Os relógios biológicos permitem os organismos realizarem suas atividades fisiológicas de forma sincronizada com as variações cíclicas e temporais.

Quantas vezes você dormiu tarde da noite e precisou acordar muito cedo, se sentindo exausto no outro dia? Ou trabalhou tanto no dia anterior que perdeu a hora de se levantar no dia seguinte? Você é uma pessoa que tem uma rotina com horários para tudo ou não tem o  costume de realizar atividades na hora certa? Você se concentra melhor em qual período do dia? E por que dormir e se alimentar na hora errada pode nos deixar vulneráveis a sintomas fisiológicos preocupantes?

É tudo uma questão de tempo! A vida está em movimento permanente. Todos os animais, incluindo humanos, plantas e microrganismos mudam conforme a hora do dia, o clima, as estações do ano, e a partir de suas interações sociais (quando existem). O tempo é uma dimensão fundamental da vida, que conta a história da diversidade de organismos e permite que eles se adaptem às variadas condições em que vivem.

Para lidar com o tempo e as flutuações ambientais, a evolução trabalhou para que mecanismos conhecidos como relógios biológicos fossem capazes de orquestrar nossas atividades fisiológicas dia e noite, mensalmente e anualmente. Ajustem os seus relógios, pois hoje vamos falar um pouco sobre esse mecanismo essencial da vida!

A vida é feita de ciclos

Todos os organismos apresentam algum tipo de oscilação em seu comportamento, seja através das interações com o ambiente ou, de forma mais restrita, da regulação de suas funções orgânicas. A descoberta de que existe um mecanismo fisiológico que marca o tempo é antiga. Os primeiros estudos mais detalhados foram realizados pelo historiador Andróstenes de Thasos, 325 a.C, que descreveu que as folhas do tamarindo se movimentavam de forma periódica ao longo do dia. 

Somente dois mil anos depois, em 1729, que o astrônomo francês Jean Jacques de Mairan trouxe a mesma observação em folhas da planta sensitiva heliotrópica (uma espécie de Mimosa). A novidade do experimento foi que ele colocou essa planta em um ambiente totalmente escuro, isolado de ciclos de luz e escuro, e, mesmo assim, a planta continuava a movimentar suas folhas de forma periódica. Na época, o astrônomo comentou a seguinte frase:  “A sensitiva sente o sol, mesmo sem vê-lo.”

Fotografia da planta sensitiva
#ParaTodosVerem: fotografia da planta sensitiva, da espécie Mimosa pudica em um ambiente natural. A planta apresenta em cada ramo, várias folhas pequenas na forma alongada dispostas de forma sequencial. Naturalmente elas se mantêm abertas durante o dia, enquanto no período da noite elas se fecham. Se tocadas, elas podem se fechar também. Fonte: Vengolis

Foi aí que os cientistas começaram a desconfiar que existia um mecanismo interno nos organismos, um relógio biológico, que era capaz de marcar o tempo em condições variáveis de forma cíclica, mas que se mantinha funcionando também em condições constantes. E os estudos começaram a se expandir para outros organismos, incluindo humanos.

 Loucura nas cavernas

Você passaria dois meses sozinho e isolado em uma caverna, sem relógio e luz solar? Pois é, foi o que o geólogo francês Michel Siffre inventou de fazer em 1962, no intuito de observar como seu corpo reagiria sem a presença de fatores ambientais cíclicos. Ele ficou aproximadamente 58 dias em uma caverna com temperatura (0º C) e umidade constantes  (100%). Quando foi retirado da caverna, ele tinha perdido a noção do tempo, achando que haviam se passado 25 dias e seu corpo tinha se adaptado a um ciclo de 48 horas, onde ele ficava acordado por 36 horas e dormia por 12 horas.

Esse experimento demonstrou que mesmo na ausência de ciclos ambientais, o relógio biológico não parava de marcar o tempo, mas realizava um novo ajuste para manter o ritmo das atividades biológicas. E a ousadia de M. Siffre não parou por aí! Em 1972 ele retornou às cavernas para passar 206 dias isolado novamente, e comprovou mais uma vez que seu relógio biológico conseguia ditar ritmos. 

Michel Siffre, em 1972, durante seu isolamento por 205 dias em uma caverna
Michel Siffre, em 1972, durante seu isolamento por 205 dias em uma caverna. Ele utilizou eletrodos que monitoravam suas atividades cerebrais, cardíacas e musculares. #ParaTodosVerem: O geólogo Michel Siffre, de barba e vestindo uma blusa marrom clara, está lendo um livro de capa branca deitado em um colchão amarelo no interior de uma caverna.  Na sua cabeça estão aderidos eletrodos para medir suas atividades fisiológicas. Embaixo do colchão se encontram outros livros espalhados. Fonte: Foer, 2008.

Tanto o primeiro quanto o último experimento foram muito dolorosos para M. Siffre. De algum modo, o seu relógio se ajustou às condições em que ele se submeteu, mas esse ajuste trouxe ao pesquisador complicações diversas como a perda de memória, ataques de pânico, depressão, letargia, insônia e alucinações. Nesse vídeo, vocês podem conferir o momento em que ele é resgatado da caverna após 206 dias isolado.

Cronobiologia: o tique-taque dos organismos

A partir da noção da existência dos relógios biológicos, surgiu um novo campo multidisciplinar denominado Cronobiologia, responsável por estudar a organização temporal dos seres vivos. Os termos ciclo circadiano ou ritmos circadianos foram adotados para se referir aos eventos fisiológicos e comportamentais que ocorrem de forma periódica num período de 24 horas. Mas em que região do nosso corpo ocorre o mecanismo de gerar ritmos circadianos?

Em mamíferos, incluindo a nossa espécie, o centro de controle dos ritmos circadianos está localizado em uma região do sistema nervoso central denominada núcleo supraquiasmático, a qual corresponde a uma porção do hipotálamo. Nessa região, existem neurônios específicos que recebem informações sensoriais, principalmente de luminosidade, de órgãos como a retina. Esses neurônios conseguem gerar informações em períodos específicos do dia, que são enviadas para os outros tecidos do corpo para que determinados comportamentos fisiológicos ocorram na hora certa.

Parte da anatomia do cérebro mostrando algumas regiões, incluindo a localização do hipotálamo e do núcleo supraquiasmático.
Parte da anatomia do cérebro mostrando algumas regiões, incluindo a localização do hipotálamo e do núcleo supraquiasmático. #ParaTodosVerem: Ilustração de um cérebro contendo algumas regiões em destaque. Em amarelo, está destacada a região do hipotálamo. A esfera rosa representa a pequena porção do hipotálamo que inclui o núcleo supraquiasmático. Fonte: Juda, M. 2010.

Essas informações podem ser transmitidas através da síntese e liberação de hormônios em períodos específicos do dia ou através da comunicação entre as inervações dos neurônios com outros tecidos periféricos. Dessa forma, o relógio central tem a função de sincronizar as atividades metabólicas do restante do corpo, regulando os ciclos de sono, a secreção de hormônios como a melatonina (hormônio do sono), a temperatura corporal, o ciclo celular, a necessidade de se alimentar ou realizar as atividades fisiológicas, e até o comportamento (humor, alerta, letargia, etc).

Algumas funções fisiológicas são reguladas pelos ritmos circadianos durante o período de 24 horas
Algumas funções fisiológicas são reguladas pelos ritmos circadianos durante o período de 24 horas. #ParaTodosVerem: A figura circular representa um relógio que contém as horas do dia. Metade do relógio está em amarelo (lado esquerdo)  com o desenho de um sol representando a fase de luz do dia, a outra metade está em azul com o desenho de uma lua (lado direito) representando a fase escura do dia. Em alguns horários do dia estão exemplificadas algumas atividades fisiológicas que ocorrem em nosso organismo naquele momento ou intervalo de tempo.No lado esquerdo estão descritas as atividades que ocorrem de dia . No lado direito estão descritas as atividades que ocorrem à noite. Fonte: adaptado de Masri & Sassone-Corsi, 2018.

Hoje, sabemos que nem todos os tecidos são totalmente dependentes das informações enviadas pelo sistema nervoso central para sincronizar o seu metabolismo. A epiderme é bastante sensível às variações de temperatura e luminosidade, e os ritmos de funcionamento de suas células podem ser regulados de forma independente. Mas você ainda deve estar se questionando como um neurônio ou outro tipo de célula gera os ritmos metabólicos. A resposta está nos genes do relógio,  um grupo de genes que são ativados ou inibidos em determinados períodos do dia. Ou seja, no intervalo do dia em que eles estão ativos, esses genes codificam proteínas que ajudam a regular o funcionamento de determinadas vias metabólicas. O mecanismo no qual os genes do relógio atuam é muito conservado, ou seja, eles próprios se auto regulam para conseguir controlar a presença ou ausência de suas proteínas em períodos determinados do dia.

Uma boa sincronia para um ritmo saudável

Até aqui, nós podemos perceber, de forma clara, a grande importância do relógio biológico em orquestrar todas as nossas atividades fisiológicas. Como vivemos em um ambiente natural cheio de oscilações diárias, quanto melhor sincronizados estão os nossos ritmos circadianos com o ambiente, mais saudáveis estaremos. Diversos estudos já demonstraram como a alteração dos ritmos biológicos ou ruptura destes contribuem para o surgimento de diversas doenças crônicas e comórbidas.

Os ritmos circadianos desajustados podem contribuir para diversas condições neurológicas como a depressão, a ansiedade,a  deficiência cognitiva e a insônia. A seguir, algumas das principais doenças e alterações associadas à mudanças dos ritmos circadianos:

1 – Alzheimer: além da doença afetar o ciclo de sono dos indivíduos comprometidos, um estudo demonstrou que os macrófagos necessitam estar com ritmos circadianos ajustados para conseguir digerir a proteína Amilóide-beta 42, a qual se acumula no cérebro e atua na progressão  da doença.

2- Câncer: o próprio surgimento de um tumor desregula os ritmos circadianos das células, o que contribui para a progressão do câncer. Ao mesmo tempo, uma falta de sincronização das nossas células saudáveis pode também contribuir para o surgimento da doença.

3- Obesidade e diabetes: o comportamento alimentar e o padrão de sono de uma pessoa podem afetar os ritmos circadianos e afetar o metabolismo das células contribuindo para ambas as patologias.

4 – Depressão: a falta de sincronização dos ritmos biológicos com os ciclos de luz diários pode contribuir para o aparecimento da depressão. Pessoas com depressão apresentam o ciclo circadiano fora de sintonia com os horários do dia.

Doenças que podem ser ocasionadas pela contribuição da alteração dos ritmos circadianos
Doenças que podem ser ocasionadas pela contribuição da alteração dos ritmos circadianos. #ParaTodosVerem: as ilustrações retratam a influência da luz na manutenção dos ritmos circadianos. O sol está no canto superior esquerdo e é representado em cores amarelo e laranja. Uma seta aponta a influência da luz na retina, estrutura do olho que está ilustrada. Uma conexão neuronal, representada em amarelo, do olho com o sistema nervoso envia informações para o núcleo supraquiasmático (bola em amarelo) do sistema nervoso (cinza). Há setas saindo do sistema nervoso em duas vias, que representam a contribuição dos ritmos circadianos desajustados no aparecimento de doenças, bem como a influência de doenças em alterar os ritmos circadianos. Fonte: adaptado de Papagerakis et al. 2014.

Para nós seres humanos, o comportamento social tem uma implicação muito grande no modo como ajustamos o nosso relógio biológico. As diferentes configurações que adotamos no ambiente de trabalho, nossas escolhas alimentares e a realização de atividades ao longo do dia podem gerar ritmos fisiológicos que fogem da harmonia adequada que o nosso organismo necessita naturalmente, o que chamamos de jet lag social. Além disso, evidências já demonstram que pequenas variações em alguns nucleotídeos dos genes do relógio contribuem para definir a personalidade temporal de um indivíduo, ou seja, o seu cronótipo.

Tratamentos para resgatar os ritmos biológicos

O conhecimento dos mecanismos que orquestram os ritmos circadianos tem permitido que os cientistas atuem em diversos campos para solucionar problemas, principalmente na área da saúde. Atualmente, tratamentos baseados na cronoterapia visam administrar medicamentos em períodos específicos do dia, em que estes possam atingir sua maior eficácia em determinados tecidos, baseado no perfil metabólico de tal doença ao longo de 24 horas. 

Outros tipos de tratamento são baseados na administração de hormônios em períodos específicos do dia, para indivíduos que apresentam um desbalanço na produção desses. Um exemplo muito atual é o uso de medicamentos à base de melatonina, para tratar problemas de insônia, embora existam controvérsias a respeito do seu uso. A terapia baseada na exposição de pacientes a diversos tipos e intensidades de luz (branca, azul, vermelha) também está em alta e podem auxiliar na regulagem dos ritmos circadianos.

A cronobiologia se tornou um campo de interesse amplo que apresenta questões socioeconômicas importantes para a nossa espécie. Entender que nosso organismo funciona de forma temporal traz possibilidades para que a indústria farmacêutica e a medicina proponham métodos para garantir uma melhor harmonia do nosso relógio através de tratamentos personalizados. Além de tudo, estar ciente de que um relógio biológico com ritmos adequados promove uma boa saúde, nos traz reflexões sobre como a nossa sociedade se organiza temporalmente, quais as complicações disto e que propostas podem ser feitas para que as atividades diárias sejam mais compatíveis com os nossos ritmos biológicos.

Perfil Fabiano
Texto revisado por Luísa Valério e Bruna Lopes

Cite este artigo:
ABREU, F. C. P. Relógios Biológicos: que horas são?  Revista Blog do Profissão Biotec, v.9, 2022. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/relogios-biologicos-que-horas-sao/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências

ARAUJO, Tarso. Entenda como funciona seu relógio biológico e viva melhor. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI314453-17579,00-ENTENDA+COMO+FUNCIONA+SEU+RELOGIO+BIOLOGICO+E+VIVA+MELHOR.html Acesso em 10 de maio de 2022.
FOER, Joshua. Caveman: an interview with Michel Siffre. Cabinet Magazine, v. 30, 2008.
MARQUES, Nelson. Cronobiologia: Princípios e Aplicações (revista e ampliada) Vol. 12. Edusp, 1997.
MASRI, Selma; SASSONE-CORSI, Paolo. The emerging link between cancer, metabolism, and circadian rhythms. Nature medicine, v. 24, n. 12, p. 1795-1803, 2018.
PAPAGERAKIS, S. et al. The circadian clock in oral health and diseases. Journal of dental research, v. 93, n. 1, p. 27-35, 2014.
SILVEIRA, Evanildo. Engrenagens do tempo. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/engrenagens-do-tempo/ Acesso em 10 de maio de 2022.
Fonte da imagem de destaque: Flickr.

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