A descoberta das enzimas de restrição em bactérias foi importante para a criação da Tecnologia do DNA recombinante e trouxe a era da Biotecnologia Moderna.

Um dos grandes avanços que revolucionou a Biotecnologia e deu origem ao campo da engenharia genética foi o desenvolvimento da Tecnologia do DNA recombinante. Essa técnica permite manipular e combinar moléculas de DNA de organismos diferentes, que podem ser multiplicadas e propagadas em células. Mas como será que essa técnica surgiu? 

A história começa com a observação de uma “batalha” que ocorre entre bactérias e um tipo de vírus, na qual as armas utilizadas são análogas às tesouras. Ao longo deste texto vamos dar um passeio histórico para saber como as enzimas de restrição foram descobertas e sua importância para o desenvolvimento da Tecnologia do DNA recombinante.

Um prêmio aos que descobriram com que armas as bactérias se defendem

A história começa na década de 50 quando dois cientistas, Salvador Luria e Mary Human, estudavam bactérias infectadas por bacteriófagos. Os bacteriófagos são vírus que conseguem injetar seu material genético dentro da célula bacteriana de forma que este seja multiplicado e utilizado para produzir novos vírus. Esses cientistas observaram que diversos bacteriófagos conseguiam se multiplicar em determinadas cepas de bactérias (variações de uma mesma espécie) hospedeiras, enquanto em outras o sucesso era baixo.

   Uma década depois, o suíço Werner Arber, ficou intrigado em saber o porquê desses vírus serem restringidos de se multiplicarem nessas cepas. Primeiro, ele propôs a existência de um mecanismo de defesa realizado por uma enzima produzida pela bactéria. Essa enzima consegue se ligar a sequências de nucleotídeos específicas do DNA do bacteriófago e realizar “cortes” nesta região, como uma tesoura. Com o seu DNA fragmentado, o bacteriófago não consegue ser replicado impedindo que novos vírus sejam produzidos.

Em seguida, Arber concluiu que esse mecanismo de defesa só era eficiente em cepas de bactérias que nunca tinham entrado em contato com o DNA do bacteriófago. As cepas que já tinham tido contato prévio não conseguiam se defender, pois o DNA do bacteriófago acabava sofrendo mutações na região de reconhecimento da enzima e impedia que ela atuasse ali. Junto com outro pesquisador, Stuart Linn, Arber conseguiu identificar a enzima EcoB em Escherichia coli, que foi considerada uma endonuclease R, conhecida hoje como enzima de restrição ou endonuclease de restrição.

Outro fato interessante é que as bactérias conseguem proteger o próprio material genético da ação de suas enzimas de restrição adicionando grupos metil (CH3) nos locais de reconhecimento destas, através do mecanismo de metilação do DNA.

Figura ilustrando o mecanismo de defesa realizado pelas bactérias infectadas por bacteriófagos
Figura ilustrando o mecanismo de defesa realizado pelas bactérias infectadas por bacteriófagos. a) À esquerda, um bacteriófago acoplado à superfície da bactéria injetando seu DNA (vermelho) no interior da célula (amarela). À direita, enzimas de restrição (bolas rosas) se ligando em regiões específicas do DNA viral cortando-o em fragmentos menores. b) o DNA bacteriano (vermelho) com grupos metil (Me) adicionados nas regiões de reconhecimento das enzimas de restrição, impedindo a ação destas últimas. Fonte: Adaptado de Brown, T. A. 2020.

Entre as décadas de 60 e 70, vários outros cientistas verificaram a existência de outras enzimas de restrição tanto em E. coli quanto em outras espécies de bactérias. A enzima HindII, por exemplo, foi a primeira a ser identificada em outra espécie (Haemophilus influenzae) por Hamilton Smith e Kent Wilcox. Já em 1971, Daniel Nathans e Kathleen Danna conseguiram isolar essa enzima e misturá-la com o DNA do vírus SV40, que infecta células eucarióticas, em um tubo de ensaio. Em seguida, eles conseguiram visualizar 11 fragmentos de DNA que foram gerados com os cortes realizados por HindII através da técnica de eletroforese.

Todas essas evidências científicas culminaram no Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1978 a Werner Arber, Daniel Nathans e Hamilton Smith. Nessa época, a filha de 10 anos de Arber criou uma história criativa para explicar os achados do pai, que se chamava “A Fábula do Rei e seus servos”:

“Quando eu vou ao laboratório com meu pai, eu costumo ver algumas placas sobre as mesas. Estas placas contêm colônias de bactérias. Estas colônias me lembram de uma cidade cheia de muitos habitantes. Em cada bactéria há um rei. Ele é muito longo, mas magro. O rei tem muitos servos. Estes são grossos e curtos, quase como bolas. Meu pai chama o rei de DNA, e as enzimas de servos… Meu pai descobriu um servo que serve como um par de tesouras. Se um rei estrangeiro invade uma bactéria, este servo pode cortá-lo em pequenos fragmentos, mas ele não faz nenhum mal ao seu próprio rei.” (Silvia)

Fotografia dos cientistas que foram laureados com o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1978 pelas suas descobertas a respeito das enzimas de restrição
Fotografia dos cientistas que foram laureados com o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1978 pelas suas descobertas a respeito das enzimas de restrição. Fonte: Nobel Foundation archive.

Até o começo da década de 70, os cientistas não tinham ideia do impacto que suas descobertas a respeito das enzimas de restrição teriam para a ciência, e o principal pensamento era que elas poderiam ter utilidade para fragmentar moléculas de DNA e estudá-las melhor, permitindo identificar genes mais facilmente. Mas além dessa aplicação, anos depois, a Tecnologia do DNA recombinante foi criada.

Cortar e colar para recombinar: A tecnologia do DNA recombinante

Em 1972, os cientistas Janet Mertz e Ronald Davis demonstraram que a enzima de restrição HindII conseguia clivar a fita dupla de DNA gerando fragmentos com extremidades cegas. Os mesmos cientistas descobriram que a enzima de restrição EcoR1 cliva o DNA de fita dupla deixando extremidades coesivas ou aderentes.

Figura ilustrando o mecanismo de ação das enzimas de restrição. a) a enzima de restrição AluI reconhece uma sequência de quatro nucleotídeos (vermelho) e realiza um corte na fita dupla de DNA gerando extremidades cegas. b) A enzima EcoRI reconhece uma sequência de seis nucleotídeos e realiza um corte na fita dupla de DNA que gera extremidades coesivas. Fonte: Adaptado de Brown, T. A. 2020.

Essa última observação trouxe um insight aos cientistas. Como as extremidades coesivas são complementares entre si, elas poderiam ser re-ligadas com a ajuda da enzima DNA ligase. E por quê não combinar duas moléculas de DNA diferentes que foram tratadas com a mesma enzima e tem extremidades complementares, para formar um DNA híbrido? E assim surgiu a Tecnologia do DNA recombinante, que facilitou o estudo e identificação de genes, e permitiu também que genes de um organismo pudessem ser expressos em outro organismo.

Figura ilustrando a produção de uma molécula de DNA recombinante
Figura ilustrando a produção de uma molécula de DNA recombinante. À direita, um vetor circular (vermelho) serve como veículo onde será inserido um fragmento de DNA de interesse (em azul). As enzimas de restrição geram extremidades coesivas (azul esverdeado) no vetor e no fragmento, permitindo que eles possam se parear por complementaridade.A enzima DNA ligase efetua a ligação do fragmento ao vetor dando origem a uma molécula de DNA recombinante, à direita. Fonte: Adaptado de Brown, T. A. 2020.

Para utilizar a tecnologia do DNA recombinante e realizar uma clonagem gênica, um fragmento de DNA do organismo de interesse deve ser combinado com um fragmento de DNA maior que serve como um veículo, chamado de vetor. Um dos  tipos de vetores clássicos são os plasmídeos: moléculas de DNA circular encontradas naturalmente no interior de bactérias, fáceis de se manipular geneticamente. Muitas empresas comercializam esses plasmídeos para diversos fins de pesquisa envolvendo a clonagem gênica.

Uma vez que o DNA recombinante está pronto, ele deve ser inserido no interior de uma célula hospedeira (bactéria, fungo, mamífero ou planta) para que seja multiplicado e passado para as células filhas. Uma colônia com bactérias que carregam várias cópias do DNA recombinante é chamada de clone.

Figura ilustrando a produção de clones de bactérias contendo o DNA recombinante
Figura ilustrando a produção de clones de bactérias contendo o DNA recombinante. 1) Produção do DNA recombinante pela ligação do fragmento de DNA (vermelho) ao vetor (azul). 2) Transporte da molécula de DNA recombinante para o interior da célula bacteriana (amarelo). 3) Bactéria multiplicando o DNA recombinante (círculos) no seu interior. 4) Divisão celular da bactéria passando cópias do DNA recombinante para as células filhas. 5) Bactérias sofrendo várias divisões celulares crescendo em meio nutritivo e formando colônias que representam os clones. Fonte: Adaptado de Brown, T. A. 2020.

A contribuição para a Biotecnologia moderna

 A Tecnologia do DNA recombinante é muito valiosa para a Biotecnologia moderna, pois muitas proteínas de interesse industrial e farmacêutico que não são facilmente isoladas do organismo que as produzem podem ser produzidas em larga escala em células de outros organismos (bactérias, plantas, microalgas, leveduras) carregando o DNA recombinante.

O processo de produzir proteínas de um organismo em outro pela Tecnologia do DNA recombinante é chamado de expressão heteróloga de proteínas. A produção de insulina, por exemplo, pode ser feita por bactérias que contém o DNA recombinante com o gene para a produção desta proteína.

 A tecnologia do DNA recombinante é muito utilizada para gerar organismos transgênicos, ou seja, que recebem um gene exógeno (de outras espécies). Nesse sentido, é empregada para criar animais e plantas contendo genes que produzem características de interesse, como resistência a agentes infecciosos, tolerância a variações de temperatura ou até produção de substâncias nutritivas ou de interesse terapêutico. Moléculas de DNA recombinante também são muito utilizadas em metodologias para a produção de vacinas.

A tecnologia do DNA recombinante também permitiu que os primeiros projetos de sequenciamento de genomas fossem concretizados. Não era possível, nas décadas passadas, utilizar toda a molécula de DNA intacta de uma célula para conseguir decifrar todas as sequências de nucleotídeos que a compõem. Somente com o uso da fragmentação do DNA usando as enzimas de restrição é que foi possível gerar clones de bactérias que carregavam diversos fragmentos. Isso permitiu o uso de técnicas para rastrear o conteúdo total de nucleotídeos e organizá-los na ordem correta em que se encontravam no DNA.

A descoberta das enzimas de restrição trouxe um marco para a Biotecnologia moderna, pois possibilitou que moléculas de DNA pudessem ser manipuladas em tubos de ensaio para diversos fins. Hoje a Tecnologia do DNA recombinante apresenta diversas variações metodológicas e possibilita uma gama de inovações que estão contribuindo cada vez mais para as aplicações biotecnológicas.

Perfil Fabiano
Texto revisado por Darling Lourenço e Ísis V. Biembengut

Cite este artigo:
ABREU, F. C. P. Tecnologia do DNA recombinante: “A Fábula do Rei e seus servos”. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/tecnologia-dna-recombinante-fabula-rei-servos/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências:

BROWN, Terence A. Gene cloning and DNA analysis: an introduction. John Wiley & Sons, 2020.
KONFORTI, Boyana. The servant with the scissors. Nature structural biology, v. 7, n. 2, p. 99-100, 2000.
MLA style: The Nobel Prize in Physiology or Medicine 1978. NobelPrize.org. Nobel Prize Outreach AB. Disponível em: <https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/1978/summary/ > Acesso em: 18 de mar. de 2022.
PRAY, L. Restriction enzymes. Nature education, v. 1, n. 1, p. 38, 2008.
Fonte da imagem destacada: Flickr.

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