Durante a corrida espacial, por volta de 1960, o termo “ciborgue” apareceu pela primeira vez na literatura. A palavra era definida como “uma pessoa que utiliza-se de máquinas para aumentar o seu poder”. Essa definição foi publicada em um artigo científico que poderia ser claramente confundido como um novo quadrinho da DC Comics, chamado: “A evolução do Superman”.
Para que viagens espaciais fossem possíveis, acreditava-se que a modificação do corpo humano seria necessária para que pudéssemos sobreviver em condições extraterrestres. Planetas secos, frio extremo, condições de baixo oxigênio ou alta radiação eram problemas que seriam resolvidos com junção da cibernética e dos organismos, originando os ciborgues. Uma ideia um tanto quanto visionária.
Da década de 1960 para cá, os avanços em neurociência foram significativos. Um dos principais responsáveis pela integração entre cérebro e máquinas é o pesquisador brasileiro Miguel Nicolelis, que atua na Universidade de Duke (Estados Unidos). Porém, seu foco não é a sobrevivência extraterrestre. Nicolelis tenta reabilitar pacientes que sofrem com algum tipo de paralisia através de uma interface cérebro-máquina. Veremos no texto o que é essa interface e como elas já fazem parte da nossa realidade.
Como o cérebro funciona?
O cérebro é um órgão que faz parte do sistema nervoso, capaz de armazenar, processar e recuperar informações de uma forma tão sofisticada que é considerado o órgão mais complexo do corpo humano. Não iremos discutir sobre a estrutura anatômica ou o desenvolvimento do cérebro em detalhes neste artigo, ao invés disso, vamos focar em como o cérebro é capaz de executar sua função.
O processamento de informações no cérebro inicia-se com estímulos gerados por órgãos sensoriais como o nariz, os olhos e toda a extensão da pele. Esses estímulos fornecem informações como dor, pressão, cheiro, sabor, entre outros. A informação chega ao cérebro por meio da comunicação entre os neurônios e, após o processamento, o cérebro pode enviar uma resposta. Por exemplo: Imagine que você sai para passear e logo vê uma pessoa (estímulo), reconhece sua feição (processamento) e então acena dizendo “Olá, boa tarde” (resposta).
Os neurônios emitem sinais químicos e elétricos para realizar comunicações celulares. O sinal químico está envolvido na comunicação de curta distância com células próximas, enquanto os pulsos de corrente elétrica emitidos pelos neurônios são utilizados na comunicação de longa distância. A longa distância pode ser considerada como o percurso que o sinal precisa fazer do cérebro até os músculos indicando que você pisque seus olhos ou mexa seu dedo do pé esquerdo.
A Interface Cérebro-Máquina
A interface cérebro-máquina pode ser considerada como uma ponte entre o pensamento e a máquina. De início, essa tecnologia foi desenvolvida através de implantes cerebrais, um procedimento invasivo que necessita de cirurgia para a instalação de eletrodos no cérebro. Porém, interfaces não-invasivas baseadas em eletroencefalograma (ECG) também foram desenvolvidas. Os eletrodos detectam a atividade cerebral por meio da superfície do couro cabeludo e permitem a conexão entre cérebros e computadores pela interface, sem a necessidade de uma intervenção cirúrgica.
As interfaces invasivas conseguem obter um sinal com melhor qualidade e permitem a movimentação de exoesqueletos ou membros mecânicos com maior eficiência. Além da movimentação, a tecnologia também permite que pacientes acometidos por doenças como a Esclerose Lateral Amiotrófica consigam se comunicar com o mundo.
Já as interfaces não-invasivas não possuem uma resolução do sinal cerebral tão boa quanto às invasivas. Isso ocorre porque parte do sinal captado é perdido no caminho entre o cérebro e os eletrodos. Para exemplificar, você pode pegar uma folha de papel em branco, colocar em cima da sua tela e continuar lendo esse texto. Seja no computador ou no smartphone, após colocar a folha por cima da tela você provavelmente ainda consegue ler o texto – com mais dificuldade. O sinal emitido pela sua tela não mudou, mas a folha impede que toda a luz chegue aos seus olhos, dificultando a leitura. De forma similar, os sinais emitidos pelos neurônios precisam atravessar o tecido cerebral, os ossos e a pele até que atinjam os eletrodos. Por isso a resolução mais baixa.
Por meio da inteligência artificial e do aprendizado de máquina é possível mapear a resposta emitida pelo cérebro através de diferentes estímulos. Esse mapeamento é utilizado no desenvolvimento de um algoritmo matemático que interprete os sinais neurais para gerar um comando eletrônico que o computador entenda.
Como a tecnologia está sendo aplicada
NextMind
A NextMind é uma empresa que já está comercializando uma interface cérebro-máquina não-invasiva com base em ECG. O produto pode ser comprado pelo valor de 399 dólares e é divulgado como um “wearable”, um dispositivo que pode ser vestido. O produto é focado na integração da mente com equipamentos digitais como smart tvs e videogames, dependendo bastante do estímulo visual e do foco na tela. A princípio, a empresa oferece alguns aplicativos e um kit que permite ao usuário desenvolver seus próprios aplicativos.
Neuralink
Diferente da NextMind, a Neuralink propõe interfaces invasivas. A empresa comandada por Elon Musk já desenvolveu um robô para realizar a cirurgia em menos de 1 hora, desde a implantação, até a sutura. O objetivo é que a tecnologia seja distribuída em larga escala, formando uma “simbiose” entre o homem e a Inteligência Artificial. A empresa foi fundada em 2016 e um de seus principais vídeos promocionais mostra um macaco jogando videogame apenas pensando nos movimentos para indicar os comandos.
Watch Elon Musk’s Neuralink monkey play video games with his brain
Exoesqueletos
Visando o tratamento e a reabilitação de pacientes com paralisia, diferentes grupos de pesquisa ao redor do mundo trabalham com o desenvolvimento de interfaces cérebro-máquina. Na abertura da Copa do Mundo de 2014, que ocorreu no Brasil, foi mostrada uma cena de Juliano Pinto dando um chute na bola “Brazuca”. Chutar uma bola na abertura da Copa parece algo comum, porém, Juliano é paraplégico e realizou esse feito utilizando um exoesqueleto desenvolvido por pesquisadores liderados por Miguel Nicolelis.
O traje envia um retorno tátil para o cérebro, em que o paciente consegue pensar no movimento e sentir que está, de fato, movendo seus músculos. Após o acompanhamento foi observado que os pacientes envolvidos no estudo tiveram regressão do estágio de paralisia. Isso é, devido a neuroplasticidade cerebral, novas conexões foram formadas permitindo o retorno da sensibilidade em diferentes graus.
Eu, Robô
A integração do homem com a máquina já é uma realidade, as interfaces cérebro-máquina são apenas mais um dos avanços que estão sendo traçados nessa via. Afinal, já utilizamos nossos smartphones como uma “extensão” do nosso cérebro. Diferente do que se imaginava na Guerra Fria, os ciborgues não estão sendo enviados ao espaço para desbravar frios extremos. Antes disso eles estarão entre nós, jogando ping-pong online, enviando mensagens com o pensamento e chutando bolas no gramado.
Cite este artigo:
SILVA, M. C. Interfaces Cérebro-Máquina: Controlando dispositivos com o pensamento. Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em:<https://profissaobiotec.com.br/interface-cerebro-maquina-controlando-dispositivos/>. Acesso em dd/mm/aaaa.
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