Os brasileiros, de um modo geral, confiam na ciência e nos cientistas, de acordo com pesquisas de 2015 e de 2019 sobre percepção da sociedade em relação à ciência. Mas são poucos os brasileiros que sabem dizer o nome de um cientista brasileiro e de um instituto de pesquisa tupiniquim. Pensando em ajudar a mudar essa situação, o Profissão Biotec criou o projeto “Perfil de Pesquisadores Brasileiros” para apresentar pesquisadores que fazem ciência de ponta (e em biotecnologia) em nosso país! Conheça no perfil de hoje a pesquisadora Dra. Ayla Sant’Ana da Silva.
Drª Ayla Sant’Ana – Provando que resíduos podem ser verdadeiros tesouros
A Drª Ayla é, atualmente, pesquisadora no Instituto Nacional de Tecnologia (INT), tendo ganhado o Prêmio CAPES de Tese 2014, pela melhor tese de doutorado defendida em 2013 na área de Biotecnologia no Brasil. Desde criança, ela já mostrava um imenso interesse pela ciência, que foi ainda mais aflorado por diversos professores e pesquisadores durante sua vida. Apesar de quase ter ido parar nas Engenharias, percebeu, através do projeto Genoma Humano, que sua praia era mais de Biológicas.
Sua pesquisa é voltada para a valorização e aproveitamento de resíduos agroindustriais, especialmente quando se trata da semente do açaí, a qual o descarte vem se tornando um problema urbano e ambiental na região Norte do país. A Drª Ayla vê nas rotas biotecnológicas, mais especificamente, na conversão enzimática, uma possível saída para este problema. Essa linha de pesquisa foi, ainda, inspirada por seu interesse na Amazônia, “um dos ecossistemas mais interessantes do planeta”, em suas palavras. Em 2019, foi uma dos 12 jovens cientistas cujas pesquisas inovadoras receberam financiamento do Instituto Serrapilheira.
Além disso, a Drª Ayla reconhece a grande importância da divulgação científica e observa que, muitas vezes, apesar de haver interesse da população pela ciência, ainda é necessário uma maior popularização da mesma.
Confira abaixo a entrevista completa com a Dra. Ayla para conhecer a trajetória de sucesso dessa pesquisadora brasileira!
PROFISSÃO BIOTEC: QUAL É A SUA FORMAÇÃO ACADÊMICA (GRADUAÇÃO, PÓS-GRADUAÇÃO E PÓS-DOC) E CARGO ATUAL?
Ayla Sant’Ana da Silva: Fiz graduação em Microbiologia e Imunologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestrado e doutorado no Programa de Pós-graduação em Bioquímica, também na UFRJ. Atualmente sou pesquisadora no Laboratório de Biocatálise no Instituto Nacional de Tecnologia (INT).
PB: EM QUE PROFISSIONAL SE INSPIROU PARA SEGUIR ESSA CARREIRA?
AS: Desde criança tive um interesse muito grande por ciência, fui leitora assídua da revista Superinteressante e tive professores na escola que sempre foram inspiração, mas não há uma figura específica que eu lembre que me tenha feito escolher meu curso de graduação. Seguindo na graduação, tive contato com vários pesquisadores e professores que reforçaram meu desejo de seguir na carreira científica. A minha orientadora da Iniciação Científica até o doutorado, Prof. Elba Bon, teve um papel fundamental nessa trajetória, assim como professores do curso de graduação em Microbiologia que demonstravam uma dedicação e comprometimento estimulante pela ciência. Tive a oportunidade no final da graduação de passar um ano na Universidade de Lund da Suécia, no laboratório da Prof. Barbel Hans-Hagerdal, uma pesquisadora com uma trajetória muito relevante na área de biotecnologia, que também foi uma figura muito inspiradora para mim.
PB: QUAL É SEU LIVRO DE CABECEIRA OU SÉRIE FAVORITA?
AS: Gostei muito de ler “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury. O livro foi publicado na década de 50 e faz uns 10 anos que li, porém tem uma temática bem atual. O autor nos apresenta uma sociedade distópica onde livros são queimados e possuir livros é um crime grave. O objetivo é que o pensamento crítico seja suprimido nessa sociedade. Também gosto muito de ler o autor japonês Haruki Murakami e também Gabriel Garcia Marquez, já li vários livros dos dois. Recentemente, li de forma compulsiva o romance “Quase Memória” de Carlos Heitor Cony. Esse é um livro que aborda os sentimentos conflitantes de relações familiares, porém, mostrando como o afeto e a cumplicidade estão em primeiro lugar, apesar de tudo.
Minha série favorita é “Breaking Bad”. Comecei a assistir porque uma amiga me disse que o personagem principal era um químico. Ser um químico é algo muito relevante na história, mas não é o que realmente importa. A série foi muito bem-sucedida em fazer com que os personagens fossem evoluindo em complexidade ao longo das temporadas. Acho incrível como eles conseguiram fazer com que o espectador pudesse ao longo dos anos torcer, odiar e sentir pena, pelo mesmo personagem. E, diferentemente de “Game of Thrones”, o final da série é excelente rs
PB: QUAIS EVENTOS ACONTECERAM NA SUA VIDA (MAS NÃO APARECEM NO LATTES) QUE TE LEVARAM AONDE ESTÁ AGORA?
AS: Essa é uma pergunta bem difícil! Posso citar alguns episódios que ficaram na minha memória e acredito que tenham reforçado minha vontade de ser pesquisadora. Quando tinha uns 13 anos, a professora de Ciências nos levou para a UFRJ para visitar o anatômico, pois estávamos aprendendo sobre o corpo humano. A lembrança de ir na universidade e entrar nos laboratórios ficou bastante marcada na minha cabeça, lembro como fiquei encantada e com vontade de um dia trabalhar em um local como aquele.
Já no último ano do ensino médio, eu estava muito indecisa sobre qual área seguir, muito inclinada a fazer o vestibular para engenharias. Naquele ano, as colunas dos jornais especializadas em ciências acompanhavam atentamente a corrida pelo sequenciamento do genoma humano, que estava sendo travado entre o Projeto Genoma e a Celera Genomics, uma empresa que prometia entregar o resultado antes do consórcio mundial. Todas as semanas eu ia acompanhando o que estava acontecendo e, foi durante aqueles meses, que eu tive certeza que eu queria trabalhar em uma área voltada para pesquisa em Ciências Biológicas.
Já na universidade agarrei todas as oportunidades que tive para ter experiências em outros Estados e fora do país, que foram muito importantes para a minha formação como pesquisadora. Acredito muito na imersão em diferentes ambientes para a formação do pesquisador, pois nos força a sair da zona de conforto.
PB: QUAL É A SUA PRINCIPAL ÁREA DE PESQUISA ?
AS: Eu atuo principalmente na valorização de resíduos agroindustriais através do desenvolvimento de métodos de transformação dessas matérias-primas utilizando enzimas. Durante a minha graduação, mestrado e doutorado, trabalhei com bagaço e palha de cana-de-açúcar, que são resíduos gerados durante a colheita da cana e a produção de açúcar e etanol combustível. Como a palha e o bagaço representam até 2/3 da energia contida na planta, existe um grande interesse no desenvolvimento de tecnologias de transformação para uso dessas matérias-primas para a produção de etanol, uma vez que convencionalmente só 1/3 é aproveitado.
Atualmente, venho me concentrando no estudo de resíduos gerados a partir da exploração de frutos amazônicos. Um dos nossos objetos de estudo tem sido a semente de açaí. O açaí é um fruto muito popular, que caiu no gosto dos brasileiros de todo o país. No entanto, o que poucos sabem é que a polpa que consumimos equivale a apenas uma fina camada superficial e que cerca de 85% do fruto corresponde à sua semente. Anualmente, mais de um milhão de toneladas de semente de açaí são descartadas, e ninguém sabe o que fazer com essa quantidade imensa de resíduo. Isso gera um problema ambiental e urbano, especialmente no Pará, que é responsável por mais de 90% da produção nacional.
É por essa razão que resolvi estudar rotas biotecnológicas para o aproveitamento da semente do açaí. Esse projeto partiu da constatação de que esse é um material extremamente interessante. É uma fonte abundante de manose, um açúcar que é normalmente encontrado em pequenas em plantas, e em compostos antioxidantes, que atuam na prevenção de doenças e contra o envelhecimento. Nós estamos estudando em detalhes a composição da semente de açaí, para então podermos propor aplicações de forma bem fundamentada. Há expectativa de aplicações nas indústrias alimentícia e de cosméticos, por exemplo. Dessa maneira, a utilização do resíduo pode contribuir com o desenvolvimento social e econômico, agregando valor à cadeia produtiva do açaí e assim ajudando a solucionar um problema ambiental e urbano do nosso país.
Nós nos dedicamos muito ao estudo da conversão enzimática. As enzimas são proteínas que conseguem acelerar reações que naturalmente ocorreriam em velocidade muito baixa. A vantagem de se trabalhar com enzimas se comparado a um reagente químico se dá pelo fato dessas proteínas promoverem reações muito específicas, evitando a formação de subprodutos indesejáveis, como é comum em reações promovidas com um catalisador químico.
PB: POR QUE VOCÊ ESCOLHEU ESSE TEMA DE PESQUISA?
AS: A Amazônia é um dos ecossistemas mais interessantes do planeta e que tem sua biodiversidade inexplorada. Se estudada e explorada de forma sustentável, pode ser uma fonte de riqueza inestimável para o Brasil. Eu acredito que o Brasil tem todas as condições para ser um dos líderes mundiais da Bioeconomia, mas para isso precisamos que a ciência seja utilizada como um motor de desenvolvimento, para que possamos explorar de forma racional todo o potencial dos nossos recursos naturais. Por isso, no momento em que eu me vi na posição de propor meus projetos de pesquisa de forma independente, decidi contribuir com o estudo de resíduos da região Amazônica, que sempre foi uma região que me atraiu bastante.
PB: COMO VOCÊ SE SENTE EM RELAÇÃO À CIÊNCIA BRASILEIRA?
AS: A ciência brasileira produz conhecimento de muita qualidade, além de ser competitiva mundialmente, principalmente se balizarmos nossos resultados com as condições de trabalho e a burocracia que temos que enfrentar, quando nos comparamos a países com maior investimento em pesquisa. Acho que isso se deve ao fato de os pesquisadores brasileiros serem muito resilientes e criativos.
Hoje, na minha opinião, um problema que enfrentamos está relacionado com produtivismo acadêmico. Ao longo dos anos, os sistemas de avaliação de produtividade em ciência no Brasil criaram critérios que avaliam os pesquisadores e os Programas de Pós-graduação baseando-se em número de produção de artigos, orientação de alunos, etc. Isso acabou gerando uma distorção em busca da quantidade e não necessariamente focada na qualidade. Não é incomum vermos a inversão dos fatos, em que um estudo é planejado para gerar um artigo, quando na verdade o artigo deveria ser apenas a consequência de uma pergunta científica que foi respondida. Muitas vezes isso acaba prejudicando a formação dos mestres e doutores, que se formam como técnicos que produziram muitos artigos em um assunto, mas não como pensadores.
Felizmente, eu acredito que já existe um grande movimento em busca da mudança dessa mentalidade, principalmente entre os jovens pesquisadores, mas precisamos que os sistemas de avaliação também sejam repensados.
PB: QUAIS DICAS VOCÊ DARIA A BIOTECNOLOGISTAS AINDA NA GRADUAÇÃO?
AS: Procure buscar uma formação básica muito sólida, no que diz respeito não só à biologia, mas também à química, física e matemática. Não se preocupe tanto durante a sua formação na graduação em gravar detalhes de processos tecnológicos. Um aluno formado com bases sólidas, estará pronto para encarar problemas na área de biotecnologia por diversos ângulos e propor soluções, o que é mais importante. Existe uma ilusão, às vezes presente entre os estudantes na área de Ciências Biológicas, de que é possível fazer uma dicotomia do conhecimento e que não é preciso ter conhecimentos em profundidade dessas outras áreas. Em especial na área de biotecnologia, muitas vezes as perguntas envolvem sistemas complexos que requerem conhecimentos interdisciplinares. Por isso, busque sim a experiência prática, que agrega em outros aspectos, mas não se esqueça que o mais importante é estar pronto para pensar e uma boa base teórica certamente tem um diferencial.
PB: QUAIS AS DIFICULDADES DE FAZER PESQUISA NO BRASIL?
AS: Existem muitas dificuldades de se fazer pesquisa no Brasil, principalmente atualmente com os investimentos tão escassos. No entanto, eu diria que a principal dificuldade está em lidar com a burocracia. Infelizmente o pesquisador perde um tempo muito grande lidando com muitas coisas que não são relacionadas em pensar e executar a pesquisa. Temos que realizar cotação, fazer compras, ir a banco fazer pagamentos, manter todas as documentações comprobatórias de projetos, ler contratos e realizar prestação de contas. Toda a responsabilidade contábil fica por conta do pesquisador, que normalmente não tem suporte para gerenciar seus projetos. Além do tempo perdido com papelada, precisamos lidar com a demora para importação de reagentes, amostras, equipamentos, o que pode levar meses para chegar e atrasa muito a pesquisa no Brasil. O importante é que hoje já se reconhece o problema e existe muita discussão sobre isso e há propostas de criação de mecanismos para aliviar um pouco essa burocracia.
PB: VOCÊ REALIZA ATIVIDADES DE EXTENSÃO OU DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA? QUAIS?
AS: Divulgação científica nunca foi o meu forte, mas reconheço a imensa importância. Recentemente tenho me forçado a participar de mais ações e também tento estimular os meus alunos.
Ano passado tive a experiência de gravar vídeos de até 2 minutos sobre o meu projeto com a semente de açaí, cada um deles voltado para um público diferente: crianças, público universitário e especialistas da área (você pode conferir os vídeos nos seguintes links: crianças, universitários e especialistas). Essa foi uma iniciativa do Instituto Serrapilheira, a instituição que financia o meu projeto e que valoriza muito a divulgação científica. Aprendi bastante durante essa experiência, pois o Serrapilheira disponibilizou uma consultoria para ajudar todos os pesquisadores a se prepararem para os vídeos, pensar nos textos, na linguagem, etc. Para mim, não foi algo fácil de fazer, mas achei fantástico participar.
Recentemente também tive a experiência de expor trabalhos do laboratório de forma lúdica na Quinta da Boa Vista, um parque aqui do Rio de Janeiro, em um evento chamado de “Domingo com Ciência na Quinta”, organizado pela SBPC [Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência]. Enquanto preparávamos o material para o evento, imaginei que fossemos falar com uma ou outra pessoa ao longo da manhã, quando na verdade nós mal conseguimos parar de falar. Foi um dia incrível, pois ficamos 5 horas interagindo adultos, adolescentes e muitas crianças, que tinham as reações mais genuínas e engraçadas quando realizavam um dos experimentos que levamos para interação. Várias retornavam e queriam repetir a experiência. Nesse dia percebi o quanto a população tem sim interesse por ciência e o que falta é popularizá-la.
Para conhecer mais sobre a nossa ciência, continue acompanhando o quadro “Perfil de Pesquisadores Brasileiros” do Profissão Biotec! Confira também os infográficos desse quadro e mande para seus amigos! Ah, acompanhe nossas redes sociais para não perder nenhuma entrevista! Facebook / LinkedIn / Instagram.
Entrevista realizada por:
Projeto “Perfil de Pesquisadores Brasileiros” realizado por Bruna Lopes e Priscila Esteves de Faria e coordenado por Natália Bernardi Videira