O blockchain pode ser aplicado à biologia sintética, à geração de novos medicamentos e tratamentos e outras possibilidades biotecnológicas.

A era dos bitcoins

O ano era 2008 e os celulares estavam caminhando para a sua transformação em smartphones. Com a chegada do sistema operacional Android e o lançamento do Iphone 3G, a automatização de tarefas da maioria das pessoas tornou-se realidade. As idas às instituições financeiras para realizar operações bancárias já começavam a ficar mais fáceis e cômodas com os dispositivos e os aplicativos. No entanto, ninguém ainda imaginava que seria possível a criação de uma moeda que pudesse ser totalmente digital, e tal pensamento poderia até se tornar piada ou ser interpretado como revolução demais por alguns (sabe de nadaaa).

MAS… em algum lugar no Japão, um programador, ou um grupo de programadores (não se sabe ao certo…), estava nesse mesmo ano trabalhando para que essa moeda se tornasse realidade. Satochi Nakamoto disponibilizou o primeiro artigo descrevendo a implementação do Bitcoin, assim como o início da primeira comunidade de usuários de Bitcoin no começo de 2009. Hoje sabemos muito bem o que um bitcoin é, além da sua importância, mas vamos às definições:

O bitcoin é uma criptomoeda descentralizada, sendo um dinheiro eletrônico para transações ponto a ponto.

Isso mesmo, a primeira moeda digital criada para a realização de transações bancárias foi aos poucos conquistando comunidades, estados e países e hoje é uma das moedas digitais mais utilizadas no mundo. Com essa evolução ocorrendo no mercado financeiro, novas tecnologias precisaram ser desenvolvidas para a análise e a segurança das operações, assim como as bases de dados que pudessem comportar o que essa nova tecnologia disponibilizaria para a humanidade.  Nesse contexto, o blockchain iniciou o seu protagonismo.

Ilustração das moedas digitais mais utilizadas no mercado financeiro
Representação das criptomoedas mais recentes que já estão ativas no mercado financeiro, Bitcoin e Ethereum. Fonte: Quantitatives on Unsplash. #ParaTodosVerem: ilustração das moedas digitais mais utilizadas no mercado financeiro; à esquerda, o Bitcoin, uma moeda dourada com a letra B em formato de cifrão; à direita, a moeda ethereum, com um losango dourado com logo.

Mas o que é Blockchain?

É a base de dados utilizada para guardar as informações da mineração de Bitcoins. Uma vez que a criptomoeda adquire sua posição no mercado financeiro, é necessário que se garanta a segurança do dinheiro. Dessa forma, esse novo conceito, que já vinha sendo explorado por outros desenvolvedores, se tornou uma solução para os Bitcoins.

Blockchain, por definição, é uma cadeia de bloqueio, mas como assim?? As transações são guardadas em blocos permanentes, à prova de violação. Esses blocos, uma vez preenchidos, são colocados no blockchain, e assim que um bloco é completado, outro é gerado. Dessa forma, o bloco seguinte possuirá dados do anterior, formando assim uma cadeia (uhmmmm). Com a interligação dos blocos, não existe a possibilidade de realizar uma alteração em apenas um bloco sem alterar os demais. 

Apesar de um dos primeiros trabalhos realizados com uma cadeia de blocos criptograficamente segura ter sido descrito nos anos 90 por Stuart Haber e W. Scott Stornett, a primeira rede de blockchain definida em um código fonte foi realizada na programação original do bitcoin em 2008. Dessa forma, a base tecnológica das criptomoedas, o blockchain, tem recebido o interesse de bancos, empresas e organizações das diversas esferas.  E, nesse sentido, o blockchain também abre portas para as novas áreas da biotecnologia, a exemplo da bioinformática.

Analogia de blockchain

Vamos a uma analogia simples para que o funcionamento do blockchain possa ser compreendido. 

Imagine uma cidade onde, eleição após eleição, nenhum prefeito consegue resolver o problema da corrupção. Então os habitantes da cidade decidem que uma autoridade não pode mais mantê-los seguros.

Dessa forma, os cidadãos se juntam para tomar conta da cidade, cada um com um caderno de anotações, onde relatam e comprovam quanto dinheiro possuem. Todos tomam nota uns dos outros. Após a reunião, quando alguém faz uma alteração ou transação por qualquer motivo, devem anunciar a todos que conhecem. Se alguém souber de uma transação, anotará essa transação na página de seu caderno, assim todos ficam a par de todas as alterações realizadas. Até que chegue a todas as pessoas da cidade. A transação é considerada concluída e as contas são atualizadas quando a página é preenchida e fechada. Sendo assim, todos devem preencher sua página em andamento aproximadamente ao mesmo tempo. 

A fim de manter essa cadeia de informações entre os cidadãos e não centralizar em apenas um caderno, os cientistas da cidade propuseram uma chave como controle, sendo ela um quebra-cabeça auto-atualizável. Quando alguém resolve esse quebra-cabeça, publica seu resultado em sua página no caderno, todos copiam a página fornecida e a fecham após adicionar uma “transação recompensadora” (ou seja, novo “dinheiro”) ao final. 

Nesse exemplo, a cidade virtual usa a tecnologia blockchain. Resolver um quebra-cabeça se refere à mineração, enquanto os cadernos são as cópias do blockchain. Cada página do caderno é um bloco, e o estado atual das contas pode ser inspecionado verificando esse caderno desde o início até a última página. As pessoas que anunciam e entregam transações umas às outras constituem a estrutura de rede ponto a ponto do blockchain.

Genômica e Blockchain

Estudos nas “ômicas” (a exemplo da proteômica, metabolômica e genômica) vêm sendo realizados a fim de se utilizar todo o potencial que o blockchain pode oferecer. Nesse contexto, com o grande volume de dados gerados pelas análises de DNA, RNA e proteínas, problemas em relação ao tratamento e ao armazenamento dos dados começaram a ser evidenciados.

Os conjuntos de dados gerados por plataformas de sequenciamento de alto rendimento exigem imensas quantidades de recursos computacionais para alinhá-los aos genomas de referência. Além disso, após as análises de computação intensiva serem concluídas, os resultados são mantidos em repositórios centralizados com controle de acesso, ou distribuídos entre as partes interessadas usando protocolos de transferência de arquivos-padrão. A centralização dessas informações, bem como a utilização de soluções obsoletas para a transferência desses novos protocolos, já não se aplicam mais. 

Dessa forma, a utilização do blockchain pode ser uma alternativa, uma vez que ele permite essa descentralização da informação, garantindo, assim, a imutabilidade e a incorruptibilidade dos registros. Além disso, os desafios da bioinformática associados à genômica, ou qualquer outro campo das “ômicas”, incluem análise de dados com uso intensivo de computação, armazenamento e compartilhamento de dados com reconhecimento de privacidade. Nesse contexto, uma das maiores preocupações ao se tratar de dados genéticos é a garantia de segurança. Assim, o blockchain tem sido uma alternativa para garantir a integridade desses dados compartilhados com as pessoas.

Novas descobertas e Blockchain

Além de toda a praticidade em análise de dados, o blockchain também tem sido utilizado no monitoramento de algumas doenças.  Alfred C. Chain propõe uma estrutura conceitual para empregar a tecnologia blockchain a fim de investigar os mecanismos biológicos associados ao câncer. 

A evolução clonal no câncer exibe características surpreendentemente semelhantes às de uma cadeia de blockchain. Ao acumular alterações genéticas e epigenéticas graduais e sequenciais, as células clones de câncer estão sujeitas à seleção natural darwiniana ao longo de seu crescimento. 

Por exemplo, na leucemia linfoblástica aguda, a mutação em um gene (ETV6-RUNX1) é que impulsiona a expansão clonal e a diversificação. Se pudéssemos obter um histórico completo da doença e sua origem, poderíamos melhorar o tratamento. Sendo assim, esse bloco de informações ou caderno contendo a gênese do câncer poderia ser utilizado em um blockchain.

O conjunto de dados em cada página abrigaria um instante do estado do câncer naquele período, como uma identidade ou  assinatura ômica da célula. Assim, ao anexar uma nova página ao caderno corresponderia a adicionar um momento atualizado do estado do câncer ao seu histórico. Dessa forma, a fim de manter as informações das células doentes em uma cadeia, cada uma deverá ser vista como um nó individual contendo conexões e relações intercelulares. É necessário o histórico ômico e todas as suas relações intercelulares, para se construir um livro-razão ou caderno da doença. O estabelecimento de conexões nodais é realista, dado os avanços computacionais significativos na caracterização da comunicação célula-célula.

Utilizando a metodologia de hash como criptografia e mecanismos de proof-of-work de um blockchain, podemos garantir que a trajetória evolutiva está fielmente documentada (precisão temporal, de linhagem e ômica). Já imaginou?! Poder conseguir rastrear a história evolutiva de uma doença, que ferramenta poderosa ela seria na mão dos desenvolvedores de medicamentos, até parece surreal como a ideia da moeda digital….

Ilustração do funcionamento do blockchain para caracterizar a história evolutiva de um determinado câncer. 
Modelo Blockchain da evolução do câncer. A mutação fundadora (representada pela proteína de fusão lavanda e turquesa). O conteúdo de cada bloco abrange os processos ômicos unicelulares completos do câncer em um determinado período de desenvolvimento. Cada bloco é marcado por uma chave única (hash), a função hash terá sempre as informações do bloco anterior. Fonte: adaptado de CHIN, Alfred C. (2020). #ParaTodosVerem: ilustração do funcionamento do blockchain para caracterizar a história evolutiva de um determinado câncer. 

Futuras Perspectivas

O blockchain pode ter vindo para ficar. As projeções para a utilização dele no desenvolvimento de novos medicamentos e entendimento de doenças, bem como na automatização de exames genéticos, indicam que é  uma tecnologia promissora. Inclusive, o blockchain pode  complementar e facilitar o tratamento e a análise de dados propostos pela metodologia de Big Data.

Dessa forma, o blockchain não é apenas uma metodologia aplicada para criptomoedas, mas uma tecnologia que pode ajudar a resolver alguns problemas, podendo ser integrado a outras áreas. Porém, não é um feitiço mágico que pode ser aplicado a qualquer problema computacional em genômica. Embora a biologia continue a ser um território desconhecido para o imenso potencial do blockchain, um futuro maduro pode começar bloco a bloco.

Perfil de Samilla
Texto revisado por Luísa Valério e Elaine Latochescki

Cite este artigo:
REZENDE, S. B. A revolução do blockchain. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em: <>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências

CHIN, Alfred C. Blockchain Biology. Frontiers in Blockchain, 3: 56, 2020.
DEDETURK, Beyhan Adanur; SORAN, Ahmet; BAKIR-GUNGOR, Burcu. Blockchain for genomics and healthcare: a literature review, current status, classification and open issues. PeerJ, 9: e12130, 2021.
Guia do Bitcoin – A História do Bitcoin – Como tudo começou. Disponível em : https://guiadobitcoin.com.br/a-historia-do-bitcoin-como-tudo-comecou/. Acesso em 08/04/2022.
Haber, Stuart; Stornetta, W. Scott (1 de janeiro de 1991). How to time-stamp a digital document. Journal of Cryptology (em inglês) (2): 99–111. ISSN 1432-1378, 1991. 
MICK, Jason. Cracking the Bitcoin: Digging Into a $131 M USD Virtual Currency. Daily Tech. Retrieved, 30, 2012.
Money Times – O que é Blockchain e como essa tecnologia pode ser utilizada ‘além do Bitcoin’. Disponível em: https://www.moneytimes.com.br/conteudo-de-marca/o-que-e-blockchain-e-como-essa-tecnologia-pode-ser-utilizada-alem-do-bitcoin/.
OZERCAN, Halil Ibrahim, et al. Realizing the potential of blockchain technologies in genomics. Genome research, 28.9: 1255-1263, 2018.
Fonte da imagem destacada: Unsplash.

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