Biotransformação de nanomateriais: a importância das biocoronas na nanotoxicidade

Você já imaginou o que acontece com uma nanopartícula quando ela entra no nosso organismo? Aí vai uma dica: biotransformação.

Os nanomateriais estão sendo cada vez mais utilizados nas diversas áreas da ciência e tecnologia devido a suas características únicas. Um dos exemplos é a área da saúde, que utiliza nanopartículas para tratamento de tumores, diagnósticos in vitro e direcionamento de fármacos. Contudo, o potencial toxicológico desses nanomateriais para o meio ambiente é motivo de preocupação. 

Quando trabalhamos com sistemas como o organismo humano ou ecossistemas naturais, não podemos nos esquecer de que a complexidade dos mecanismos aumenta, e uma série de fatores pode alterar a resposta aos nanomateriais disponíveis. Um desses fatores é a biotransformação das nanopartículas por meio da formação de biocoronas.

Formação das biocoronas

As nanopartículas, quando inseridas em meios biológicos, entram em contato com uma grande quantidade e diversidade de proteínas e outras biomoléculas. Algumas interações químicas e físicas fazem com que as nanopartículas sejam rapidamente cobertas com essas biomoléculas, formando o que chamamos de biocoronas

As biocoronas podem ser divididas em duas partes, a “hard-corona” e a “soft-corona”. A hard-corona é a camada de biomoléculas formadas imediatamente acima da superfície da nanopartícula. Ela é chamada de “hard” porque as biomoléculas dessa camada estabelecem fortes ligações químicas com as nanopartículas

Essas interações entre as nanopartículas e as biomoléculas são governadas por ligações eletrostáticas, hidrofóbicas e de entropia. No entanto, ainda são necessários estudos para compreender se, uma vez que a hard-corona está formada, ela permanece estável no meio biológico ou se pode sofrer modificações significativas com o tempo e ao entrar em contato com novas  biomoléculas.

Já a soft-corona é a segunda camada de biomoléculas, que irá se formar ao redor da hard-corona e que será direcionada por interações mais fracas entre as biomoléculas das duas camadas. Devido a esse fenômeno, a soft-corona é mais dinâmica e suas moléculas são substituídas rapidamente por outras biomoléculas da solução.

Esquema da hard e da soft corona ao redor de uma nanopartícula
Esquema da hard e da soft corona ao redor de uma nanopartícula. #Pratodosverem: um octógono azul se localiza no centro da imagem representando a nanopartícula, ao redor dele estão triângulos vermelhos representando a hard-corona. Na posição mais externa, ao redor da hard-corona, estão círculos verdes que representam a soft-corona. Fonte: adaptado de Shannahan, 2018.

Uma das vantagens das biocoronas que tem sido amplamente estudada é a redução da toxicidade dos nanomateriais o que torna viável que eles sejam aplicados em vários contextos diferentes, tais como saúde, agricultura e ambiental.

Fabricação e caracterização de biocoronas em laboratório

A formação da biocorona na superfície de nanopartículas é influenciada pela interação entre as biomoléculas e a nanopartícula, além de outros fatores tais como: (i) a concentração de proteínas no meio, (ii) o tempo de incubação, (iii) as propriedades do nanomaterial, como  tamanho, carga superficial e grupos químicos funcionais disponíveis para interação e (iv) as características do meio biológico utilizado.

Em laboratório, após o complexo nanopartícula-corona ser formado por incubação, este é centrifugado e lavado algumas vezes com o objetivo de retirar a soft-corona e todos os outros componentes do meio que não foram fortemente aderidos à superfície da nanopartícula.

A retirada da biocorona da nanopartícula é realizada por meio de algumas etapas de digestão, com o objetivo de caracterizá-la, o que é possível fazer utilizando técnicas como a eletroforese em gel (que analisa o tamanho das biomoléculas), espectrometria de massas e análises computacionais (ambas conseguem identificar quais são as biomoléculas aderidas).

A fabricação e o estudo das biocoronas em laboratório é o ponto chave para a aplicação dos nanomateriais que sejam tóxicos sem essa biotransformação. Uma nova técnica está surgindo, a de engenheirar biocoronas e construir assim materiais com as características desejadas. Isso possibilita que possamos selecionar quais proteínas queremos que façam parte da hard corona e auxilia no entendimento de como esse novo material irá interagir com sistemas biológicos.

Impacto das biocoronas na nanotoxicidade

As biocoronas possuem grande importância na aplicação de nanomateriais, na área da saúde e também na toxicidade das nanopartículas. Isso é devido a biocorona formar, literalmente, uma capa ao redor do nanomaterial, que faz com que o organismo identifique o material coronado como algo próprio ao corpo.

A formação da biocorona e a toxicidade do nanomaterial também vão depender da via de exposição à qual o organismo está sendo submetido. A via de exposição respiratória demonstra efeitos diferentes de nanomateriais que foram absorvidos por via dérmica, que, por sua vez, também é diferente da ingestão e da injeção. 

Essas diferenças se dão em parte porque, dependendo de quais os tecidos com os quais o nanomaterial irá interagir, uma biocorona diferente será formada, devido à variedade de proteínas disponíveis para ligação em cada um dos diferentes tecidos. É interessante destacar, porém, que não são necessariamente as proteínas mais abundantes do tecido que irão se integrar à biocorona, mas sim aquelas que tiverem maior interação com o nanomaterial. 

O óxido de grafeno (GO) é um nanomaterial vastamente estudado e com grande potencial de aplicação em remediação ambiental devido a sua capacidade de adsorção. Uma de suas muitas aplicações é a retirar e detecção de pesticidas e poluentes em água, como o cádmio. Um estudo realizado por Martinez et al. demonstrou que a biocorona foi capaz de aumentou sua capacidade de adsorver o cádmio um metal extremamente tóxico. Essas características fizeram com o GO coberto com a biocorona mitigasse a toxicidade do cádmio para a Daphnia magna, um microcrustáceo de água doce amplamente utilizado em testes de qualidade da água. 

Outro metal tóxico é o cobre. Em outro trabalho, o mesmo grupo de pesquisa demonstrou o efeito de mitigação da toxicidade do cobre para Daphnias através da adsorção por nanotubos de carbono recobertos com biocorona de plasma bovino, Esse efeito ocorreu pois a biocorona foi capaz de aumentar em 400% a capacidade do nanotubo de retirar íons de cobre da água. O nanotubo de carbono recoberto não apresentou nenhuma toxicidade aguda às Daphnias, o que é mais uma vantagem da formação das biocoronas em laboratório para biotransformar nanomateriais. Nos dois estudos, a corona também foi capaz de melhorar a dispersão do nanomaterial em água. 

Daphnia
A Daphnia é um microcrustáceo filtrador de água doce muito utilizado como bioindicador de qualidade da água. Em condições favoráveis, ela se reproduz por partenogênese, gerando apenas fêmeas idênticas à mãe. Essas características a tornam um ótimo organismo modelo para estudos de toxicidade. #Pratodosverem: foto da microscopia ótica de uma Daphnia. Fonte da imagem: Wikipedia.

A Daphnia é um microcrustáceo filtrador de água doce muito utilizado como bioindicador de qualidade da água. Em condições favoráveis, ela se reproduz por partenogênese, gerando apenas fêmeas idênticas à mãe. Essas características a tornam um ótimo organismo modelo para estudos de toxicidade. #Pratodosverem: foto da microscopia ótica de uma Daphnia. Fonte da imagem: Wikipedia.

Outro estudo, realizado com um nematódeo terrestre chamado C. elegans, demonstrou que uma biocorona formada por albumina foi capaz de diminuir ou até mitigar os efeitos deletérios de nanotubos de carbono de parede múltipla e óxido de grafeno em testes agudos e crônicos. Os fatores avaliados foram: sobrevivência, crescimento, fertilidade e reprodução.

A biocorona é capaz de modificar tão profundamente as propriedades das nanopartículas que, após a sua formação, as nanopartículas cobertas são consideradas materiais novos. A modificação da toxicidade das biocoronas aumenta as possibilidades de aplicação das nanopartículas em tratamentos de saúde, agricultura, remediação ambiental e muitas outras, abrindo grande potencial para a pesquisa nessas e outras áreas. 

Perfil de Jennifer Medrades
Texto revisado por Darling Lourenço e Elaine Latocheski

Cite este artigo:
MEDRADES, J. P. Biotransformação de nanomateriais: a importância das biocoronas na nanotoxicidade. Revista Blog do Profissão Biotec. V. 10, 2023. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/biotransformacao-nanomateriais-importancia-biocoronas-nanotoxicidade/>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências:

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MARTINS, C. H. Z. Functionalization of carbon nanotubes with bovine plasma biowaste by forming a protein corona enhances copper removal from water and ecotoxicity mitigation. Environmental Science: Nano, v. 8, 2022. Disponível em: https://pubs.rsc.org/en/content/articlelanding/2022/en/d2en00145d/unauth. Acesso em: 24 jan. 2023.
MARTINEZ, D. S. T. et al. Effect of the Albumin Corona on the Toxicity of Combined Graphene Oxide and Cadmium to Daphnia magna and Integration of the Datasets into the NanoCommons Knowledge Base. Nanomaterials, v. 10, n. 10, 2020, p. 1936. Disponível em: https://www.mdpi.com/2079-4991/10/10/1936. Acesso em: 24 jan. 2023.
SHANAHANN, J. The biocorona: a challenge for the biomedical application of nanoparticles. Nanotechnol Rev., v. 6, n. 4, 2017, pp. 345-353. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5875931/. Acesso em: 24 jan. 2023.
WESTMEIER, D. et al. The bio-corona and its impact on nanomaterial toxicity. European Journal of Nanomedicine, v. 7, n. 3, 2015. Disponível em: https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/ejnm-2015-0018/html. Acesso em: 24 jan. 2023.
Fonte: Pexels.

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