Sabe aqueles filtros de água feitos de barro que lembram muito a casa das nossas avós e bisavós? Ou que só vimos naquelas novelas antigas? Se você já bebeu água de um desses filtros, lembra da sua pureza e frescor? Se você respondeu sim a algumas destas perguntas e está pensando o que isso tem a ver com biotecnologia, vamos te contar agora.
O filtro de barro é uma invenção 100% brasileira, e foi criado durante a Segunda Guerra Mundial por imigrantes italianos que viviam em São Paulo. Naquela época, a água era consumida diretamente de rios, poços ou até mesmo fontes e chafarizes, sem nenhum tipo de tratamento, o que deixava as pessoas muito doentes.
A tecnologia por trás (ou melhor, por dentro) dos filtros de barro envolve três etapas. Na primeira, a água entra em contato com a parede filtrante do material microporoso, onde partículas sólidas e impurezas grandes são retidas. Na segunda etapa, a água entra em contato com a camada interna da vela, onde é esterilizada, ou seja, torna-se livre de bactérias e demais agentes contaminantes. Na terceira e última etapa, a água entra em contato com o carvão ativado, presente na vela. Este composto garante a redução de odores e sabores da água, tornando-a cristalina e, consequentemente, adequada para o consumo.
É baseada nessa terceira etapa que a biotecnologia entra em cena. No tratamento de água, o carvão ativado pode ser substituído pelo biocarvão. O biocarvão, ou biochar, é um material rico em carbono, sustentável e de baixo custo, derivado de biomassa. Ele é produzido por decomposição térmica da matéria-prima orgânica, sob condições limitadas de fornecimento de oxigênio e à temperatura relativamente baixa (400-700 °C). A biomassa utilizada na produção do biochar pode ser derivada de materiais orgânicos como resíduos de madeira, casca de arroz e lodo de esgoto, que seriam descartados no ambiente.
O processo utilizado para a produção do biocarvão, a pirólise (reação de decomposição por meio do calor), evita que o carbono presente na biomassa seja convertido a dióxido de carbono durante a combustão. Em vez disso, o material é transformado em um carvão absorvente poroso que armazena o carbono em vez de liberá-lo na atmosfera.
Uma parte essencial das estações de tratamento de água ou de águas residuais municipais (esgoto) é a eliminação de micropoluentes. Um experimento realizado em uma estação de tratamento de água na Suíça comprovou a eficácia do biochar na adsorção e eliminação de substâncias nocivas. Quando o lodo de esgoto foi tratado com carvão ativado em pó (biochar) diretamente, a eliminação de micropoluentes nas águas residuais foi de quase 100% para todas as substâncias nocivas analisadas.
Descoberta do biochar
Inicialmente, o biochar foi produzido para aplicações em remediação de solo, como fertilizante ou no sequestro de carbono. Isso porque, após a adsorção de nitrogênio e fósforo de águas contaminadas, o biochar pode ser reutilizado como fertilizante, promovendo a melhora do solo e dando continuidade ao seu ciclo de produção e aplicação.
A aplicação de biochar em solos surgiu a partir de estudos realizados em solo amazônico altamente fértil e escuro, conhecido como “Terra Preta de Índios” ou Terra Preta da Amazônia. Durante muito tempo, a presença desse solo agricultável em plena Floresta Amazônica foi um mistério da natureza. Na década de 50, pesquisadores da área de solos vinham de diversos países até o Brasil para pesquisar o porquê dessa formação. Descobriu-se, então, que isso não era natural, mas construído pela ação humana. Os índios amazônicos de 4000 AC produziam o biochar a partir de biomassa, em fornos no estilo oca com restrição de oxigênio. O biochar era aplicado periodicamente no solo, elevando a sua carga elétrica, o que resulta em alta retenção de nutrientes e aumento da fertilidade. No início do século XXI, um material similar a essas “Terras” começou a ser produzido, o que deu origem ao biochar.
Desenvolvimento e aplicação do biochar
Várias aplicações podem ser dadas ao biochar. Além da utilização na remediação da água, este material pode ser adicionado aos solos para aumentar o pH, aperfeiçoar a capacidade de troca catiônica, melhorar as propriedades físicas (como a capacidade de agregação, porosidade, aeração e armazenamento de água) e adsorver poluentes orgânicos hidrofóbicos e, portanto, aumentar a sua produtividade. A alteração das propriedades físicas do solo devido à sua presença pode resultar no aumento do crescimento da vegetação, pois ocorre o aumento da disponibilidade de água na área próxima ao sistema radicular, determinada pela composição física dos horizontes do solo.
A aplicação do biochar no solo também é proposta como mecanismo para o fenômeno de sequestro de carbono. Por meio desta prática, a emissão de carbono em forma de gases de efeito estufa pode ser prevenida, pois o carbono é armazenado no solo em uma forma mais estável comparado a situações em que o resíduo foi aplicado diretamente em formas mais instáveis, ou até mesmo queimado.
Na agricultura, o biochar geralmente é ainda misturado com fertilizantes minerais ou orgânicos para aumentar seu efeito na fertilidade do solo e no rendimento das colheitas. Na pecuária, a adição de biochar na ração de ruminantes destina-se a reduzir as emissões de gases de efeito estufa ou a melhorar a qualidade dos alimentos para os animais.
O biochar ganhou destaque internacional em algumas premiações de caráter sustentável, e as publicações técnicas e científicas relacionadas a ele têm crescido exponencialmente nos últimos anos. Por exemplo, as estudantes de pós-graduação Charlotte Böhning e Mary Lempres, do Instituto Pratt em Nova York, nos Estados Unidos, desenvolveram uma linha de filtro compostável de água, chamada de Strøm. As pesquisadoras utilizaram cascas de banana, ossos de ovelha e outros resíduos da cozinha de fazendas locais e restaurantes, que foram queimados em um forno. O biochar foi ainda magnetizado em um banho de sal ferroso para extrair metais pesados da água, enquanto os ossos de animais foram utilizados para filtrar o flúor. O própolis e a resina da árvore, também adicionados à composição, evitam o acúmulo de sujeira e ocrescimento bacteriano, além de atuarem como aglutinantes. A linha de filtros desenvolvida pelas estudantes norte-americanas venceu o Prêmio Pratt Material Lab 2021, que homenageia projetos de alunos que dão um novo propósito aos resíduos. O principal objetivo do novo produto é substituir os filtros de plástico, que demoram centenas de anos para se decompor, enquanto os filtros compostáveis se decompõem no solo em cerca de um mês. Além disso, o produto é mais barato e acessível por ser feito a partir de resíduos agrícolas e alimentares e reduz o descarte de toneladas de materiais considerados lixo.
Algumas empresas internacionais consideram o biochar a “terceira revolução verde”. No Brasil, a empresa Biochar do Brasil Sustentabilidade (BBS) acredita ser a “segunda revolução verde”, após a adoção do plantio direto. Enquanto o plantio direto leva de 5 a 10 anos para reincorporar 10 a 20% de matéria orgânica pouco estável no solo, o biochar reincorpora de 30% a 55% de carbono de alta estabilidade imediatamente após a aplicação. O mercado potencial de biochar no Brasil é de R$ 8,8 bilhões ao ano e, somado à produção de energia, pode chegar a aproximadamente R$ 15 bilhões anuais.
Três importantes estratégias são fortemente recomendadas dentro do conceito do biochar: a reciclagem de resíduos orgânicos, a geração de energia renovável e a agricultura de baixa emissão de carbono. É a biotecnologia mais uma vez construindo soluções ambientais sustentáveis e que contribuem para o nosso planeta!
Cite este artigo:
CARDIAS, B. B. Biocarvão: alternativa para remediação de água e solos. Revista Blog do Profissão Biotec, v.10, 2023. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/biocarvao-alternativa-para-remediacao-agua-solos/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.
Referências
MAIA, Claudia Maria Branco de Freitas et al. Biochar e o eucalipto. In: O eucalipto e a Embrapa: quatro décadas de pesquisa e desenvolvimento. Embrapa, p. 590-609, 2021.
MORÉ, Flávia Bittencourt Moré. 2009. O que é o Biochar? 2009. Disponível em: https://medium.com/@flviabittencourtmor/o-que-%C3%A9-o-biochar-d4d0ddb1b43f. Acesso em 14 de outubro de 2022.
O PRESENTE RURAL. 2022. Adubo com biotecnologia pode potencializar efeitos de fertilizantes e reduzir custos de produção. Disponível em: https://opresenterural.com.br/adubo-com-biotecnologia-pode-potencializar-efeitos-de-fertilizantes-e-reduzir-custos-de-producao/. Acesso em 12 de outubro de 2022.
PORTAL CAMPO VIVO. 2022. Pioneiro no brasil, projeto da NetZero em parceria com a Coocafé transforma palha de café em biochar. Disponível em: https://campovivo.com.br/tecnologia/pioneiro-no-brasil-projeto-da-netzero-em-parceria-com-a-coocafe-transforma-palha-de-cafe-em-biochar/. Acesso em 14 de outubro de 2022.
SOUSA, Márcia. 2022. Estudantes criam filtro compostável de água usando restos de alimentos. Disponível em: https://ciclovivo.com.br/arq-urb/design/estudantes-filtro-agua-compostavel-usando-restos-de-alimentos/. Acesso em 10 de outubro de 2022.
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