Sabemos que um dos mecanismos de sobrevivência mais importantes da maioria das espécies que habitam nosso planeta é a capacidade de se mover. A motilidade permite que os seres vivos fujam de predadores, mudem de habitat e procurem alimento. Para nós, seres humanos, aliada a nossa capacidade de pensar, a capacidade de locomoção permitiu a construção de cidades, meios de transporte e proporcionou nossa movimentação para qualquer lugar do mundo.
A importância da motilidade
O plâncton, por exemplo, é constituído de organismos que não tem capacidade natatória suficiente para vencer a força das correntes aquáticas, sendo passivamente transportado pelo movimento das águas. Um dos benefícios da motilidade do plâncton é que os organismos permanecem em águas mais escuras durante o dia para ficarem menos vulneráveis à predação e, durante a noite, migram para a superfície para se alimentarem.
A identificação da origem de alguns processos que hoje são comuns em muitos organismos, como a motilidade, pode ser complicada e até parecer impossível, pois estes já existem há muito tempo.
No caso da motilidade celular, considera-se que foi originada de pequenos movimentos de proteínas de manutenção, como da famosa adenosina 5′-trifosfato (ATP) sintase (proteína que fornece energia para as células), da helicase (promotora da abertura do DNA na replicação), e das proteínas globulares actina (que compõe os microfilamentos) e tubulina (que compõe os microtúbulos). Acreditava-se que os movimentos das proteínas foram amplificados e transmitidos para a célula externa por causa do acúmulo de mutações. No entanto, esse processo ainda não havia sido demonstrado experimentalmente.
Diante dessa lacuna no conhecimento, pesquisadores da Osaka Metropolitan University, no Japão, estudaram a origem da motilidade. No estudo publicado na revista Science, os pesquisadores utilizaram uma bactéria e foram eliminando partes dela até que ela ficasse com o mínimo necessário para se mover. Ou seja, eles reconstruíram o processo de evolução de trás pra frente. Dessa forma, puderam ter uma ideia de como a natureza construiu esses movimentos de forma inversa.
Sete proteínas foram consideradas essenciais para a motilidade da célula. O modelo utilizado foi a bactéria Spiroplasma, que utiliza um movimento de espiral para sua movimentação. A partir da engenharia genética, os pesquisadores inseriram essas sete proteínas em uma bactéria sintética, chamada syn3B.
A syn3B é uma bactéria “construída” em laboratório, a partir de Mycoplasma, com o mínimo de informação genética necessária para o seu crescimento, com o objetivo de ter o menor DNA possível. Com a adição das proteínas, a syn3B alterou sua forma que normalmente é esférica e adotou um formato de hélice em espiral, muito parecido com a Spiroplasma. A alteração de formato da célula foi o que proporcionou que ela pudesse se movimentar.
Indo além, os pesquisadores retiraram as proteínas inseridas na nova célula em diferentes combinações e descobriram que apenas duas (das sete inseridas) são necessárias para a syn3B tornar-se capaz de nadar. No entanto, afirmaram que a presença das sete proteínas pode tornar a movimentação mais eficiente e robusta, possivelmente em diferentes ambientes.
“Pode-se dizer que a syn3B nadadora é a ‘menor forma de vida móvel‘ com a capacidade de se mover por conta própria” disse o professor Makoto Miyata, um dos autores do estudo.
A descoberta desse pequeno aparato motor funcional pode auxiliar no aperfeiçoamento de microrrobôs e no desenvolvimento de motores baseados apenas em proteínas. Os microrrobôs, que são uma combinação de microeletrônica e células vivas, têm sido estudados como possíveis detectores de doenças dentro do corpo humano. A syn3B é também um bom modelo para estudar outras funções celulares e sua evolução.
O estudo propôs que a diferença evolutiva entre os organismos ocorreu através de alterações acidentais na estrutura molecular. O ganho de motilidade pode ter ocorrido por uma ligeira alteração estrutural de uma proteína através de mutações. Esse é o método provável de desenvolvimento de muitas outras funções nos organismos como coloração, resistência à doenças e desenvolvimento muscular. Segundo o geneticista Hugo de Vries, a ocorrência de mutações é um mecanismo de evolução que garante a sobrevivência das espécies.
Estudos como esse nos trazem uma visão mais clara do passado, de como chegamos às espécies que existem hoje e suas variações de funções. Além disso, nos abrem portas para o futuro, aperfeiçoando nossas tecnologias que podem ser baseadas naquilo que a natureza já criou.
Cite este artigo:
CARDIAS, B. B. Reconstruindo o processo de evolução: do que um organismo precisa para se movimentar. Revista Blog do Profissão Biotec, v.10, 2023. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/reconstruindo-processo-evolucao-organismo-precisa-movimentar/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências
KIYAMA, Hana et al. Reconstitution of a minimal motility system based on Spiroplasma swimming by two bacterial actins in a synthetic minimal bacterium. Science Advances, v. 8, n. 48, p. eabo7490, 2022.
SITE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA. 2022. Menor forma de vida capaz de se mover é criada em laboratório. Disponível em: https://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=criada-menor-forma-vida-capaz-se-mover&id=010180221202#.Y5cyznbMK3A. Acesso em 05 de dezembro de 2022.
WIKIPÉDIA. 2022. Mutação. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Muta%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 09 de dezembro de 2022.
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