Quase 40 anos após o descobrimento do vírus HIV, um evento chamou a atenção de diversas pessoas ao redor do mundo recentemente, gerando muitas matérias em noticiários: ainda em 2019 devem se iniciar testes em humanos para uma vacina contra o HIV.
A novidade foi divulgada na Conferência da Sociedade Internacional da AIDS sobre a Ciência do HIV (IAS 2019), que ocorreu dos dias 21 a 24 de julho desse ano na Cidade do México. A notícia trouxe ânimo e mais esperança na luta contra a AIDS. A fase clínica de testes será realizada com aproximadamente 3800 voluntários de alguns países, incluindo Brasil.
A vacina deve funcionar como um método de imunização contra os diversos subtipos do vírus, que apresentam prevalências diferentes em cada continente ou país. Na África e Índia, por exemplo, o subtipo mais comum é o C. Nas Américas, por sua vez, o subtipo B predomina consideravelmente. Esses dois subtipos são os de maior importância, representando cerca de 60% de todas as infecções.
O vírus HIV apresenta uma alta taxa de mutação, o que está relacionado com a quantidade de variantes conhecidas. Hoje se sabe que existem ao menos 9 subtipos do HIV-1 (subtipos “A”, “B”, “C” e sucessivamente), que podem apresentar comportamento e composição biológica distintas, levando, consequentemente, a variações nos níveis de manifestação clínica e transmissão da doença.
Do vírus à vacina
O princípio de qualquer vacina é armar nossa proteção contra uma potencial ameaça. O corpo é exposto aos antígenos (fragmentos capazes de estimular o sistema imune) dos microrganismos, contidos na vacina, para que sejam reconhecidos pelas células de defesa. Essa ação faz com que o sistema imunológico desenvolva os mecanismos de proteção necessários para que, quando houver uma tentativa de infecção, o organismo já esteja previamente alertado e pronto para contra-atacar mais rápido e efetivamente.
O desenvolvimento de vacinas é um processo complexo e custoso, que depende muito das características do microrganismo alvo e a forma de manifestação da enfermidade que causa. Muitas variáveis precisam ser pensadas para o desenvolvimento de um produto de imunização eficiente. Os cientistas precisam investigar, por exemplo, quais antígenos serão administrados, que por sua vez devem ser partes conservadas do microrganismo, pois se sofrerem mutação podem se tornar irreconhecíveis para as células de defesa.
No caso da AIDS, há uma alta taxa de mutação do vírus, o que permite seu escape do sistema imunológico, como também a existência de muitos subtipos e formas recombinantes do vírus, que dificulta a composição de um único produto eficiente contra todas as variantes. Esses fatores combinados fazem com que o desenvolvimento de uma medida preventiva leve anos para ser desenvolvida e finalizada e, muitas vezes, sem sucesso.
Vacina mosaico – um grande avanço
Devido à característica de conter antígenos de diferentes subtipos do vírus, a vacina poderá ser administrada em pessoas de diversos países. Por este motivo, recebeu o apelido de imunização mosaico. Este, inclusive, é o nome dado ao grupo de pesquisa que trabalhou no desenvolvimento da vacina.
Com essa conquista, a principal vantagem é o alcance global. O objetivo do grupo responsável pela pesquisa era, desde o princípio, conseguir obter uma vacina com potencial de estimular o sistema imune contra as diferentes variantes do vírus e assim ser acessível para pessoas de diferentes regiões do globo.
O termo mosaico não é apenas um apelido, mas uma estratégia biotecnológica para atingir o objetivo desejado. O grupo selecionou proteínas do HIV-1 que possuíssem as melhores características para construção dos antígenos:
- Baixa variabilidade;
- Capacidade de serem rapidamente reconhecidas pelo sistema imune na infecção;
- Alta quantidade de epítopos* conhecidos.
* Epítopo é a menor porção do antígeno capaz de gerar resposta imune.
Os resultados encontrados foram utilizados em ferramentas de bioinformática para o design de genes sintéticos do HIV, baseados em sequências naturais, capazes de codificar proteínas compostas, otimizadas para incluir um máximo de potenciais epítopos. Assim os antígenos mosaicos produzidos são capazes de gerar resposta imune bivalente (contra os subtipos B e C) com cobertura satisfatória diante da diversidade de composições virais.
A vacina foi desenvolvida com quatro doses, utilizando vetores de adenovírus (sem capacidade de se dividir e gerar infecção) que liberam o mosaico de antígenos do HIV nas doses 1 e 4. Nas doses 2 e 3 são administradas a combinação de duas proteínas recombinantes antigênicas para potencializar o efeito “global” contra os subtipos do vírus.
Toda essa estratégia levou 12 anos para ser desenvolvida e os resultados demonstraram ter um efeito prolongado por 2 anos, em testes pré-clínicos.
Mais de 100 vacinas contra o HIV já foram testadas em humanos desde seu descobrimento, mas a grande maioria não conseguiu avançar muito nos ensaios por falta de resultados suficientemente eficazes. Já foi apontado que uma das metodologias testadas, por exemplo, conseguiu atingir resultados satisfatórios; contudo, demonstrou queda considerável do seu efeito em um período muito curto, de apenas um ano, tornando-a menos promissora no final.
O fim da AIDS está próximo?
Apesar dos avanços, ainda é muito cedo para se falar de cura ou erradicação da AIDS. Não só vacinas como também outras abordagens biotecnológicas, como medicamentos modernos e terapias gênicas, estão sendo desenvolvidos para tentar eliminar a doença da população – ou pelo menos diminuir drasticamente -, porém seus esforços ainda continuam muito longe de sanar o problema por completo.
Um dos principais obstáculos para as pesquisas no que se refere ao HIV é a presença de reservatórios, formas latentes do vírus que permanecem viáveis mesmo após eliminação dos vírus circulantes. As terapias atuais não conseguem afetar os reservatórios do vírus. Portanto, mesmo com os melhores tratamentos disponíveis atualmente, ninguém consegue se ver 100% livre da AIDS.
A vacina, como se sabe, tem o intuito de prevenir, não de tratar. Sendo assim, ela não tem a capacidade de eliminar o vírus de pessoas já soropositivas ou mesmo de eliminar reservatórios de vírus existentes. O objetivo desse avanço científico é que pelo menos grupos de maior risco possam estar protegidos contra uma possível exposição.
É importante destacar que essas medidas desenvolvidas – ou em desenvolvimento – não excluem os cuidados necessários para evitar a AIDS, como o uso de camisinha nas relações sexuais – o que previne também outras DSTs.
Até o momento não é possível dizer que há cura contra a AIDS ou que estamos muito perto de encontrar, mas estamos a caminho de um passo que pode ser muito significativo para saúde mundial: a diminuição da taxa de aproximadamente 2 milhões de novas infecções a cada ano. Quer saber pouco mais sobre o AIDS e biotecnologia? Consulte nossos textos aqui!