Já imaginou um medicamento produzido sob medida capaz de reconfigurar nosso sistema imunológico e combater o câncer? Essa é a premissa da terapia gênica CAR-T, que, ao contrário dos tratamentos quimioterápicos existentes hoje, é feita de forma personalizada, utilizando células do sistema imunológico do próprio paciente.
Nos últimos anos, essa terapia tem se mostrado uma forte aliada no combate a células cancerígenas. Mas o que de fato ela é? Teria a ciência encontrado a cura para o câncer?
O poder da “droga-viva”
Em um momento histórico para os Estados Unidos, em 2017, a agência de controle americana FDA (Federal Drug Administration) aprovou para uso clínico uma terapia gênica que reestrutura o sistema imunológico do paciente para matar células de câncer.
A terapia chamada de KymriahⓇ (também chamada de tisagenlecleucel) é comercializada pelo grupo farmacêutico suíço Novartis, com preço inicial de US$ 475 mil (R$ 1,5 milhão). O fármaco foi desenvolvido em colaboração com a Universidade da Pensilvânia e tornou-se a primeira terapia com células T receptoras de antígenos quiméricos (CAR-T, do inglês chimeric antigen receptor T cell) a receber aprovação regulatória para o tratamento de pacientes com até 25 anos de idade.
A KymriahⓇ foi aprovada pela FDA para o tratamento de dois cânceres hematológicos distintos, o linfoma não-Hodgkin (LNH) e leucemia linfoblástica aguda (LLA) de células B. A então CEO da Novartis, Liz Barrett, afirmou no período da aprovação que esta é uma terapia com grande potencial transformador e taxas de resposta duráveis, além de apresentar perfil de segurança bem caracterizado para ajudar pacientes que precisam urgentemente de novas opções de tratamento.
A terapia CAR-T da pioneira Novartis apresentou taxa de remissão de 83% após três meses em pacientes que não responderam aos tratamentos padrões. A gigante biofarmacêutica Gilead Sciences foi a segunda empresa a trazer uma terapia desse tipo para o mercado com o lançamento da Yescarta. A terapia em questão induziu remissão em 72% dos pacientes portadores do linfoma não-Hodgkin de células B agressivo. Outras empresas que realizaram testes clínicos com a terapia CAR-T incluem Autolus e TC Biopharm no Reino Unido, Cellectis na França, Celyad na Bélgica, bem como Celgene e Mustang Bio nos EUA.
Como a tecnologia funciona?
As terapias baseadas em CAR-T consistem na modificação genética dos linfócitos T, que são um dos tipos principais de leucócitos, células que atuam na defesa do organismo. Os linfócitos podem efetuar respostas antivirais, eliminar células infectadas por patógenos e, ainda, induzir a apoptose (autodestruição) de células cancerígenas.
Na tecnologia CAR-T, essas células recebem um receptor de antígeno quimérico (CAR). Este receptor é do tipo misto, ou seja, parte de um receptor já existente no linfócito é conectada a um novo receptor, que é componente de um anticorpo projetado para permitir que essas células T reconheçam uma porção específica das células tumorais (antígeno). Quando esse reconhecimento acontece, um sistema de sinalização estimula a célula T a entrar em ação e atacar a célula cancerosa.
Para a obtenção das células CAR-T, inicialmente deve ser realizada a extração dos linfócitos T do paciente em tratamento. Essas células passam por rodadas de edição genética para que possam expressar a molécula CAR. Os leucócitos modificados são colocados em meio de cultura para se multiplicarem em laboratório. Os pacientes são então submetidos a uma leve quimioterapia para preparar o organismo e, posteriormente, as células modificadas são reinseridas.
Esse processo de extração sanguínea de leucócitos e reinjeção deste sangue é chamado de leucaferese. Atualmente, existem várias gerações de moléculas CAR, que podem carregar diferentes sistemas de sinalização visando aumentar ainda mais a resposta imunológica contra o alvo programado.
Versão brasileira
O tratamento baseado em células CAR-T foi testado pela primeira vez na América Latina em 2019, pelos pesquisadores do Centro de Terapia Celular (CTC) da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto. A terapia foi usada para tratar um caso avançado do linfoma não-Hodgkin em um paciente de 63 anos, que já havia sido submetido, sem sucesso, a outras formas de tratamento. Mesmo sob o cenário de baixa expectativa de sobrevida do paciente, após a infusão das células CAR-T, foi observada melhora no quadro clínico do paciente, que saiu da fase crítica do tratamento. Além disso, foi possível detectar células CAR-T em suas amostras de sangue, o que corrobora a hipótese de que o tratamento funcionou.
Foram quatro anos de pesquisa até a realização do primeiro teste clínico, envolvendo o desenvolvimento de estudos aprofundados sobre as técnicas de edição genéticas utilizadas e os modelos para ensaios pré-clínicos. O projeto, pioneiro no Brasil, conta com cerca de 20 pesquisadores, incluindo médicos e biólogos celulares e moleculares, além de engenheiros especializados em cultivo celular.
O objetivo do grupo é desenvolver um tratamento de custo acessível e passível de ser ofertado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A metodologia desenvolvida tem custo aproximado de R$ 150 mil, que pode se tornar ainda mais baixo se o tratamento for oferecido em larga escala. Agora, os pesquisadores pretendem iniciar protocolos de pesquisa com número maior de voluntários e, ainda, expandi-los para outros tipos de câncer, como a leucemia mieloide aguda, mieloma múltiplo e tumores sólidos (localizados em uma região do corpo), como o de pâncreas.
Desafios e perspectivas
Os estudos realizados ao redor do mundo são bastante promissores, apresentando altas taxas de remissão, mesmo em pacientes que não responderam bem aos tratamentos convencionais. Esses resultados alimentam as expectativas sobre essa técnica e a ideia de que, enfim, alcançamos a cura para o câncer. Porém, é necessário lembrar que essa terapia também possui falhas e ainda requer estudos.
Os ensaios clínicos com células CAR-T já foram associados a efeitos colaterais graves e até letais, como neurotoxicidade e síndrome de liberação de citocinas. Portanto, as pesquisas neste momento se concentram em identificar os mecanismos que levam a esses efeitos e oferecer abordagens mais seguras para os pacientes.
Um grande objetivo nesse campo de estudos é o desenvolvimento de uma terapia CAR-T alogênica. Ou seja, em vez da necessidade de se manipular células T dos próprios pacientes, estas seriam fornecidas a eles a partir de um doador saudável, estando prontas para uso. Essa tecnologia economizaria tempo valioso para os pacientes, que não mais teriam que passar por todas as etapas de leucaferese, o processo de extração sanguínea de leucócitos.
O desenvolvimento de tecnologias totalmente novas também encontra embates normativos, e a regulamentação para uso dessas terapias pode variar de acordo com o país.
Pode-se perceber, portanto, que mesmo com bons e promissores resultados, diversos aspectos acerca da terapia gênica de células CAR-T para tratamento de câncer ainda não estão totalmente elucidados ou definidos. Ainda assim, essa biotecnologia surge como uma nova esperança para pacientes e pesquisadores desse campo de estudos, já que mostra um grande potencial frente às técnicas convencionais utilizadas hoje. Em um futuro próximo, essa terapia poderá revelar um caminho mais curto e seguro para alcançar a cura para essa doença.
Cite este artigo:
NASCIMENTO, L. X. Terapia gênica CAR-T: seria essa “droga-viva” a cura para o câncer?. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em:<https://profissaobiotec.com.br/terapia-genica-cart-droga-viva-a-cura-para-cancer/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências:
FERNÁNDEZ, Clara Rodríguez. LABIOTECH.eu. In: A Cure for Cancer? How CAR T-Cell Therapy is Revolutionizing Oncology . [S. l.], 10 set. 2019. Disponível em: https://www.labiotech.eu/in-depth/car-t-therapy-cancer-review/. Acesso em: 3 out. 2021.
GALLAGHER, James. BBC News. In: EUA aprovam ‘droga viva’, 1ª terapia contra câncer que reestrutura sistema imunológico do paciente. [S. l.], 31 ago. 2017. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-41109338. Acesso em: 3 out. 2021.
TOLEDO, Karina. Agência FAPESP. In: Células do próprio paciente são usadas em tratamento inovador contra o câncer. [S. l.], 11 out. 2019. Disponível em: https://agencia.fapesp.br/celulas-do-proprio-paciente-sao-usadas-em-tratamento-inovador-contra-o-cancer/31656/. Acesso em: 3 out. 2021.
ONCOLOGIA Brasil. In: Kymriah® (tisagenlecleucel), primeira terapia car-t da novartis, recebe a segunda aprovação do fda para pacientes com linfoma difuso de grandes células b (refratário). [S. l.], 2 maio 2018. Disponível em: https://oncologiabrasil.com.br/kymriah-tisagenlecleucel-primeira-terapia-car-t-da-novartis-recebe-a-segunda-aprovacao-do-fda-para-pacientes-com-linfoma-difuso-de-grandes-celulas-b-refratario/. Acesso em: 3 out. 2021.
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