Muitos biotecnologistas escolhem seguir para pós-graduação. Porém a carreira acadêmica possui desafios estruturais que precisam ser superados para o desenvolvimento da ciência brasileira.

*Esse texto reflete a opinião do autor enquanto aluno de pós-graduação. Costumo dizer que todo biotecnologista é um cientista em potencial. Porém, para adquirir o status de pesquisador, a jornada na carreira acadêmica é, às vezes, o caminho natural. Permita-me mostrar parte dessa jornada através de um breve relato comum para muitos pós-graduandos da área de biotecnologia.

A rotina de um Cientista em Formação

Caro leitor, imagine que você é um cientista em formação. Seu dia começa cedo, deixando o conforto de casa e se deslocando até um Instituto de Pesquisa. Lá, seu dia é preenchido com a preparação de soluções químicas, esterilização de meios de cultura, e lavagem de vidrarias. Entre um experimento e outro, você se debruça sobre artigos científicos que desafiam seu entendimento e expandem cada vez mais sua lista de leituras com novas referências.

Ao longo da semana, você enfrenta rotinas extensas e suas leituras passam a ser realizadas também em casa. Três vezes na semana você assiste a disciplinas obrigatórias do seu programa de pós-graduação. Quartas-feiras são reservadas para reuniões de laboratório onde os progressos são examinados. Ao fim do semestre, você deve entregar um relatório bem referenciado e com imagens de alta qualidade — que exigem um domínio de softwares de design gráfico — ao financiador da sua pesquisa.

Todo início de mês, você se frustra com sua bolsa-auxílio de R$2100,00 (valor da bolsa de mestrado CAPES em 2024) pois esperava estar ganhando um pouco mais após ter concluído um curso superior. A pressão constante e a instabilidade financeira transformam a ansiedade em algo corriqueiro. Você gostaria de iniciar um acompanhamento psicológico, mas seu dinheiro mal cobre suas necessidades (algumas universidades possuem apoio psicológico gratuito para estudantes, confira se a sua oferece). Além disso, seu contrato (que não é CLT) exige dedicação exclusiva, impedindo-o de buscar fontes adicionais de renda. Na busca pela entrega dos resultados, longas horas no laboratório se tornam rotineiras, frequentemente invadindo os finais de semana. A vida social se desvanece, e conversas com amigos e família se tornam raras. Há uma lista de espera de outros pós-graduandos desejando sua privilegiada bolsa e você não pode dar sinais de que vai desistir.

Os pós-graduandos são a mão de obra barata do sistema de produção acadêmico. Sem direitos trabalhistas e com pagamentos baixos, enfrentam condições de trabalho precárias. #ParaTodosVerem: A imagem em preto e branco mostra um ambiente que lembra uma fábrica, há uma esteira transportadora cheia de pós-graduandos. Ao fundo, engrenagens e máquinas sugerem um sistema de produção intenso e constante, simbolizando a carga e a pressão acadêmica. A imagem destaca a ideia de exploração no sistema acadêmico. Imagem: Lucas de Bem via DALL-E 3/ChatGPT-4.

Surpreendentemente, para publicar os resultados da sua pesquisa você se depara com uma barreira financeira para submeter seu manuscrito a um periódico de renome uma taxa proibitiva que seu laboratório não pode cobrir. Para conseguir concluir seu papel como cientista, você  opta por uma revista mais humilde e de menor impacto. Por fim, seu artigo foi publicado juntamente com colegas de laboratórios que fizeram uma pequena colaboração ou outra.

Após dois anos de um trabalho incessante, você conseguiu entregar todos os relatórios e manter seu pagamento até o final. Por um longo período sem férias ou direitos trabalhistas, a defesa de sua dissertação de mestrado marca o fim de uma etapa e o começo de outra ainda mais desafiadora — a exaustiva busca por um emprego ou se submeter ao doutorado com um modesto aumento no valor da bolsa. Agora, 6 anos depois de iniciar sua graduação, você receberá R$3100,00 (bolsa de doutorado CAPES em 2024). A pergunta “Quando você vai começar a trabalhar?” ecoa em cada reunião de família, ampliando o peso da incerteza sobre seu futuro. E assim, pelos próximos 4 anos, mais um ciclo se inicia.

Os pós-graduandos frequentemente trabalham tanto quanto, ou até mais, do que profissionais em regime CLT, mas sem desfrutar de nenhum direito trabalhista. Eles são a base do sistema de produção acadêmico, sendo responsáveis por grande parte da ciência produzida no Brasil. Apesar disso, muitos são erroneamente vistos apenas como “estudantes” pela família, mídia e sociedade.

Uma difícil realidade

Muitos dos meus colegas pós-graduandos enfrentam não apenas as inseguranças que retratei acima. A pressão acadêmica somada a lutas internas contra supervisores autoritários ou um ambiente tóxico de competição destroem a saúde física e mental. Questões de racismo e misoginia ainda são fortes no meio acadêmico, complicando ainda mais o cenário. Alguns não conseguem nem o salário em forma de bolsa para se manterem na pesquisa. No Brasil, a pós-graduação é uma profissão não reconhecida.

Recentemente, um artigo do Jornal da UNICAMP abordou “A crise na pós-graduação”, utilizando uma perspectiva tecnicista para analisar o declínio no interesse pela carreira acadêmica, uma tendência que se intensificou durante e após a pandemia. No entanto, muitos dos desafios reais enfrentados por pós-graduandos, como os descritos no nosso conto, não foram considerados nessa análise.

Os casos de burnout, depressão e ansiedade entre pós-graduandos são significativamente maiores do que em outras profissões. #ParaTodosVerem: A imagem mostra uma cientista vestindo um jaleco, sentada à mesa em um laboratório, parecendo exausta e frustrada. A mesa está desorganizada, cheia de pilhas de livros, artigos científicos, frascos de experimentos e um laptop. No fundo, um quadro-negro com fórmulas químicas e gráficos, junto com diversas anotações e diagramas pregados na parede, ilustra o ambiente de alta pressão acadêmica. A expressão facial e a desordem ao redor refletem o desgaste emocional e físico comum entre os pós-graduandos. Imagem: Lucas de Bem via DALL-E 3/ChatGPT-4.

Boas notícias e os ventos de mudança

Em junho de 2024, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) implementou um significativo reajuste nos valores das bolsas de pós-graduação, surpreendendo positivamente a comunidade acadêmica. No entanto, a alegria foi acompanhada por preocupações acerca da notável discrepância entre os valores ajustados pela FAPESP e aqueles oferecidos por agências federais como a CAPES e o CNPq. Um avanço notável foi a inclusão de um plano de previdência para pesquisadores de pós-doutorado, refletindo um esforço da FAPESP para alinhar os benefícios com padrões internacionais e incentivar a retenção de talentos no estado de São Paulo.

Reajuste nos valores das “bolsas” oferecidas pela Agência de Fomento à pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Valores das principais Bolsas da FAPESP a partir de 01/08/2024.

Este movimento coloca em destaque a urgência de uma reforma similar nas políticas de financiamento científico em nível nacional. Caso contrário, a disparidade entre São Paulo e outros estados brasileiros poderá se acentuar, comprometendo o equilíbrio e a integridade do desenvolvimento científico no país. É essencial que os órgãos federais adotem medidas para assegurar condições de trabalho justas e estimulantes aos pós-graduandos em todo o território nacional, fortalecendo assim o panorama geral da ciência brasileira.

A Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG) está empenhada em mudar essa realidade, lutando pela regulamentação da profissão de pesquisador. Com foco no reconhecimento da profissão do biotecnologista, a LiNA Biotec tam realiza um importante trabalho de divulgação. A união e a ação coletiva emergem como as melhores alternativas para transformar a carreira científica em um ambiente menos hostil.

Além de fortalecer a união entre os pós-graduandos, é fundamental apoiar iniciativas de divulgação científica que ajudem o público a compreender a importância da ciência para a sociedade. Por isso, incentive e compartilhe projetos como o Profissão Biotec (PB). Ao fazer isso, ampliamos o alcance dessas mensagens e colaboramos conjuntamente para melhorar toda ciência brasileira. O PB preparou uma série de textos sobre  pós-graduação para te ajudar a se preparar para todos os desafios

Adotando uma visão otimista, é importante reconhecer que a ciência é, por natureza, uma ferramenta poderosa para solucionar problemas. Devemos confiar na capacidade dos cientistas de colaborar e aprimorar suas próprias condições de trabalho. Afinal, é somente dessa forma que poderemos alcançar o progresso social esperado dos avanços da pesquisa científica.

Perfil de Lucas de Bem
Texto revisado por Bruna Lopes e Natália Videira

Cite este artigo:
BEM, Lucas, Pós-graduando: Você também trabalha ou só estuda? Revista Blog do Profissão Biotec, v. 11, 2024. Disponível em: <>. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Referências:

ABIZADEH, ARASH. “Academic Journals Are a Lucrative Scam – and We’re Determined to Change That.” The Guardian, July 16, 2024. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/article/2024/jul/16/academic-journal-publishers-universities-price-subscriptions>.  Acesso em: 20/07/2024.
ANPG. O pós-graduando e o trabalho invisível. Associação nacional de pós-graduandos, 2020. Disponível em: <https://www.anpg.org.br/01/05/2020/o-pos-graduando-e-o-trabalho-invisivel/>. Acesso em: 06/07/2024.
LOPES, N. R. Pós-graduação: a profissão não reconhecida.  Revista Blog do Profissão Biotec, v.10, 2023. Disponível em: <https://profissaobiotec.com.br/pos-graduacao-profissao-reconhecida/>. Acesso em: 06/07/2024.
MENEZES, M. “Pesquisa identifica altos níveis de ansiedade e depressão em pós-graduandos durante a pandemia.” Comunicação Instituto Oswaldo Cruz, 2023 Disponível em: <https://www.ioc.fiocruz.br/noticias/pesquisa-identifica-altos-niveis-de-ansiedade-e-depressao-em-pos-graduandos-durante.> Acesso em 06/07/2024. 
NUNES, TOTE.“A crise de identidade da pós-graduação.” Jornal da Unicamp, 2024. Disponível em: <https://www.jornal.unicamp.br/edicao/701/a-crise-de-identidade-da-pos-graduacao/>. Acesso em: 06/07/2024.
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