O sequenciamento do genoma do ornitorrinco revela aspectos evolutivos importantes dos mamíferos e permite novas descobertas para a ciência.

Se o peculiar ornitorrinco fosse visto pela primeira vez por um cientista nos dias de hoje, talvez a primeira pergunta seria: Quem é esse Pokémon? Seria uma mistura de um pato, um castor e uma lontra? Produz leite como mamíferos, bota ovos como aves e tem veneno parecido com o de répteis. E tem mais! Brilha na luz ultravioleta! Estaríamos presenciando uma verdadeira quimera, como na mitologia? 

Para desvendar esse quebra-cabeças, somente com o sequenciamento do genoma desse curioso animal é que começamos a entender a sua trajetória evolutiva. E, apesar de estranho (sem deixar de ser fofo), o seu leite e o veneno contém substâncias e propriedades que podem levar ao desenvolvimento de drogas. Vamos conferir um pouquinho das assinaturas genéticas do ornitorrinco e outras características marcantes desse animal?

Por quê sequenciar o genoma do ornitorrinco?

Para muitos a resposta mais óbvia que vem à cabeça é: entender a mistura de genes contida no DNA desse animal que o faz tão exótico. Mas, muito além de entender a configuração genética desse animal, nós podemos entender como a evolução dos mamíferos ocorreu, pois os ornitorrincos representam uma linhagem que se separou evolutivamente de nosso antepassado comum há mais de 166 milhões de anos. Isso quer dizer que este animal traz informações valiosas que nos permite entender como os mamíferos mais primitivos eram e quais traços genéticos foram perdidos e adquiridos nas espécies contemporâneas.

Um ornitorrinco do Santuário Lone Pine Koala, em Brisbane, Austrália.
Um ornitorrinco do Santuário Lone Pine Koala, em Brisbane, Austrália. #ParaTodosVerem: na foto, um zoólogo vestindo uma camiseta verde clara está segurando em suas mãos, com uma toalha branca, um ornitorrinco. O ornitorrinco apresenta uma pelagem curta e marrom, olhos pequenos e uma estrutura em formato de bico, similar ao bico de um pato. Fonte: Rainbow606

Nesse contexto, já podemos responder algumas das perguntas feitas na introdução deste texto. O ornitorrinco sempre foi um mamífero, sendo imprecisas as afirmações (muitas midiáticas) a respeito dele ser uma quimera ou qualquer tentativa de colocá-lo mais próximo de aves ou répteis. Ele apenas apresenta características genéticas mais primitivas, muitas encontradas ou não nos mamíferos atuais, e que até certo ponto se “assemelham” a outros grupos de animais que evoluíram independentemente. Vamos conferi-las?

Bonitinho, mas venenoso!

Uma característica bem peculiar do ornitorrinco é a presença de esporas (protuberância óssea com revestimento) em seus membros posteriores, as quais conseguem inocular veneno em predadores (apenas os machos produzem veneno). Evolutivamente falando, as proteínas do veneno são produtos de genes chamados ꞵ-defensinas e que também são encontradas em outros mamíferos, aves e répteis (como no veneno de cobras). O que vai mudar entre diferentes espécies é o número de cópias desses genes e a estrutura das proteínas. Em humanos, por exemplo, as ꞵ-defensinas não deixam de ter um papel defensivo e são produzidas em tecidos epiteliais e de revestimento para combater invasores (bactérias e vírus). Para os ornitorrincos, a especialização de algumas ꞵ-defensinas para gerar toxicidade favoreceu seus mecanismos de defesa.

Outro achado interessante é que o veneno do ornitorrinco é formado por um coquetel de substâncias tóxicas, muitas encontradas em cobras, ainda que ambos tenham evoluído de forma independente. E atrelado a isso, o sequenciamento do genoma deste animal revelou mais de 20 genes que apresentam atividade antimicrobiana. Essas informações têm permitido aos cientistas estudar se estas moléculas do veneno podem ser candidatas para a produção de novos analgésicos (principalmente de forma sintética). Os antimicrobianos, apesar de serem conhecidos por matar bactérias, estão sendo testados em insetos pragas como moléculas que podem ser tóxicas em grandes quantidades  e usadas no biocontrole destes.

Quantos cromossomos sexuais!!!

Outro fato curioso é que os ornitorrincos apresentam 10 cromossomos sexuais, divididos em cinco X e cinco Y. Apesar deles apresentarem o sistema XY de mamíferos, os estudos demonstram a presença de muitos genes típicos de mamíferos e aves que estão espalhados ao longo destes numerosos cromossomos sexuais. Dentre os vertebrados, o ornitorrinco é o segundo recordista em número de cromossomos sexuais, ficando atrás somente para a rã-jia-da-floresta, que apresenta doze. Em terceiro, nós temos a equidna com nove cromossomos sexuais, uma espécie próxima do ornitorrinco, o que revela como ambos são mamíferos bem mais primitivos que os atuais.

Apesar da descoberta do número elevado de cromossomos sexuais nos ornitorrincos, não se sabe ao certo quais grupos de genes localizados nestes estão envolvidos de fato na determinação de características sexuais.

Cariótipo representando o conjunto de cromossomos de um macho de ornitorrinco
Cariótipo representando o conjunto de cromossomos de um macho de ornitorrinco (Ornithorhynchus anatinus). #ParaTodosVerem: a figura ilustra o conjunto de cromossomos autossomos e sexuais de um macho de ornitorrinco. Os cromossomos autossomos, numerados de 1 a 21, estão representados por fibras de cromatina em forma de bastonete pareados lado a lado. Os cromossomos sexuais estão representados pelo sistema XY, sendo estes X1, Y1, X2, Y2, X3, Y3, X4, Y4, X5, Y5. Fonte: Rens et al. 2007

Ovos, leite e superbactérias

Os únicos mamíferos que botam ovos são o ornitorrinco e a equidna. E aqui podemos fazer a seguinte pergunta: por que os outros mamíferos não produzem ovos? Ainda que seja complicado responder com fidelidade a essa pergunta, os estudos em genética evolutiva revelaram que os ancestrais mais primitivos dos mamíferos apresentavam três genes que eram capazes de produzir ovos e a gema do ovo. Os ornitorrincos e equidnas ainda apresentam um destes genes, enquanto os outros mamíferos perderam todos eles (incluindo humanos).

Réplica de um ninho com ovos de ornitorrinco presente no museu MUSE- Science Museum, Itália
Réplica de um ninho com ovos de ornitorrinco presente no museu MUSE- Science Museum, Itália. #ParaTodosVerem: na foto está representada uma réplica de um ninho de ornitorrinco formado por folhagens secas numa estrutura circular. Ao centro estão dois ovos, na cor marrom, que apresentam tamanho pequeno. Fonte: Matteo De Stefano/MUSE

Os estudos revelaram que o ornitorrinco tem um dos três genes que levam o nome de vitelogenina, crucial para produzir ovos. Estes mesmos genes estão em sua totalidade em aves. Além disso, o ornitorrinco tem genes que possibilitam a produção do leite materno. No entanto, não apresenta mamilos, e as glândulas mamárias se encarregam de depositar o leite nos pelos para que os filhotes se alimentem lambendo-os.

Um achado muito interessante foi a identificação de uma proteína do leite do ornitorrinco que pode combater a proliferação de superbactérias, o que permite o aprofundamento em estratégias para produzir drogas que possam solucionar um dos grandes problemas mundiais de infecções ocasionadas por bactérias resistentes aos antibióticos. Curiosamente, a proteína foi apelidada de Shirley Temple, devido a sua estrutura encaracolada em homenagem ao cabelo cacheado de uma atriz famosa dos anos 30.

Sou estranho, mas tenho meu brilho!

Recentemente, outra descoberta muito intrigante foi a observação que a pelagem do ornitorrinco brilha quando é exposta à luz ultravioleta (UV). Esse espectro de luz (não visto por humanos) faz com que os pelos desse animal reflitam um comprimento de onda em tons azuis-esverdeados. O fenômeno é conhecido com biofluorescência (diferente da bioiluminescência) e ocorre em outras espécies de animais como no casco de tartarugas marinhas, fungos, pelagem de esquilos voadores e alguns anfíbios.

Os cientistas ainda tentam entender o porquê dos ornitorrincos e outros animais terem essa capacidade biofluorescente. A hipótese mais plausível é que, no caso dos ornitorrincos, seria um mecanismo de se camuflar ou afastar predadores que conseguem enxergar a luz ultravioleta. No entanto, também há a possibilidade de ser apenas uma característica primitiva e sem função que foi fixada neste animal. Em outras espécies, como no caso de anfíbios, se discute também o papel da biofluorescência na sinalização e comunicação entre indivíduos.

Na foto, um ornitorrinco (não vivo) de um Museu da Tasmânia,
Na foto, um ornitorrinco (não vivo) de um Museu da Tasmânia, Austrália, foi fotografado quando exposto à luz ultravioleta (UV), podendo ser vista o brilho biofluorescente de sua pelagem nas cores azuis-esverdeadas. #ParaTodosVerem: na foto, o corpo de um ornitorrinco está estendido em um plano escuro. Seu lado ventral está voltado para cima e sua pelagem apresenta uma coloração azul-esverdeada, devido a biofluorescência ocasionada pela exposição à luz ultravioleta. Fonte: Anich et al. 2020.

Na foto, um ornitorrinco (não vivo) de um Museu da Tasmânia, Austrália, foi fotografado quando exposto à luz ultravioleta (UV), podendo ser vista o brilho biofluorescente de sua pelagem nas cores azuis-esverdeadas. #ParaTodosVerem: na foto, o corpo de um ornitorrinco está estendido em um plano escuro. Seu lado ventral está voltado para cima e sua pelagem apresenta uma coloração azul-esverdeada, devido a biofluorescência ocasionada pela exposição à luz ultravioleta. Fonte: Anich et al. 2020.

E será que a biofluorescência do ornitorrinco poderia ser útil para a ciência? Para isso, vale recordarmos do Prêmio Nobel de Química (2008) aos pesquisadores que isolaram de uma água-viva a Green Fluorescent Protein (GFP) (protéina verde fluorescente) que é utilizada como um marcador fluorescente em pesquisas no campo da biologia celular. Desde a elaboração dessa tecnologia, há uma busca por novas proteínas fluorescentes em outras espécies que possam aprimorar as técnicas já estabelecidas. Além dos anfíbios e animais marinhos, o ornitorrinco também poderia apresentar proteínas fluorescentes para tais aplicações.

Quem diria que o ornitorrinco, um animal taxado de esquisito e fora da curva, poderia ter tanta informação bacana! Podemos ver que é super importante estudar toda a biodiversidade terrestre, sem negligências, com ética e cuidado. Cada espécie, como o ornitorrinco, tem uma história a nos contar que se encaixa na maravilha da evolução e ainda pode nos revelar possibilidades que inspiram aplicações na pesquisa científica.

Perfil Fabiano
Texto revisado por Natália Lopes e Bruna Lopes

Cite este artigo:
ABREU. F. C. P. Quem é esse Pokémon? O curioso genoma do ornitorrinco.  Revista Blog do Profissão Biotec. V. 10, 2023. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/quem-e-esse-pokemon-curioso-genoma-ornitorrinco>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências

ANICH, Paula Spaeth et al. Biofluorescence in the platypus (Ornithorhynchus anatinus). Mammalia, v. 85, n. 2, p. 179-181, 2021.
BBC. Como o leite de um dos bichos mais exóticos do mundo pode ajudar a combater superbactérias. Disponível em <https://g1.globo.com/natureza/noticia/como-o-leite-de-um-dos-bichos-mais-exoticos-do-mundo-pode-ajudar-a-combater-superbacterias.ghtml> Acesso em 25 de julho de 2023.
FJDELBERG, Anders. It sweats milk and has glowing fur — the genome of the platypus has been sequenced. Disponível em <https://uniavisen.dk/en/it-sweats-milk-and-has-glowing-fur-the-genome-of-the-platypus-has-been-sequenced/> Acesso em 15 de julho de 2023.
MAIN, Douglas. We knew platypuses were incredible. Now we know they glow, too. Disponível em <https://www.nationalgeographic.com/animals/article/glowing-platypus> Acesso em 15 de agosto de 2023.
NETNATURE. INTERPRETAÇÃO DE CARACTERÍSTICAS COMPARTILHADAS: O GENOMA DE Platypus. Disponível em <https://netnature.wordpress.com/2018/09/14/interpretacao-de-caracteristicas-compartilhadas-o-genoma-de-platypus/> Acesso em 10 de agosto de 2023.
RENS, Willem et al. The multiple sex chromosomes of platypus and echidna are not completely identical and several share homology with the avian Z. Genome biology, v. 8, p. 1-21, 2007.
SUÁREZ PUENTE, Xosé Antón et al. Genome analysis of the platypus reveals unique signatures of evolution. Nature, 2008.
Fonte da imagem destacada: Wikimedia.

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