos os organismos, significando que durante a evolução houve transferibilidade entre os diferentes sistemas biológicos, o que permite compará-los.
Essa análise permite entender as respostas em relação a tempo de cultivo, fatores estressantes, temperatura e nutrição, além de identificar genes-alvo para abordagens de engenharia genética, visando aumentar a produtividade a partir de novas fontes de carbono, quantificar o impacto na composição da biomassa por compostos tóxicos e intolerados, para investigar a relação entre a produção de biomassa e a composição metabólica para fins de produtividade, ou até mesmo para ver a eficiência na conversão de açúcares pelas leveduras, por exemplo.
Diversas ômicas vão surgindo como a metagenômica, que explora todos os genomas de um grupo de organismos, a filogenômica que traça os padrões genealógicos, a glicômica e glicoproteômica que permite analisar os padrões e regiões de inserção de carboidratos anexos nas proteínas pós-tradução, e assim por diante.
Dito isso, a importância de analisar toda essa dinâmica comparando as diferentes ômicas, traz uma resposta muito mais próxima ao que acontece, de fato, dentro da célula. Isso permite e auxilia a tomar decisões, na tentativa de viabilizar o processo para a produção de etanol, otimizando cada etapa e reduzindo os custos.
Todas as informações que buscamos, como cientistas, vem com a ideia intrínseca de melhorar, afinal, tudo pode melhorar. As ômicas são análises que nos dão munição para atuações bem mais racionais no que desenvolvemos.
Dentro da produção de etanol em específico, há uma trilha imensa a ser percorrida ainda como melhorar a resistência da cana a seca e patógenos no campo; aumentar a quantidade de bagaço na cana; melhorar o processo de liberação dos açúcares do bagaço, e consequentemente a atividade das enzimas; descobrir novas enzimas; melhorar a produtividade da reação de fermentação e a viabilidade das leveduras em grandes concentrações de etanol; combater bactérias contaminantes nas dornas e assim por diante. Melhorar é nosso verbo favorito!
Acho que chegou a hora, enfim, de nos preocuparmos com o nosso planeta.
Referências:
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